Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O julgamento do candidato presidencial Jair Bolsonaro no STF encerrou-se de forma melancólica do ponto de vista do Estado Democrático de Direito. Graças ao voto de minerva de Alexandre Morais, Bolsonaro livrou-se de uma denúncia por crime de racismo, definido como inafianciável e imprescritível pelo artigo 5 inciso XLII da Constituição, a ser punido com pena de um a cinco anos de prisão.
O argumento é que, culpado ou não de racismo, Bolsonaro deve ser protegido pela imunidade parlamentar, que garante a liberdade de expressão a deputados e senadores. Não vamos discutir essa cláusula. Mas, num período histórico no qual o STF tem demonstrado uma tolerância evidente diante de reconhecidos atropelos constitucionais, em particular quando envolvem direitos de Luiz Inacio Lula da Silva e outros réus da Lava Jato, cabe reconhecer que a decisão sobre Bolsonaro confirma a tradição seletiva do judiciário brasileiro, que aplica ou ignora a Constituição ao sabor de conveniências políticas. Cabe discutir a decisão, portanto.
A mesma Constituição empregada como argumento para defender os direitos do deputado foi ignorada para negar, há apenas cinco meses, por 6 votos a 5, que Lula tivesse tivesse direito ao transito em julgado em sentença penal condenatória, previsto em seu artigo 5o LXI.
Nunca é demais recordar. Se o Tribunal tivesse respeitado os princípios constitucionais com o mesmo rigor exibido diante de Bolsonaro, Lula sequer teria sido conduzido a prisão em 7 de abril. Este fato, por si só daria uma outra temperatura à campanha presidencial, que ontem atravessou um momento especialmente dramático com a troca forçada de candidatura presidencial na chapa do Partido dos Trabalhadores. O mesmo teria ocorrido se, entre dezembro de 2017 e agosto de 2018, a ministra Carmen Lúcia tivesse colocado, em pauta, duas Ações de Constitucionalidade, assinadas por renomados juristas do país, que tratavam do mesmo assunto.
Num país no qual o crime de racismo não é combatido mesmo quando suas vítimas são ídolos populares, como ensinam tantos casos graves envolvendo craques de futebol, é possível defender a tese de que a submissão do candidato que lidera as pesquisas presidenciais ao debate jurídico sobre comportamento racista seria uma medida de utilidade pública. Seria uma forma de reconhecer a relevância do assunto e, considerando a projeção que Bolsonaro tem adquirido, uma maneira didática de promover um debate indispensável à preservação dos direitos e da dignidade dos mais de 100 milhões de brasileiros que se identificam como afrodescendentes. Afinal, a campanha vai passar mas o racismo, sem duvida, ficará.
Conforme recorda Ministério Público Federal na denúncia levada ao STF, baseada em discurso feito na sede carioca da Hebraica, Bolsonaro "tratou os quilombolas como seres inferiores, igualando-os à mercadoria (discriminação) e ainda reputou-os inúteis, preguiçosos (preconceito) e também incitou a discriminação em relação aos estrangeiros, estimulando os presentes, um público de cerca de trezentas pessoas, além de outras pessoas que tiveram acesso a vídeos divulgados do evento, a pensarem e agirem de igual forma (induzimento e/ou incitação)" .
Favorável a abertura da investigação, em seu voto o ministro Luiz Roberto Barroso argumentou: “Não se trata de pré-julgamento, de juízo de culpabilidade. Aqui é o momento de mero recebimento da denúncia. Eu penso que o modo como foram tratadas as pessoas negras, os quilombolas, e pessoas de orientação sexual gay, comportam o recebimento da denúncia e o prosseguimento do processo, ” argumentou, referindo-se a acusação contra Bolsonaro, assinada pelo Ministério Público Federal. Ao dar seu voto antes da decisão final, Barroso advertiu que "não abrir a ação penal significaria passar uma mensagem errada, de que é possível tratar com desprezo sejam as pessoas negras sejam as pessoas homossexuais. Homofobia mata.”
Para além da questão técnica, havia uma questão política em jogo. Um país no qual a AP 470 inaugurou uma fase da História onde a justiça serve abertamente a fins políticos, a decisão do STF poderá servir de escudo para Bolsonaro tentar, a longo da campanha presidencial, fugir de questionamentos desfavoráveis sobre seus costumeiros pronunciamentos de conteúdo ofensivo e preconceituoso.
Com um pensamento de raiz anti-democrática, que tem origem nos movimentos fascistas do século passado, Bolsonaro faz das manifestações preconceituosas o centro de um projeto político. Como sabemos, suas ideias sobre economia, tema obrigatório da campanha, foram terceirizadas pelo setor mais conservador do capital financeiro, e se resumem ao projeto escandaloso, de qualquer ponto de vista, de quem pretende que "continuar o que Temer vem fazendo, só que mais rápido", nas palavras do guru Paulo Guedes.
O ponto importante, do ponto de vista da retórica e do poder de mobilização, encontra-se nas questões políticas. Bolsonaro constrói sua candidatura a partir de uma visão de mundo organizada em raças, noção que o conservadorismo brasileiro cultiva desde os tempos em que defendia o cativeiro contra o abolicionismo, com base no argumento de que "escravidão civiliza o negro", desenvolvido pelo romancista José de Alencar, gênio literário do século XIX que era um escravocrata abominável e repulsivo.
O núcleo ideológico de Bolsonaro é organizado a partir da noção de que existem homens inferiores e superiores em função da herança genética e que esta condição determina sua existência no mundo, seu modo de vida e sua riqueza. Ele fala de negros e indígenas com desprezo e de japoneses ( "raça com vergonha na cara") com admiração. Possui, explicitamente, uma tabela de méritos próprios para gêneros masculino e feminino, e uma terceira para o mundo LGBT.
Recordando que a herança genética é -- objetivamente -- um traço imutável da condição humana, é fácil concluir que, do ponto de vista de Bolsonaro, todos devem estar satisfeitos com aquilo que possuem e receberam dos próprios antepassados. Neste raciocínio, eventuais manifestações de descontentamento são injustificados fatores de desordem, que não têm chance de produzir qualquer resultado prático e apenas cometem o pecado de perturbar o funcionamento natural das coisas.
A partir deste código cultural, alimentado pelas correntes do suposto "racismo científico" que a humanidade abandonou há mais de 100 anos e incinerou em estado de choque e horror produzido pelas câmaras de gás da Segunda Guerra, Bolsonaro representa um projeto de ordem social que naturaliza a hierarquia e a desigualdade, reservando o sentimento de ódio e o emprego da violência contra aqueles que não se mostram satisfeitos com o lugar que lhes foi reservado previamente.
O conformismo étnico do vice Hamilton Mourão, adepto da fábula da elite cafeeira sobre povos inferiores -- portugueses, negros, índios -- que deram origem ao brasileiro é parte do mesmo cenário.
A aproximação com o ideário de Paulo Guedes, cuja matriz econômica foi forjada nos laboratórios do Chile sob a ditadura de Augusto Pinochet, é menos casual do que se pode imaginar, portanto.
Na caricatura ideológica que serve de modelo de sociedade para Bolsonaro, a economia de Mercado é forma superior de produção de riqueza porque respeita os indivíduos, recompensando devidamente o talento de cada um. Já Bem-Estar social, programas compensatórios de renda e raça são puro desperdício, como direitos dos trabalhadores e outros benefícios -- salvo as pensões de militares e suas famílias, claro, pois ninguém é de ferro.
"Quero o fim do comunismo", me disse um pequeno empresário arruinado, que procura se reerguer ao volante de um Uber. Sempre que encontra uma brecha, ele tenta convencer passageiros a votar em Bolsonaro. O empregado de um pequeno comércio nos Jardins, em São Paulo, fulaniza o argumento. Diz que o Brasil precisa livrar-se de "comunistas como o Fernando Henrique Cardoso".
Neste ambiente, o racismo explícito, o rebaixamento das mulheres, o tratamento desprezível em relação a povos indígenas, os ataques aos gays, não podem ser vistos como perturbadores ou nocivos. Jamais irão merecer um pedido de desculpas, um gesto de arrependimento -- pois são elementos de distúrbio da ordem natural da existência das raças humanas, harmonizadas regime de mercado.
Voltando ao ponto debatido pelo STF e que envolve pelo menos 53% dos brasileiros que se identificam como afrodescendentes. Num país que só muito recentemente que deu início - através das cotas - a um necessário ajuste de contas com a segregação racial, que está longe de alcançar sua dimensão histórica, ofensas racistas são chamados à uma ordem na qual todos precisam saber qual é seu devido lugar. Todos têm a obrigação de reconhecer que não têm o direito de reclamar quando se sentem ofendidos.
Esta é a mensagem do 3 a 2 a favor de Bolsonaro, ontem. Alguma dúvida?
O julgamento do candidato presidencial Jair Bolsonaro no STF encerrou-se de forma melancólica do ponto de vista do Estado Democrático de Direito. Graças ao voto de minerva de Alexandre Morais, Bolsonaro livrou-se de uma denúncia por crime de racismo, definido como inafianciável e imprescritível pelo artigo 5 inciso XLII da Constituição, a ser punido com pena de um a cinco anos de prisão.
O argumento é que, culpado ou não de racismo, Bolsonaro deve ser protegido pela imunidade parlamentar, que garante a liberdade de expressão a deputados e senadores. Não vamos discutir essa cláusula. Mas, num período histórico no qual o STF tem demonstrado uma tolerância evidente diante de reconhecidos atropelos constitucionais, em particular quando envolvem direitos de Luiz Inacio Lula da Silva e outros réus da Lava Jato, cabe reconhecer que a decisão sobre Bolsonaro confirma a tradição seletiva do judiciário brasileiro, que aplica ou ignora a Constituição ao sabor de conveniências políticas. Cabe discutir a decisão, portanto.
A mesma Constituição empregada como argumento para defender os direitos do deputado foi ignorada para negar, há apenas cinco meses, por 6 votos a 5, que Lula tivesse tivesse direito ao transito em julgado em sentença penal condenatória, previsto em seu artigo 5o LXI.
Nunca é demais recordar. Se o Tribunal tivesse respeitado os princípios constitucionais com o mesmo rigor exibido diante de Bolsonaro, Lula sequer teria sido conduzido a prisão em 7 de abril. Este fato, por si só daria uma outra temperatura à campanha presidencial, que ontem atravessou um momento especialmente dramático com a troca forçada de candidatura presidencial na chapa do Partido dos Trabalhadores. O mesmo teria ocorrido se, entre dezembro de 2017 e agosto de 2018, a ministra Carmen Lúcia tivesse colocado, em pauta, duas Ações de Constitucionalidade, assinadas por renomados juristas do país, que tratavam do mesmo assunto.
Num país no qual o crime de racismo não é combatido mesmo quando suas vítimas são ídolos populares, como ensinam tantos casos graves envolvendo craques de futebol, é possível defender a tese de que a submissão do candidato que lidera as pesquisas presidenciais ao debate jurídico sobre comportamento racista seria uma medida de utilidade pública. Seria uma forma de reconhecer a relevância do assunto e, considerando a projeção que Bolsonaro tem adquirido, uma maneira didática de promover um debate indispensável à preservação dos direitos e da dignidade dos mais de 100 milhões de brasileiros que se identificam como afrodescendentes. Afinal, a campanha vai passar mas o racismo, sem duvida, ficará.
Conforme recorda Ministério Público Federal na denúncia levada ao STF, baseada em discurso feito na sede carioca da Hebraica, Bolsonaro "tratou os quilombolas como seres inferiores, igualando-os à mercadoria (discriminação) e ainda reputou-os inúteis, preguiçosos (preconceito) e também incitou a discriminação em relação aos estrangeiros, estimulando os presentes, um público de cerca de trezentas pessoas, além de outras pessoas que tiveram acesso a vídeos divulgados do evento, a pensarem e agirem de igual forma (induzimento e/ou incitação)" .
Favorável a abertura da investigação, em seu voto o ministro Luiz Roberto Barroso argumentou: “Não se trata de pré-julgamento, de juízo de culpabilidade. Aqui é o momento de mero recebimento da denúncia. Eu penso que o modo como foram tratadas as pessoas negras, os quilombolas, e pessoas de orientação sexual gay, comportam o recebimento da denúncia e o prosseguimento do processo, ” argumentou, referindo-se a acusação contra Bolsonaro, assinada pelo Ministério Público Federal. Ao dar seu voto antes da decisão final, Barroso advertiu que "não abrir a ação penal significaria passar uma mensagem errada, de que é possível tratar com desprezo sejam as pessoas negras sejam as pessoas homossexuais. Homofobia mata.”
Para além da questão técnica, havia uma questão política em jogo. Um país no qual a AP 470 inaugurou uma fase da História onde a justiça serve abertamente a fins políticos, a decisão do STF poderá servir de escudo para Bolsonaro tentar, a longo da campanha presidencial, fugir de questionamentos desfavoráveis sobre seus costumeiros pronunciamentos de conteúdo ofensivo e preconceituoso.
Com um pensamento de raiz anti-democrática, que tem origem nos movimentos fascistas do século passado, Bolsonaro faz das manifestações preconceituosas o centro de um projeto político. Como sabemos, suas ideias sobre economia, tema obrigatório da campanha, foram terceirizadas pelo setor mais conservador do capital financeiro, e se resumem ao projeto escandaloso, de qualquer ponto de vista, de quem pretende que "continuar o que Temer vem fazendo, só que mais rápido", nas palavras do guru Paulo Guedes.
O ponto importante, do ponto de vista da retórica e do poder de mobilização, encontra-se nas questões políticas. Bolsonaro constrói sua candidatura a partir de uma visão de mundo organizada em raças, noção que o conservadorismo brasileiro cultiva desde os tempos em que defendia o cativeiro contra o abolicionismo, com base no argumento de que "escravidão civiliza o negro", desenvolvido pelo romancista José de Alencar, gênio literário do século XIX que era um escravocrata abominável e repulsivo.
O núcleo ideológico de Bolsonaro é organizado a partir da noção de que existem homens inferiores e superiores em função da herança genética e que esta condição determina sua existência no mundo, seu modo de vida e sua riqueza. Ele fala de negros e indígenas com desprezo e de japoneses ( "raça com vergonha na cara") com admiração. Possui, explicitamente, uma tabela de méritos próprios para gêneros masculino e feminino, e uma terceira para o mundo LGBT.
Recordando que a herança genética é -- objetivamente -- um traço imutável da condição humana, é fácil concluir que, do ponto de vista de Bolsonaro, todos devem estar satisfeitos com aquilo que possuem e receberam dos próprios antepassados. Neste raciocínio, eventuais manifestações de descontentamento são injustificados fatores de desordem, que não têm chance de produzir qualquer resultado prático e apenas cometem o pecado de perturbar o funcionamento natural das coisas.
A partir deste código cultural, alimentado pelas correntes do suposto "racismo científico" que a humanidade abandonou há mais de 100 anos e incinerou em estado de choque e horror produzido pelas câmaras de gás da Segunda Guerra, Bolsonaro representa um projeto de ordem social que naturaliza a hierarquia e a desigualdade, reservando o sentimento de ódio e o emprego da violência contra aqueles que não se mostram satisfeitos com o lugar que lhes foi reservado previamente.
O conformismo étnico do vice Hamilton Mourão, adepto da fábula da elite cafeeira sobre povos inferiores -- portugueses, negros, índios -- que deram origem ao brasileiro é parte do mesmo cenário.
A aproximação com o ideário de Paulo Guedes, cuja matriz econômica foi forjada nos laboratórios do Chile sob a ditadura de Augusto Pinochet, é menos casual do que se pode imaginar, portanto.
Na caricatura ideológica que serve de modelo de sociedade para Bolsonaro, a economia de Mercado é forma superior de produção de riqueza porque respeita os indivíduos, recompensando devidamente o talento de cada um. Já Bem-Estar social, programas compensatórios de renda e raça são puro desperdício, como direitos dos trabalhadores e outros benefícios -- salvo as pensões de militares e suas famílias, claro, pois ninguém é de ferro.
"Quero o fim do comunismo", me disse um pequeno empresário arruinado, que procura se reerguer ao volante de um Uber. Sempre que encontra uma brecha, ele tenta convencer passageiros a votar em Bolsonaro. O empregado de um pequeno comércio nos Jardins, em São Paulo, fulaniza o argumento. Diz que o Brasil precisa livrar-se de "comunistas como o Fernando Henrique Cardoso".
Neste ambiente, o racismo explícito, o rebaixamento das mulheres, o tratamento desprezível em relação a povos indígenas, os ataques aos gays, não podem ser vistos como perturbadores ou nocivos. Jamais irão merecer um pedido de desculpas, um gesto de arrependimento -- pois são elementos de distúrbio da ordem natural da existência das raças humanas, harmonizadas regime de mercado.
Voltando ao ponto debatido pelo STF e que envolve pelo menos 53% dos brasileiros que se identificam como afrodescendentes. Num país que só muito recentemente que deu início - através das cotas - a um necessário ajuste de contas com a segregação racial, que está longe de alcançar sua dimensão histórica, ofensas racistas são chamados à uma ordem na qual todos precisam saber qual é seu devido lugar. Todos têm a obrigação de reconhecer que não têm o direito de reclamar quando se sentem ofendidos.
Esta é a mensagem do 3 a 2 a favor de Bolsonaro, ontem. Alguma dúvida?
1 comentários:
as votações do stf estão parecendo jogo combinado: é a justiSSa!
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