segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Intervenção no RJ e a interrogação militar

Por Francisco Fonseca, no site Carta Maior:

Encalacrado pelo mais estrondoso fracasso de um “governo” desde Sarney, o consórcio golpista (rentistas, elites econômicas transnacionalizadas, setores majoritários do Poder Judiciário e do Congresso Nacional, Poder Executivo federal carcomido e grande Mídia) aposta tudo por sua sobrevivência, uma vez que não há um único aspecto ou setor que possa ser considerado exitoso após o golpe do impeachment.

Nesse contexto e sob o impacto da brutal humilhação (ao golpe, a Temer e aos golpistas, caso da mídia, particularmente das Organizações Globo) provocada pela escola de samba Paraíso Tuiuti, ao lado da previsível derrota na votação da “reforma” da Previdência e à mais completa ausência de perspectiva eleitoral do consórcio golpista, a intervenção militar representa o último e radicalmente irresponsável lance para tentar dar sobrevida à aliança clepto/plutocrática que vem destruindo o país.

Embora o consórcio golpista seja constituído por interesses diversos, internos e externos, não sendo portanto uníssono, a agenda neoliberal e conservadora (contra os pobres) os unifica. Interesses transnacionais, num país em que a desnacionalização fora parcialmente interrompida pelos governos petistas, ao lado da desindustrialização – provocada pelo rearranjo geoeconômico e geopolítico internacional – e da financeirização global, em que o Brasil é peça importante, mas subalterna, são forças estruturantes orientadoras do golpe. Portanto, não se pode analisar apenas os atores nacionais, notadamente os institucionais, para compreender a gravidade da movimentação das “placas tectônicas” da situação brasileira.

Mesmo que não se soubesse por qual meio se daria a nova “virada de mesa”, era esperável que ocorresse – como apontei em artigo anterior neste portal – tendo em vista a ausência de alternativas eleitorais do consórcio golpista e de sua insustentável agenda antissocial, assim como do imbróglio institucional ao qual o país está imerso.

A variável militar estava colocada desde o episódio do General Mourão – a coincidência de sobrenome entre 1964 e hoje não devem ser desprezadas –, embora não se saiba o que exatamente os militares pensam. Afinal, há várias questões cruciais, claramente não confluentes, que mobilizam as Forças Armadas: soberania nacional, de um lado, que, em tese, as opõe ao consórcio golpista, e temor da “desordem” (velho bordão conservador), por outro lado, que também em tese as coloca ao lado da “direita”.

A aventura militar no RJ é sobejamente conhecida, com resultados igualmente conhecidos, sendo que todos os ingredientes agora colocados apontam para sua repetição com resultados ainda piores. Trata-se, portanto, de cortina de fumaça cujos objetivos são inteiramente políticos, em sentido lato, e político-eleitorais, em sentido estrito. Mas, mais importante, intenta-se impor uma “nova agenda”, supostamente propositiva, que poderia legitimar o golpismo, dando-lhe inclusive um candidato: o próprio Temer, um General ou mesmo algum outsider conservador. Em outras palavras, a mais completa ausência de institucionalidade democrática (o impeachment, a Operação Lava Jato, a derrogação dos direitos, e agora a intervenção militar no RJ, entre uma infinidade de outros exemplos) intenta introduzir, de maneira forjada, a legitimidade do golpe, reitere-se. Uma espécie de “Plano Cruzado” tem por objetivo desfocar o “fora Temer” e tudo o que representa quanto à ilegitimidade de seu desgoverno a ao interminável “saco das maldades” contra os trabalhadores e os pobres.

Um tal movimento mobilizando a variável militar era esperado, reitere-se. O ponto de interrogação diz respeito às Forças Armadas enquanto instituição e suas principais lideranças. Aqui abre-se um manancial de dúvidas cujo esclarecimento será fundamental aos destinos do país e da perspectiva da democracia ou do autoritarismo.

Especificamente quanto à atuação dos militares nos conflitos urbanos, as declarações da alta cúpula dos militares aparentemente recusam a participação das Forças Armadas em segurança pública. Apesar disso, não estão claras suas possíveis dissensões internas e posições. O próprio fenômeno do bolsonarismo aparentemente as divide. Em outras palavras, há um sem-número de interrogações a serem esclarecidas.

É claro que os militares não querem se associar, enquanto instituição, ao consórcio clepto/plutocrático/antissocial. Contudo, tem sido concitados por grupos diversos: tresloucados das classes médias conservadores; os mais variados grupos de direita que têm vicejado no país; bolsonaristas, com ou sem Bolsonaro; o eterno discurso da “desordem”, mesmo que infundado; o ambiente de intolerância e polarização provocado pela direita; “linhas-duras” de Temer, como o General Etchegoyen; as brutais consequências que impactam o Estado Nacional, as classes populares e a adesão à democracia provocadas pela Emenda Constitucional (EC) 95, que congela gastos sociais, preservando apenas uma pequena casta. Os efeitos sistêmicos dessa EC já começam a ser sentidos e jogarão o país na mais completa conflagração social: seja ela manifesta por grupos políticos, pela criminalidade comum, pelo crime organizado ou pela associação desses fatores, entre outros. O “tecido social” está a pleno caminho de seu esgarçamento radical, com respostas as mais distintas possíveis, todas drásticas. Aos militares caberão – no contexto da luta de classes e das correlações de força – optar ou pela democracia política e social, cujo caminho foi trilhado com grande êxito pela era petista, mesmo que moderada, ou pela irresponsável associação com o consórcio clepto/plutocrático/antissocial.

Se for pela primeira, estarão ao lado das tratativas, em seu papel constitucional, de resgatar a democracia e a soberania nacional, o que implica não aceitar o papel de “boia de salvação” dos golpistas. Se pela segunda, estarão cavando sua própria sepultura, da qual escaparam em 1985 com a “transição lenta, segura e gradual”, diferentemente de seus congêneres argentinos. Essa é uma das grandes questões a serem analisada daqui para frente.

Seja como for, a aventura do golpe, cujo fracasso é retumbante em seu sentido mais profundo e amplo, e cujas consequências à política, à economia, à sociedade e ao sentido de “Nação” são criminosas, já demonstrou que não tem limites.

As eleições deste ano, se mantidas, só podem ocorrer, do ponto de vista do consórcio golpista, por meio da seguinte equação: impedimento de Lula (aparentemente estabelecido); perseguição política, sutil e/ou aberta, à esquerda: partidos, movimentos sociais, agenda e estética. Um eventual banho de sangue nas resistências sociais a uma eventual prisão de Lula ganha contornos épicos ao tornar-se possível; candidato competitivo da direita com apoio da grande mídia; agenda de segurança pública ampliando-se a diversas esferas (censura, combate aos movimentos sociais, higienização social, criminalização da pobreza, racismo social e institucional e violência institucional crescente); eleição de um Congresso Nacional igual ou pior, do ponto de vista de interesses conversadores, que o atual. A confirmação, pelo TSE, da autofinanciamento sem limites das campanhas eleitorais aponta para isso.

Sem essa equação ou parte substantiva dela, não há porque o consórcio golpista manter a tênue institucionalidade, o que inclui as eleições.

Portanto, por um lado a questão é saber qual o papel das Forças Armadas nesse tabuleiro cheio de armadilhas. Por outro lado é fundamental saber qual o papel a ser jogado pelas forças populares, progressistas e de esquerda: nas ruas (greves, paralisações e manifestações), no que resta das instituições e nas inúmeras formas de protesto: da Tuiuti (que fora censurada e ameaçada no desfile das campeãs do Carnaval) às mais diversas manifestações de insubordinação civil e cultural!

Embora se estreitando, o jogo está aberto!

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