sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Bolsonaro e o Estado confessional

Por Frei Betto, no site Correio da Cidadania:

Tudo in­dica que te­remos pela frente um Es­tado con­fes­si­onal, dis­posto a negar o prin­cípio 
cons­ti­tu­ci­onal da lai­ci­dade. Algo pa­re­cido ao Des­tino Ma­ni­festo de­fen­dido pelos ul­tra­con­ser­va­dores dos EUA e go­vernos que pre­ferem se ater a Li­vros Sa­grados do que a Cons­ti­tui­ções.

“O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Este brado da Bri­gada de Pa­ra­que­distas do Exér­cito foi o mote de cam­panha do fu­turo pre­si­dente. Mas, que deus? O que levou a In­qui­sição a acender 
fo­gueiras a su­postos he­reges? O in­vo­cado pelo car­deal Spellman, de Nova York, ao aben­çoar 
sol­dados que foram perder a guerra no Vi­etnã?

O Deus de Jesus ou dos es­cribas e fa­ri­seus que o le­varam à cruz? O da fé de Hi­tler ou de Luther King, que deu a vida pelo fim da dis­cri­mi­nação ra­cial?

Tão logo soube de sua vi­tória elei­toral, Bol­so­naro de­clarou: “Afinal de contas, a nossa ban­deira, o nosso slogan, eu fui buscar na­quilo que muitos chamam de caixa de fer­ra­menta para con­sertar o homem e a mu­lher, que é a Bí­blia Sa­grada. Fomos em João, 8:32: “E co­nhe­ce­reis a ver­dade. E a verdade vos li­ber­tará”.

Qual ver­dade? A pós-ver­dade? A Bí­blia contém, sim, va­lores e pro­postas de como ho­mens e mulheres po­de­riam ser me­lhores. E todos con­tra­riam o dis­curso do fu­turo pre­si­dente, pois não admitem pre­con­ceitos, ofensas, tor­turas e nada que atente contra o que há de mais sa­grado para Deus – a vida do ser hu­mano.

“Quem é da ver­dade es­cuta a minha voz”, disse Jesus a Pi­latos (João 18,37). O go­ver­nador ro­mano re­trucou: “O que é a ver­dade?” (38). E ficou sem res­posta. Não porque Jesus pre­fe­risse não responder-lhe. Mas porque Pi­latos não tinha ou­vidos para ouvir nem olhos para ver que a ver­dade era a prá­tica li­ber­ta­dora de Jesus. Não valia a pena, na ex­pressão do pró­prio Na­za­reno, “atirar pé­rolas aos porcos” (Ma­teus 7,6).

No Brasil, o fu­turo mi­nistro das Re­la­ções Ex­te­ri­ores, Er­nesto Araújo, pro­fessa a fé de que a missão de Trump é res­gatar a ci­vi­li­zação oci­dental, sua fé cristã e as tra­di­ções for­jadas “pela cruz e pela espada”. Os in­dí­genas que o digam... E faz uma sa­lada se­mân­tica ao afirmar que o “glo­ba­lismo” é “es­sen­ci­al­mente um sis­tema anti-hu­mano e an­ti­cristão. A fé em Cristo sig­ni­fica, hoje, lutar contra o glo­ba­lismo, cujo ob­je­tivo úl­timo é romper a co­nexão entre Deus e o homem, tor­nado o homem escravo e Deus ir­re­le­vante. O pro­jeto me­ta­po­lí­tico sig­ni­fica, es­sen­ci­al­mente, abrir-se para a pre­sença de Deus na po­lí­tica e na his­tória”.

Cu­rioso é cons­tatar que a glo­ba­li­zação é uma in­venção cristã. Até a era cristã as re­li­giões es­tavam con­fi­nadas a et­nias. Não ti­nham como ob­je­tivo an­ga­riar adeptos de ou­tras cul­turas. Foi o Na­za­reno que en­viou os dis­cí­pulos a anunciá-lo “a todos os povos”, missão da qual o após­tolo Paulo se destacou como pi­o­neiro exem­plar.

Fra­cas­saram os pro­fetas do fim da re­li­gião e da morte de Deus, como Marx e Freud. Ela está mais viva do que nunca, e em certos países, como nos EUA, é no mí­nimo po­li­ti­ca­mente in­cor­reto pro­fessar o ateísmo.

A di­fe­rença é que, agora, a re­li­gião saiu dos tri­lhos das et­nias. Já não de­pende de um poder centralizado como o Va­ti­cano. O is­la­mismo ul­tra­passa as fron­teiras do mundo árabe e con­quista multi­dões de fiéis na África. As tra­di­ções re­li­gi­osas da Índia atraem adeptos em todo o Oci­dente. E o nome de Deus é in­vo­cado em vão por de­mo­cratas e ti­ranos. As notas de reais es­tampam “Deus seja lou­vado”, como nas de dó­lares consta In God we Trust (“Em Deus nós con­fi­amos”).

Se o Brasil adotar o mo­delo do Es­tado Le­viatã de Hobbes e re­tro­ceder ao sé­culo 19, pos­si­vel­mente te­remos, nas es­colas, a volta da con­cepção cri­a­ci­o­nista para ex­plicar as ori­gens do Uni­verso e da huma­ni­dade, e o des­carte su­mário de Darwin e do evo­lu­ci­o­nismo. E, na falta de mé­dicos que atendam às po­pu­la­ções mais po­bres, bas­taria en­sinar a su­plicar a Deus pela cura de todas as do­enças. Os recursos pú­blicos se­riam pou­pados e, caso não ocorra o mi­lagre, com cer­teza o Céu será o prêmio eterno de con­so­lação aos des­va­lidos.

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