A eleição de Jair Bolsonaro marca o encerramento de quarenta anos de história brasileira.
O marco inicial encontra-se em 1978, quando nasceram as greves operárias que anunciaram a agonia da ditadura militar e o nascimento do mais democrático sistema político da história brasileira.
O capítulo final foi escrito domingo passado, quando Bolsonaro foi eleito presidente, para tentar colocar de pé o mais radical projeto de extrema-direita na história da República.
Ao longo de quatro décadas, sob um amplo regime de respeito às liberdades públicas, a maioria de brasileiros e brasileiras obteve vitórias inegáveis no bem-estar social, na proteção aos direitos individuais, na modernização nas relações de trabalho e na redução, ainda que parcial, limitada, insuficiente, de uma desigualdade histórica.
Principal referência dessas mudanças no plano institucional, a Constituição de 1988, que fixou inúmeras prioridades e permitiu tantos progressos, perdeu atualidade e vigor.
"A Constituição é a mesma mas na vida real estamos assistindo a construção de um Estado autoritário, com viés ditatorial", formula um veterano observador da política brasileira, ator e espectador de lutas democráticas decisivas há meio século.
O resultado da eleição confirma o desfecho temido por milhões de brasileiros, que se uniram a Fernando Haddad no segundo turno para tentar impedir a eleição de Bolsonaro.
Entre eles estava Joaquim Barbosa, presidente do Superior Tribunal Federal entre 2012 e 2014, relator da AP 470, conhecida como Mensalão.
"Pela primeira vez em 32 anos de exercício do direito de voto um candidato me inspira medo", tuitou Joaquim Barbosa.
O enredo decisivo da campanha foi uma articulação subterrânea que impôs rumos e ritmos, redesenhando o quadro da disputa ao sabor de suas conveniências, através do manejo permanente do Judiciário, dos grandes equipamentos de mídia. Mas, acima de tudo, pela intervenção da cúpula das Forças Armadas, em particular do Exército.
Uma comunhão de oficiais da ativa e da reserva articulou a candidatura de Bolsonaro e definiu a linha geral de sua campanha, a começar pela defesa sem ressalvas da ditadura de 64, inclusive a tortura e a execução de opositores.
Num movimento na direção inversa da distensão política negociada pelos governos Geisel-Figueiredo, esses oficiais se aproximam dos centros de decisão do Estado, ocupando todo espaço disponível, inclusive uma inédita assessoria da presidência do cada vez mais estratégico Supremo Tribunal Federal.
Demonstrando sua peculiar atenção aos ventos da política, o ministro Gilberto Kassab acaba de nomear um general para presidir os Correios.
Ao longo da campanha, lideranças do Exército demonstraram que tinham lado numa disputa na qual eram legalmente obrigados a manter-se neutros, em silêncio respeitoso e disciplinado - como determina a Constituição - a espera da decisão soberana do eleitorado. Numa repetição de momentos dramáticos da precária democracia brasileira, às voltas com inúmeras intervenções militares na vida pública desde o 15 de novembro de 1889, desta vez o veto a Lula foi a verdadeira "questão militar" da segunda década do século XXI. Mobilizou o comandante do Exército para ir para cima do Supremo no momento em que o plenário deliberava sobre a permanência de Lula na prisão, sob a luz do inciso LVIII do artigo 5 da Constituição, que estabelece que "ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
O comandante voltou a atuar quando o TSE pautou o debate sobre a resolução do Comitê de Direitos Humanos da ONU que protegia os direitos de Lula como candidato. No 7 de setembro, quando faltava um mês para o primeiro turno, o Comandante Militar do Sudeste, general Luiz Eduardo Ramos Batista Pereira, enviou outro recado na mesma direção: "Não podemos transigir com as leis vigentes, buscando atender a interesses pessoas ou até mesmo político-partidários. Todos nós, militares ou civis, estamos sob o jogo do império da lei".
A permanência de Lula na prisão e o veto a sua candidatura representaram a travessia de uma fronteira institucional comparável à cassação de Juscelino Kubitscheck, dois meses depois do golpe militar de 64. Favoritíssimo no pleito previsto para outubro de 1965, a perda de direitos de JK abriu caminho para o fim das eleições diretas, que havia permitido a escolha de quatro presidentes em urna, entre 1946 e 1960. O primeiro general-presidente prolongou o próprio mandato e a partir de então seus quatro sucessores seriam escolhidos por tanques e baionetas.
Já no segundo turno da campanha de 2018, quando Patrícia Campos Mello denunciou na Folha de S. Paulo o esquema de Caixa 2 que financiava as fake news que ajudaram a eleger Bolsonaro, coube ao general da reserva Sérgio Etchegoyen desempenhar um papel notável. Embora tenha suas diferenças com o núcleo puro e duro que acompanha Bolsonaro, Etchegoyen é contemporâneo de geração e de ideias. Entre outras semelhanças, é um adversário irredutível também das investigações sobre tortura e assassinatos de presos políticos durante o regime militar.
O marco inicial encontra-se em 1978, quando nasceram as greves operárias que anunciaram a agonia da ditadura militar e o nascimento do mais democrático sistema político da história brasileira.
O capítulo final foi escrito domingo passado, quando Bolsonaro foi eleito presidente, para tentar colocar de pé o mais radical projeto de extrema-direita na história da República.
Ao longo de quatro décadas, sob um amplo regime de respeito às liberdades públicas, a maioria de brasileiros e brasileiras obteve vitórias inegáveis no bem-estar social, na proteção aos direitos individuais, na modernização nas relações de trabalho e na redução, ainda que parcial, limitada, insuficiente, de uma desigualdade histórica.
Principal referência dessas mudanças no plano institucional, a Constituição de 1988, que fixou inúmeras prioridades e permitiu tantos progressos, perdeu atualidade e vigor.
"A Constituição é a mesma mas na vida real estamos assistindo a construção de um Estado autoritário, com viés ditatorial", formula um veterano observador da política brasileira, ator e espectador de lutas democráticas decisivas há meio século.
O resultado da eleição confirma o desfecho temido por milhões de brasileiros, que se uniram a Fernando Haddad no segundo turno para tentar impedir a eleição de Bolsonaro.
Entre eles estava Joaquim Barbosa, presidente do Superior Tribunal Federal entre 2012 e 2014, relator da AP 470, conhecida como Mensalão.
"Pela primeira vez em 32 anos de exercício do direito de voto um candidato me inspira medo", tuitou Joaquim Barbosa.
O enredo decisivo da campanha foi uma articulação subterrânea que impôs rumos e ritmos, redesenhando o quadro da disputa ao sabor de suas conveniências, através do manejo permanente do Judiciário, dos grandes equipamentos de mídia. Mas, acima de tudo, pela intervenção da cúpula das Forças Armadas, em particular do Exército.
Uma comunhão de oficiais da ativa e da reserva articulou a candidatura de Bolsonaro e definiu a linha geral de sua campanha, a começar pela defesa sem ressalvas da ditadura de 64, inclusive a tortura e a execução de opositores.
Num movimento na direção inversa da distensão política negociada pelos governos Geisel-Figueiredo, esses oficiais se aproximam dos centros de decisão do Estado, ocupando todo espaço disponível, inclusive uma inédita assessoria da presidência do cada vez mais estratégico Supremo Tribunal Federal.
Demonstrando sua peculiar atenção aos ventos da política, o ministro Gilberto Kassab acaba de nomear um general para presidir os Correios.
Ao longo da campanha, lideranças do Exército demonstraram que tinham lado numa disputa na qual eram legalmente obrigados a manter-se neutros, em silêncio respeitoso e disciplinado - como determina a Constituição - a espera da decisão soberana do eleitorado. Numa repetição de momentos dramáticos da precária democracia brasileira, às voltas com inúmeras intervenções militares na vida pública desde o 15 de novembro de 1889, desta vez o veto a Lula foi a verdadeira "questão militar" da segunda década do século XXI. Mobilizou o comandante do Exército para ir para cima do Supremo no momento em que o plenário deliberava sobre a permanência de Lula na prisão, sob a luz do inciso LVIII do artigo 5 da Constituição, que estabelece que "ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
O comandante voltou a atuar quando o TSE pautou o debate sobre a resolução do Comitê de Direitos Humanos da ONU que protegia os direitos de Lula como candidato. No 7 de setembro, quando faltava um mês para o primeiro turno, o Comandante Militar do Sudeste, general Luiz Eduardo Ramos Batista Pereira, enviou outro recado na mesma direção: "Não podemos transigir com as leis vigentes, buscando atender a interesses pessoas ou até mesmo político-partidários. Todos nós, militares ou civis, estamos sob o jogo do império da lei".
A permanência de Lula na prisão e o veto a sua candidatura representaram a travessia de uma fronteira institucional comparável à cassação de Juscelino Kubitscheck, dois meses depois do golpe militar de 64. Favoritíssimo no pleito previsto para outubro de 1965, a perda de direitos de JK abriu caminho para o fim das eleições diretas, que havia permitido a escolha de quatro presidentes em urna, entre 1946 e 1960. O primeiro general-presidente prolongou o próprio mandato e a partir de então seus quatro sucessores seriam escolhidos por tanques e baionetas.
Já no segundo turno da campanha de 2018, quando Patrícia Campos Mello denunciou na Folha de S. Paulo o esquema de Caixa 2 que financiava as fake news que ajudaram a eleger Bolsonaro, coube ao general da reserva Sérgio Etchegoyen desempenhar um papel notável. Embora tenha suas diferenças com o núcleo puro e duro que acompanha Bolsonaro, Etchegoyen é contemporâneo de geração e de ideias. Entre outras semelhanças, é um adversário irredutível também das investigações sobre tortura e assassinatos de presos políticos durante o regime militar.
Numa entrevista coletiva memorável pela sensação de impotência, enquanto a presidente do TSE, Rosa Weber, desmanchava-se em explicações sobre a dificuldade de ir em frente nas investigações, e até parecia pedir desculpas, o general permitiu-se fazer uma piada bíblica com o tema: “Adão e Eva foram expulsos do paraíso por uma fake news”. Também deixou clara a convicção de que todo esforço apurar o impacto uma denúncia, mesmo irrefutável, deveria ser visto com ceticismo: "um trabalho impossível de ser feito por uma agência em qualquer lugar do mundo. É um tema que exigirá muito mais educação, informação”.
Uma pequena nota publicada na Folha (3/11/2018) a partir de um levantamento do instituto Ideia Big Data junto a 1491 eleitores dá uma noção sobre a importância das notícias falsas no resultado da eleição. Nada menos que 83,2% dos eleitores do candidato do PSL tomaram como fato verdadeiro a notícia - inteiramente falsa - de que Fernando Haddad implantou o chamado "kit gay" nas escolas brasileiras, sugerindo que o candidato a presidente tentou influenciar o comportamento sexual dos adolescentes brasileiros.
Uma eleição presidencial de verdade define-se como aquele momento no qual o poder dos que controlam o Estado de modo permanente é submetido à vontade popular. Através de uma janela simbólica, os eleitores se elevam sobre as demais instituições e escolhem, no segredo das urnas, quem é o novo presidente. "Amas a incerteza e serás democrático", ensina Adam Przeworski, numa reflexão essencial sobre a política contemporânea.
Principal liderança popular do processo de mudanças iniciado em 1978, primeiro como liderança metalúrgica, mais tarde como Presidente da República e principal fiador dos quatro mandatos exercidos pelo PT no Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva permanece como referência para o país. Condenado numa sentença que contraria toda documentação disponível, cumpre pena numa cela solitária em Curitiba e deve "apodrecer na cadeia", conforme desejo expresso por Jair Bolsonaro. Principal responsável por mobilizações que alargaram a participação política para as camadas inferiorizadas da sociedade, sempre afastadas dos centros de decisão do Estado, em 2018 Lula cumpriu o destino de grande excluído da história recente. Sequer pode votar -- nem ser votado -- no pleito que abriu as portas para uma mudança regressiva na história do país.
O Estado-mínimo que constitui a perspectiva do guru Paulo Guedes, que desenhou o mapa da mina de interesses que acompanham o novo governo, não é pequeno apenas na economia. Também é miniaturizado nos direitos sociais, no espaço para a luta politica. Sua maior regra de convivência foi cunhada pelos barões do café da República Velha, um país no qual escravos libertos em 1888 não tiveram direito a qualquer reparação e vestiam os andrajos miseráveis das massas destituídas. Fingia-se que a questão social não era um caso de política mas de polícia. O voto era no cabresto. Esse é um caminho, agora - nem que seja pela fake news.
Para que o novo percurso seja percorrido, o aparato repressivo deve ser enorme, focado, bem dirigido, com um comando capaz de amenizar possíveis abusos com altos índices de popularidade prévia. Não há dúvida que Sérgio Moro se encaixa no figurino. Responsável pela prisão de Lula, o juiz da Lava Jato aceitou assumir o comando de um ministério da Justiça reconstruído para se transformar numa máquina de repressão a movimentos sociais, vigilância e perseguição sobre os dissidentes e os adversários políticos da nova ordem.
Responsável pelo ambiente de endeusamento sem reparos que acompanhou a ascensão de Moro através da Lava Jato, a mídia grande recolhe-se a um silêncio obsequioso, próprio de quem teme encontrar o rabo preso no final da história. Como acontecia nos tempos da ditadura militar, os brasileiros já são obrigados a procurar publicações estrangeiros para entender o que se passa no pais.
No El País, a publicação que acompanhou a derrocada do fascismo de Francisco Franco na Espanha, foi possível encontrar a mais lúcida interpretação da nomeação de Sérgio Moro para o ministério de Bolsonaro: "O fato de Moro ser ministro de Bolsonaro joga de forma inevitável uma sombra retrospectiva sobre se Lula teve ou não um julgamento justo, ou se desfrutou do direito de ter um juiz imparcial. Mas o ex-presidente, hoje na cadeia, não é o único prejudicado. A imagem da justiça no Brasil, como um dos pilares da democracia, é a principal danificada pelo caso Moro."
Uma pequena nota publicada na Folha (3/11/2018) a partir de um levantamento do instituto Ideia Big Data junto a 1491 eleitores dá uma noção sobre a importância das notícias falsas no resultado da eleição. Nada menos que 83,2% dos eleitores do candidato do PSL tomaram como fato verdadeiro a notícia - inteiramente falsa - de que Fernando Haddad implantou o chamado "kit gay" nas escolas brasileiras, sugerindo que o candidato a presidente tentou influenciar o comportamento sexual dos adolescentes brasileiros.
Uma eleição presidencial de verdade define-se como aquele momento no qual o poder dos que controlam o Estado de modo permanente é submetido à vontade popular. Através de uma janela simbólica, os eleitores se elevam sobre as demais instituições e escolhem, no segredo das urnas, quem é o novo presidente. "Amas a incerteza e serás democrático", ensina Adam Przeworski, numa reflexão essencial sobre a política contemporânea.
Principal liderança popular do processo de mudanças iniciado em 1978, primeiro como liderança metalúrgica, mais tarde como Presidente da República e principal fiador dos quatro mandatos exercidos pelo PT no Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva permanece como referência para o país. Condenado numa sentença que contraria toda documentação disponível, cumpre pena numa cela solitária em Curitiba e deve "apodrecer na cadeia", conforme desejo expresso por Jair Bolsonaro. Principal responsável por mobilizações que alargaram a participação política para as camadas inferiorizadas da sociedade, sempre afastadas dos centros de decisão do Estado, em 2018 Lula cumpriu o destino de grande excluído da história recente. Sequer pode votar -- nem ser votado -- no pleito que abriu as portas para uma mudança regressiva na história do país.
O Estado-mínimo que constitui a perspectiva do guru Paulo Guedes, que desenhou o mapa da mina de interesses que acompanham o novo governo, não é pequeno apenas na economia. Também é miniaturizado nos direitos sociais, no espaço para a luta politica. Sua maior regra de convivência foi cunhada pelos barões do café da República Velha, um país no qual escravos libertos em 1888 não tiveram direito a qualquer reparação e vestiam os andrajos miseráveis das massas destituídas. Fingia-se que a questão social não era um caso de política mas de polícia. O voto era no cabresto. Esse é um caminho, agora - nem que seja pela fake news.
Para que o novo percurso seja percorrido, o aparato repressivo deve ser enorme, focado, bem dirigido, com um comando capaz de amenizar possíveis abusos com altos índices de popularidade prévia. Não há dúvida que Sérgio Moro se encaixa no figurino. Responsável pela prisão de Lula, o juiz da Lava Jato aceitou assumir o comando de um ministério da Justiça reconstruído para se transformar numa máquina de repressão a movimentos sociais, vigilância e perseguição sobre os dissidentes e os adversários políticos da nova ordem.
Responsável pelo ambiente de endeusamento sem reparos que acompanhou a ascensão de Moro através da Lava Jato, a mídia grande recolhe-se a um silêncio obsequioso, próprio de quem teme encontrar o rabo preso no final da história. Como acontecia nos tempos da ditadura militar, os brasileiros já são obrigados a procurar publicações estrangeiros para entender o que se passa no pais.
No El País, a publicação que acompanhou a derrocada do fascismo de Francisco Franco na Espanha, foi possível encontrar a mais lúcida interpretação da nomeação de Sérgio Moro para o ministério de Bolsonaro: "O fato de Moro ser ministro de Bolsonaro joga de forma inevitável uma sombra retrospectiva sobre se Lula teve ou não um julgamento justo, ou se desfrutou do direito de ter um juiz imparcial. Mas o ex-presidente, hoje na cadeia, não é o único prejudicado. A imagem da justiça no Brasil, como um dos pilares da democracia, é a principal danificada pelo caso Moro."
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