Transpondo a linguagem truculenta de ideias do século XIX para o reacionarismo megalomaníaco do século XXI, o candidato eleito projeta um governo de ocupação em guerra contra o século XX.
Depois da Segunda Guerra Mundial começou a derrubada de preconceitos contra o voto feminino, a proteção ao trabalho, organizações sindicais, o pluralismo político-partidário, a laicidade do Estado.
Pelo fim do século, a crescente participação extraparlamentar de movimentos em defesa de minorias raciais, religiosas, do meio ambiente, da universalização dos direitos civis, da equiparação profissional entre mulheres e homens, conquistaram legitimidade e proteção constitucional.
Pois a preferência do presidente eleito e do suposto núcleo duro de sua campanha (filhos, Paulo Guedes e o presidente do PSL, partido cujos novíssimos representantes aparentam haver consumido doses industriais de LSD), todos são pelo desmantelamento de tudo isso.
Aos berros e pela profusão de ameaças físicas, busca o alvará para se estabelecer como o primeiro governo civil e brutamontes da história recente. Ou muito me engano ou esta não era a intenção da vastíssima maioria de seus cinquenta e tantos milhões de votos.
Sem racionalizações depois dos fatos, duvido que o modesto nicho de personagens, todos periféricos, dominasse desde o primeiro dia uma genial estratégia de campanha, derivada de sofisticada análise sociológica dos subterrâneos da sociedade brasileira. É provável que a possibilidade de vitória habitasse o mesmo cômodo dos sonhos impossíveis de milhares de candidatos derrotados à Câmara de Deputados e às Assembleias estaduais. Sem apoio empresarial, recursos humanos e meios convencionais de comunicação (que só perderam poder na análise tosca dos muito apressados), enfurnados nas guerrilhas das redes sociais, o candidato patinou durante semanas até ser identificado e adotado como intérprete da rebelião contra os políticos tradicionais, novos ou velhos (João Amoedo e Gilberto Boulos foram tão desprezados quanto Marina Silva e Geraldo Alckmin).
Durante grande parte do processo eleitoral todos pensavam que Jair Bolsonaro seria derrotado por qualquer um dos famosos. O PT esmerou-se na tese de que, na hora H, isto é, quando Lula o indicasse, seu poste ganharia as eleições. O que ninguém percebeu até tarde é que aquelas multidões rebeladas buscavam um poste para derrotar o PT. Por isso os nomes tradicionais não serviam, já haviam sido derrotados mais de uma vez. Jair Bolsonaro foi o poste que derrotou o PT. Até o empresariado demorou a entender que o apoio surpreendente a Bolsonaro, a partir do meio da campanha, não era a seu fascismo de fancaria, a seu evidente desconhecimento de economia, história, relações internacionais, leis, qualquer coisa. O apoio era ao antipetismo selvagem e, por extensão, a todas as nuances do que lhe parece, sem discernimento seguro, “esquerda”. Um poste derrotou o PT e, com ele, toda a esquerda democrática.
O candidato eleito parece ter consciência da inadequação ao que se espera de um presidente da República. Por trás do socorro a citações religiosas está a insegurança de quem não sabe o que responder senão a perguntas que propiciem declarações violentas contra isto ou este. A maioria delas, inviáveis sem prévio golpe de estado. Daí a terceirização do poder, a entrega de blocos do Estado a nomes que o protejam da responsabilidade de decisão autônoma. Daí a hesitação, idas e vindas e demoras sobre que políticas a praticar. Vitorioso em uma campanha vazia de propósitos específicos, sem dominar o que significa ser conservador, descobre que ameaças não governam, nem farão com que seus ministros sigam opiniões estapafúrdias como desafiar a China, ofender gratuitamente o mundo árabe ou liberar policiais para assassinatos impunes.
Um presidente fraco, com um estado desarticulado em blocos de poder, comandados por personagens sem traquejo nas negociações democráticas, tem tudo para assegurar a instabilidade atual. É o purgatório em que viveremos, nós e seus eleitores.
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