sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Como o "kit gay" ajudou Damares Alves

Por Felipe Neves, no site The Intercept-Brasil:

Damares Alves estava com enxaqueca naquele fim de tarde em 2015. O expediente de uma quarta-feira de junho, às vésperas do recesso parlamentar, havia sido repleto de reuniões, telefonemas, assinaturas de papéis e caminhadas pelos corredores das duas Casas do Congresso Nacional.

Mesmo cansada, a futura ministra dos Direitos Humanos de Jair Bolsonaro aceitou conceder a entrevista que eu havia lhe pedido para o meu documentário Púlpito e Parlamento: Evangélicos Na Política.

Ao final da conversa de cerca de uma hora, perguntada sobre seu futuro, ela me daria um ultimato: “Eu estou cheia de tudo isso, vou parar de trabalhar aqui em dezembro de 2015”. Não parou.

Até chegar ao atual palco do poder Executivo federal, no entanto, a advogada e professora Damares Alves, 54, transitou por muitas coxias. Desde o início dos anos 2000, ela trabalha como poucos na organização do multifacetado bloco evangélico que hoje faz barulho no Congresso, mas que à época ainda era um grupo disforme. Sempre nos bastidores, ela treinou servidores, deu aulas de técnicas regimentais para parlamentares novos e ganhou status de celebridade – maior do que o de grande parte dos eleitos com quem atuou.

Quando nos encontramos para a entrevista, Alves acumulava, no parlamento, os cargos de assessora do senador Magno Malta e consultora jurídica das frentes parlamentares Evangélica e da Família e Apoio à Vida. Fora dele, ela ainda era Secretária Nacional do movimento Brasil Sem Aborto e membro dos grupos Maconha Não e Brasil Sem Drogas, além de figura carimbada em programas de entrevistas evangélicos.

Esse havia sido o motor da minha curiosidade: como a Brasília do baixo clero produzira, sem votos, uma formadora de opinião entre a parcela mais conservadora do público evangélico? E em que medida ela concentraria poder para alçar voos mais altos?

No burocrático e pouco aconchegante gabinete onde trabalhava, Alves me recebeu em meio a vários pedidos de “espera só um pouquinho que eu vou conversar aqui uma coisa importante e já volto”. Na sala, bandeiras dos movimentos em que ela milita tentavam levar alguma decoração ao amarelo das paredes, sem sucesso.

Fé, política e sobretudo infância são as causas que credenciaram Damares ao ministério de Bolsonaro. Evangélica de berço, ela frequenta e é pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, de tradição pentecostal.

Paralelo à religião, o outro grande fio condutor da carreira política da nova ministra começou a ser desenrolado na adolescência. Em Sergipe, ela se envolveu aos 14 anos com organizações ligadas à defesa da criança, dando aulas de alfabetização. A vocação para o tema teria nascido antes, da forma menos inspiradora possível: um abuso sexual sofrido aos 6 anos de idade. Hesitei em falar sobre o fato, dei algumas voltas antes de perguntar, mas ela foi rápida em entender e me contou, entre enfática e emocionada.

“Um homem se hospedou na minha casa dizendo ser missionário. Ele enganou meus pais e me submeteu a várias sessões de estupro. Tirou minha inocência, achei que eu não iria mais para o céu. Mais tarde eu tentei me suicidar, mas tive um encontro com Jesus que me livrou da morte. A partir dali, resolvi fazer daquela dor a minha bandeira.”

Entre o final dos anos 80 e a metade dos 90, a advogada acompanhou a criação de políticas públicas relacionadas à infância, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, assessorando políticos cristãos. Em 1998, ela aterrissou definitivamente na capital federal e passou a trabalhar com o deputado João Campos, futuro presidente da Frente Parlamentar Evangélica e de quem se tornaria chefe de gabinete.

No ano seguinte, ela participaria da equipe de assessores da CPI da Funai, introduzindo a causa indígena em seu portfólio. “Ali eu descobri que crianças eram enterradas vivas por suas famílias ao nascerem defeituosas. Resolvi lutar contra o infanticídio indígena para sempre.”

Em pouco tempo, porém, o ar-condicionado de uma sala com mesa e telefone empurraria a pastora para longe da rotina de gabinete. Damares Alves queria sair e transitar. Fora do cargo e já uma habitué dos corredores, ela passou a perceber o potencial contido no grupo de parlamentares evangélicos que começava a se organizar para votar o Código Civil, em 2002.

O novo conjunto jurídico tratava de temas caros ao pastorado, como taxação de igrejas, flexibilização dos conceitos de família e facilitação do divórcio. Antes divididos, os deputados e senadores das mais diversas igrejas precisariam abdicar das divergências teológicas em nome da proteção política.

Oficializada a partir daí, a Frente Parlamentar Evangélica passaria a atuar com mais força em torno de pautas morais no Congresso poucos anos depois. A votação do PL 122/2006, que criminaliza a homofobia, o debate sobre o aborto que marcaria a disputa à presidência em 2010 e a escalada do deputado-pastor Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, em 2013, colocariam o bloco religioso no centro da política nacional.

Pioneira na paranoia do ‘kit gay’

Damares Alves acompanhou tudo isso de perto, e foi justamente em 2013 que ela começou a sair das sombras dos parlamentares para os holofotes. Durante uma pregação noturna na Primeira Igreja Batista de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, a pastora apresentou aos fiéis uma série de slides com denúncias supostamente inéditas de erotização infantil promovida pelo Estado.

Muito antes de Jair Bolsonaro levar o chamado “kit gay” à bancada do Jornal Nacional na entrevista pré-eleições de 2018, Alves já apontava para a existência de cartilhas escolares “ensinando homossexualidade”.

Na fala, a advogada alertava, por exemplo, que a ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy teria pago um grupo de estudos para promover práticas de masturbação em bebês. E convocava: “a igreja evangélica está deixando isso acontecer. Vamos começar a reagir, porque estão detonando as nossas crianças”.

Damares Alves já havia gravado apresentações do tipo anteriormente, mas a popularização proporcionada pelo YouTube impulsionou o vídeo como nunca antes (a edição original tem hoje cerca de 650 mil views). O material foi, inclusive, meu primeiro contato com a imagem e a voz dela. Viral, ele passou a ser tema de encontros em igrejas, foi visto por padres, espíritas, médicos e até traduzido para outros idiomas. A partir de então, o boom de convites para palestras valorizaria o passe da pastora dentro e fora do Congresso.

A desconfiança sobre as falas de Damares Alves no vídeo, no entanto, pairou sobre a pesquisadora Magali Cunha, então no departamento de comunicação da Universidade Metodista de São Paulo. Em um relatório analisando todos os slides da palestra, ela constatou: sem fontes, a maior parte das informações continha inverdades, falsas associações e generalismos.

Contestada, a advogada me diria que não precisava provar as denúncias porque “existe entre a ovelha e o pastor o princípio da confiança mútua e da credibilidade”. E atacaria: Magali foi uma enviada do PT para deslegitimar sua atuação enquanto evangélica e conservadora. Ficou por isso mesmo.

Os deputados dela

Não foram poucas as vezes em que Alves parou para cumprimentar outros assessores, tirar fotos com fãs ou adiantar assuntos da pauta evangélica com parlamentares enquanto andávamos pelo Congresso.

Em uma das conversas, com prancheta e folhas de papel na mão, ela caminhava ao lado de um deputado enquanto planejava a derrubada do projeto de lei 882/2015, de Jean Wyllys, do PSOL carioca. Colocada em tramitação dois meses antes, a proposta sugeria a descriminalização do aborto no país e seria discutida na Comissão de Seguridade Social e Família nas semanas seguintes. “Vamos lutar para barrar isso”, Damares prometeu. O PL está parado no colegiado até hoje.

Me impressionou a forma como a assessora reivindicava para si uma espécie de propriedade dos parlamentares evangélicos. “Eu oro com os meus deputados. Eu leio a Bíblia com os meus deputados. Eu vou na casa deles orar quando eles estão tristes”, ela me diria sobre sua relação com os parlamentares.

Impressionante também era a quase onipresença com que ela se movia para acompanhar os eventos da bancada evangélica. Durante dois dias de gravações na Câmara, acompanhei-a na reunião semanal do grupo, encontrei-a no culto que ocorre às quartas-feiras pela manhã e em duas audiências públicas que tratavam de homossexualidade, ambas convocadas e com massiva presença dos parlamentares cristãos.

É possível dizer que a substância responsável por dar alguma consistência ao discurso de Jair Bolsonaro na última campanha estava sendo formulada nesses eventos. Grande parte das teses conspiratórias, dos inimigos comuns e das ações de contra-ataque a eles eram apontados ali. O futuro presidente, aliás, compartilhou do mesmo espaço com Damares Alves em diversas ocasiões, ambos como ouvintes e também participantes ativos.

Entre um evento e outro, Alves me pediu para acompanhar a entrevista que daria sobre “ideologia de gênero” para a rádio Canção Nova, de orientação católica. Entrar ao vivo na emissora demonstrava que a pregação da advogada não se resumia ao mundo evangélico, normalmente refratário à Igreja de Roma. Valia se aliar aos antigos inimigos dos protestantes em nome dos bons costumes.

“Eu fiz aula de biologia e nunca precisei levar uma banana para a sala e botar uma camisinha nela. Se os pais souberem de algo que os professores estão ensinando e que contrarie seus princípios, devem denunciar”, disse ela, em tom enérgico, ao apresentador do programa.

A consolidação do underground

A despeito dessas e de outras declarações que fazem estourar os tímpanos mais progressistas, é preciso dizer que Damares é um tanto complexa. Como a própria bancada evangélica, ela não não encarna um bloco monolítico de ideias e opiniões.

Contrariando Magno Malta, seu ex-chefe, ela me surpreendeu ao dizer que não endossa a redução da maioridade penal, por exemplo. “Quem defende crianças e adolescentes não pode ser a favor de prendê-los”.

Diferente ainda de Bolsonaro, ela já se manifestou contra a diferença salarial entre homens e mulheres e chegou a dizer que lutaria a favor de crianças discriminadas por sua orientação sexual. A declaração não caiu bem para parte do parlamento evangélico, diga-se.

Mal também soou a nomeação da pastora para quem esperava estar entre as primeiras opções do presidente. O próprio Magno Malta, dado como certo no cargo e depois preterido, declarou não ser coisa sua a indicação Damares Alves. Em uma entrevista de respostas curtas ao Intercept, ele diz não estar chateado com o esquecimento de Bolsonaro. Mas tampouco parece estar satisfeito.

Na última quinta, no Centro Cultural Banco do Brasil, sede da transição do governo, a escolha de Damares Alves pelo presidente eleito foi anunciada à imprensa.

Falando aos microfones de tantas emissoras provavelmente pela primeira vez, a agora ministra manteve o tom enérgico e professoral com o qual costuma pregar. Quase sempre com o indicador em riste, ela relatou brevemente seu histórico, anunciou suas principais medidas e deu os primeiros avisos aos desconfiados, já adiantando que a prioridade pasta será “a proteção da vida”.

Ao seu lado direito, a figura de Onyx Lorenzoni se impunha, mirando o horizonte. Outrora um deputado de pequena importância do DEM, o gaúcho foi alçado à Casa Civil do Planalto.

Naquele momento, os dois sintetizavam o tom do novo ministério: a vitória do baixo clero, que tem em Jair Bolsonaro seu maior troféu. A Brasília underground, agora, virou governo.

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