sábado, 24 de junho de 2017

A ofensiva fundamentalista na educação

Por Alceu Luís Castilho, no site Outras Palavras:

Duas notícias aparentemente díspares, na semana passada, tomaram as redes sociais. E apontam para uma mesma tendência: fundamentalismo. Ambas tratam de educação. Uma delas foi uma peça publicitária contra as ciências humanas – disfarçada de jornalismo – no principal jornal paranaense, a Gazeta do Povo. A outra, a decisão do Ministério da Educação de recolher 98 mil exemplares de um livro por considerá-lo “impróprio”.

Essa aliança específica entre imprensa tradicional e o governo de Michel Temer não é casual. Está ligada à ideologia da Escola Sem Partido, por um lado, ao esvaziamento da diversidade e da perspectiva crítica no ensino. Por outro, aponta para uma migração de determinada posição moralista, não somente religiosa, refratária a temas que os jornalistas paranaenses e a equipe do ministro da Educação, Mendonça Filho, julgam incômodos.

É como se as políticas públicas tivessem, neste momento sombrio que atravessa o Brasil, de se submeter ao pudor desses senhores.

Temas eróticos demais?

Tomemos inicialmente o panfleto da Gazeta do Povo, com o seguinte título: “Dez monografias incomuns bancadas com dinheiro público“. Uma entre os dez pesquisadores atacados enviou ao jornal uma resposta, editada com certo grau de ironia: “Autora de tese de doutorado sobre Mr. Catra critica pensamento ‘elitista e preconceituoso’“.

Basta uma olhada na lista de dez dissertações e teses feita pelo editor de educação da Gazeta para perceber que ele considera “incomuns” temas ligados ao erotismo e à sexualidade. Nada menos do que seis itens (1, 3, 4, 5, 6 e 10) entram diretamente nesse rol. Logo no título ou na apresentação contêm palavras como “banheirão”, “piriguete”, “zuadinha”, “pegação”. É possível enxergar o jornalista h-o-r-r-o-r-i-z-a-d-o com os temas.

Todas as teses são academicamente relevantes – para além do tribunal erigido pelo escriba. Em outros dois casos ele ataca o funk e o sertanejo universitário, talvez imaginando requebradas que julga não fazerem parte da preocupação de pesquisadores sérios.

Mas o mais grave fica para o último item desse índex: uma tese de doutorado na Universidade de São Paulo que trata de pedofilia. Como ninguém em sã consciência pode questionar a importância de se compreender melhor o tema, pergunta-se: por que ele foi inserido ali, estrategicamente encerrando a relação de estudos “incomuns”?

Resposta: o jornal apela para o senso comum, ao resumir o estudo de uma forma que indignará os leitores que percebem pedofilia e crimes sexuais contra crianças como a mesma coisa. Não são. É possível ver uma abordagem séria do tema em entrevista do próprio autor à Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp TV), neste vídeo [aqui]:

Mas a Gazeta do Povo prefere jogar a favor do obscurantismo. Como se alguém estivesse defendendo a pedofilia – e não tentando entendê-la melhor. A favor de quais interesses?

A ofensiva específica do MEC

No Ministério da Educação, não menos ignorância – aliada a uma determinada visão excludente. Motivo da celeuma: um conto da tradição popular, das fábulas, presente em uma coletânea organizada pelo escritor José Mauro Brant: “Governo recolhe 98 mil exemplares de livro infantil por considerá-lo ‘impróprio’“. A narrativa foi apresentada – em redes sociais e em debates legislativos pelo país – como uma apologia do incesto.

Nada mais injusto. E mentiroso. A ponto de a insuspeita (por conservadora que é) revista Veja ter publicado artigo de um pesquisador contestando com veemência essa tese: “Livro recolhido pelo MEC não é apologia do incesto. É seu oposto“.

O El País Brasil resumiu desta forma o enredo: “A fábula conta a história de um rei que deseja se casar com uma das suas três filhas, a qual, por se negar, é castigada e morre de sede”.

O conto em questão, “A Triste História da Eredegalda”, não é uma ideia original de Brant. E sim uma adaptação de uma narrativa que atravessa séculos. Como a do Pequeno Polegar, não exatamente uma história em defesa de ogros que comem criancinhas. Ou a da Chapeuzinho Vermelho – igualmente não uma narrativa em defesa do Lobo Mau.

(Eu imagino Mendonça Filho aflito ao ouvir a história do Pequeno Polegar. O abandono das sete crianças no bosque pelos pais, por causa da fome. A chegada ao castelo do ogro, quando são avisados pela mulher dele que ali mora um comedor de criancinhas. O desfecho do conto, reunido da tradição popular por Charles Perrault, quando o ogro sente cheiro de criancinhas e as engole – só que, por um artifício de Polegar, não são os sete irmãos, mas suas sete filhas.)

Em “Literatura Oral no Brasil” (1978), Luís da Câmara Cascudo mostra a tradição narrativa que desemboca em Eredegalda. Ela vem de Delgadinha, Silvana, ou Silvaninha, também Aldevina, Aldininha, Gualdina. A história “caracteriza o sacrifício”, define o autor. Em contraposição a outras duas tradições ligadas ao tema, a de “Pele de Asno”, onde o disfarce e a fuga são elementos centrais contra o incesto (sim, rejeitado), e de “A Moça sem Mãos”, onde a mutilação é o recurso utilizado para rejeitar a investida do pai.

Trata-se de um motivo folclórico universal, como observa Câmara Cascudo. Uma consulta à obra do potiguar mostra que essas histórias já eram contadas no século XIII – afastando-nos, portanto, de qualquer definição da política do MEC como apenas “medieval”. E desembocam no século XX, como na versão cinematográfica de “Pele de Asno”, dirigida por Jacques Demy em 1970, a partir da obra de Perrault. Com Catherine Deneuve, Jean Marais e Jacques Perrin [aqui]:

Apesar de tudo isso, a obra foi retirada de circulação, para a alegria de políticos como o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), aquele que se projetou para a política como fundador da União Democrática Ruralista, a UDR, nos anos 80. Ele disse que o livro “incentiva o incesto” e que “não foi à toa que o PT incluiu esse livro criminoso em nossas escolas”.

Observem a palavra utilizada: “Criminoso”.

Os ovos dos cupins

Essas campanhas estão muito longe de constituírem apenas uma trapalhada. Elas têm determinados alvos. E muitos efeitos colaterais. Por conta delas, José Mauro Brant tem sido vítima de ódio virtual. Esse ódio não vem do nada. É construído diariamente por homens públicos – ou jornalistas com a mesma mentalidade – a serviço de determinada visão de mundo. Excludente e empobrecedora.

Essa gente, no limite, caso não seja denunciada a tempo, um dia trancafiará pesquisadores e queimará bibliotecas.

1 comentários:

vhannya disse...

em tempos de burka, ódio ao diferente, sessões de histerismo coletivo ao adorar o deu$ fundamentali$ta, criança$ sendo endeusada$ e gritando histéricas em comícios religio$o$ nas ruas, mini-janaínas psicopatas em ebulição.