quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A tarefa de reconstruir o Brasil destruído

Por Roberto Amaral, em seu blog:

Como explicar, em uma democracia representativa – ainda que autoritária desde o nascimento, como a nossa – a sustentabilidade de um presidente da República rejeitado por 97% da população, ineditismo que se agrava sabendo-se que esse ‘chefe da nação’, sem um só voto popular, assumiu o Executivo a bordo de um golpe de Estado, urdido entre o Poder Legislativo e o STF, e do qual foi um dos pilotos?

Um golpe que, fundado na felonia, teve como principal executante o pluridelinquente Eduardo Cunha, hoje hóspede do sistema penitenciário de Curitiba. Um golpe, sabe-se agora, regado a muito dinheiro posto nas mãos do então presidente da Câmara dos Deputados para o milagre da multiplicação dos votos a favor do impeachment da presidente da República.

Absolutamente carente de representatividade e de legitimidade, reiteradamente acusado de corrupção, o investigado Michel Temer preside um governo obsessivamente antinacional e antipopular, que sobrevive mediante a compra despudorada de parlamentares a cada votação crucial, como esta última que o está blindando, a ele e à sua grei, de mais um processo no qual é acusado pelo Ministério Público Federal de chefiar uma quadrilha especializada no assalto ao erário, na corrupção ativa, na chantagem, no achaque. Seus companheiros de truz, uns ainda lhe fazem companhia no terceiro andar do Palácio do Planalto, como Moreira Franco e Eliseu Padilha; outros, como Geddel Vieira Lima (o homem dos R$ 51 milhões) e Henrique Eduardo Alves, observam prisões temporárias, enquanto o ex-deputado Rocha Loures (o “homem da mala”) e o advogado José Yunes, entre muitos outros, permanecem à solta.

Segundo o Estadão (25.10.17), jornal que o apoia, o custo da rejeição, pela Câmara dos Deputados, da denúncia contra o presidente e seus auxiliares Moreira e Padilha custou ao país a bagatela de 32 bilhões de reais.

Michel Elias Temer, o antigo “homem do Porto de Santos”, comanda hoje um projeto que contraria o ditado das eleições de 2014 (nas quais não teve um só voto, relembre-se sempre), obcecado em desconstruir o país, em entregar o petróleo do Pré-Sal, em maltratar seu povo, em perseguir os trabalhadores e os pensionistas, em destruir a economia (vítima de impiedosa recessão), em reduzir a pó nossa soberania, destruir o meio ambiente, dizimar o que ainda resta de populações indígenas e roubar nosso futuro, destruindo a Universidade, o ensino público, a pesquisa em ciência, tecnologia e inovação, para que retornemos às primeiras décadas do século passado, como orgulhosa economia agroexportadora.

E, diante de todo esse descalabro, em desafio aos exegetas, as ruas estão vazias, as universidades em silêncio, as fábricas funcionando normalmente, o campo em paz.

Anacronicamente reacionário, o governo de Temer et caterva é regressivo nos costumes e repulsivo na política, disposto a qualquer negócio, com o ‘mercado’ ou com delinquentes como os irmãos Batistas (com os quais esteve associado), ou com essas figuras miúdas, mas muito sabidas, que constituem o ‘baixo-clero’ do Congresso, insaciável Moloch no pleito de prebendas. Trata-se de governo, vá lá o nome, a serviço das bancadas que comandam o atraso, a famosa aliança dos quatro B: a bancada da bala, a bancada do boi (leia-se latifundiários e grileiros) , a bancada dos banqueiros e, finalmente, a bancada da bíblia, formada majoritariamente pelo que há de mais atrasado no fundamentalismo neopentecostal.

Não que Michel Temer seja, necessariamente, reacionário: não se trata de discutir seu caráter ideológico, de que carece, pois, como o líquido, adapta-se facilmente ao recipiente no qual é despejado.

Este governo que nos humilha – desde sua origem ilegítimo –, caminha na contramão dos desejos e das necessidades do país e de seu povo, que o repudia. E, no entanto, parece inabalável no posto que usurpou, pois tem a sustentá-lo um Congresso abastardado, um Poder Judiciário cúmplice, uma mídia monopolizada, e, acima de tudo, o poder do sistema financeiro nacional-internacional. É o governo da avenida Paulista, dos rentistas e dos sonegadores. Trata-se, pois, de uma ordem político-governamental que precisa ser detida para que o país seja salvo – enquanto pode ser salvo, enquanto os estragos de hoje podem ser corrigidos. Não se trata, pois, de trocar seis por meia dúzia, Temer por Maia ou Joaquim ou Manuel, mas de fazer avançar uma nova correlação de forças, com base popular, fortemente apoiada pelos trabalhadores, e comprometida com a democracia, com o desenvolvimento e os interesses nacionais.

Nosso adversário fundamental, ponto de partida para definição dos campos políticos, é o projeto antinacional e antipopular desse governo de classe, a serviço de uma casa-grande pervertida. O qual, embora impopular, diria mesmo que intencionalmente impopular, não dá mostras de exaustão, e a cada disputa no Congresso – como essa última votação do pedido do STF de licença para processar o presidente acusado de chefiar uma quadrilha – vem a lume anunciar mais atraso, mais regressão. Desta feita, proclama que todas as suas forças, que não são poucas, estarão – rejeitado o pedido de licença para processar o ainda presidente – voltadas para a aprovação das emendas que destruirão a previdência social, depois de reduzir os direitos trabalhistas, criar 15 milhões de desempregados e praticamente legalizar o trabalho em condições de escravidão, em pleno Terceiro milênio, para pagar a fatura cobrada pelos ruralistas como paga pelo serviço prestado na garantia, com seus mais de 200 votos na Câmara dos Deputados, da blindagem do mandatário.

Nada obstante tudo isso, repito, parece que o grito das ruas silenciou, quando mais fortes e objetivos são os motivos justificadores e estimuladores da mobilização popular.

Como explicar o absenteísmo e a indiferença das ruas, notadamente dos trabalhadores e daqueles mais diretamente atingidos pela razia reacionária, quando o quadro politico está a reclamar a intervenção das massas?

O processo histórico cobra-nos uma reflexão. Talvez tenhamos mesmo de fazer autocrítica, porque sabemos que nenhum processo social, dentro de toda normalidade institucional, como é nosso projeto, sobrevive sem a participação ativa dos trabalhadores do campo e das cidades, aos quais se juntam os intelectuais orgânicos, os estudantes e o movimento social de um modo geral.

Nos termos de hoje, é preciso olhar para trás (relembremos: a História passada ilumina o futuro) para aprender com as grandes mobilizações populares do pretérito, e nenhuma é tão exemplar quanto a campanha das Diretas Já, a que devemos, em condições bem mais adversas das de hoje, a implosão do Colégio Eleitoral da ditadura, que, montado para consagrar Paulo Maluf, elegeu Tancredo Neves e abriu caminho – apesar da tragédia da morte do ex-governador de Minas Gerais, e a consequente posse de José Sarney –, para a redemocratização e o pacto de que resultaram a Constituinte e a Carta democrática de 1988. O sucesso político das Diretas deriva do ‘milagre’ da política de frente ampla que, superando os partidos e seus personagens, e suas querelas, e seus projetos particulares, unificou o povo e a nação em torno do fundamental naquela altura, luta pela a redemocratização.

O país perdeu a votação no Congresso com a rejeição da emenda Dante de Oliveira, mas ganhou a luta política pela redemocratização, como antes ganhara, também politicamente, o pleito pela Anistia. Com essa perspectiva é que as forças populares e democráticas, caminhando para além dos limites de nossos partidos e da esquerda brasileira, devem interpretar a exigência histórica da resistência, passo essencial para a eventualidade das eleições de 2018, pelas quais devemos lutar, e estamos lutando, mas sem jamais esquecermos de que elas, nada obstante necessárias, não constituem um fim em si mesmas nem encerram todo o projeto, mas constituem um momento, importantíssimo, certamente indispensável, de reconquista do espaço perdido, na política e na sociedade, na institucionalidade e no movimento social. Em outras palavras, é fundamental agir em sintonia com a convicção de que o projeto eleitoral, legítimo, não pode sobrepor-se ao político, que a tática deve ser, sempre, uma servidora da estratégia, a saber, a construção de uma nova sociedade, ou, pelo menos, a possibilidade de construir, nos escombros do status quo, os alicerces de um novo tempo.

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