quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O Brasil, a Panair e o mito de Sísifo

Por Léa Maria Aarão Reis, no site Carta Maior:

O título do filme documentário Panair do Brasil com pouco mais de uma hora, do diretor Marco Altberg e recém exibido no Canal Curta! é singelo e aponta para o tema sem qualquer enfeite ou rodeio.

Ainda hoje a menção à aérea que foi alvo de uma das mais imorais perseguições políticas no início da ditadura civil-militar de 64 provoca lembranças fortes e comoção dos funcionários sobreviventes, das tripulações, dos descendentes das famílias proprietárias da empresa e da população que na época acompanhou, estarrecida e muda (por força do medo da repressão do regime) ao estupro da companhia pioneira da aviação comercial no país - uma das mais admiradas e queridas instituições da economia nacional, e da sua falência forçada, por traiçoeiro decreto, uma das marcas da mão forte dos regimes autoritários.

A carga de emoção contida no filme de Altberg é maior ainda quando revisitamos o caso da cassação da Panair do Brasil e o relacionamos ao país de hoje (des)governado pela extrema-direita dedicada a concluir o processo iniciado em 2017, da destruição da indústria nacional para entregá-la a grupos privados amigos e aos parceiros estrangeiros.

Situações que se repetem de tempos em tempos, na nossa História, e se perpetuam como narra o terrível mito de Sísifo ao qual, parece que infelizmente o Brasil está condenado.

Realizado há 24 anos, o documentário entrou na grade de programação do Curta! este mês, próximo dos 54 anos após o fechamento da empresa, em 10 de fevereiro de 1965, com a cassação abrupta de suas linhas, a interdição de seu saudável patrimônio (aeroportos em várias capitais brasileiras, a firma Celma, de manutenção de motores e aeronaves, e dezenas de imóveis no estrangeiro) e do escandaloso decreto da sua simulada falência assinado pelo marechal/general Castelo Branco e executado pelo sempre decepcionante judiciário brasileiro rendido (como hoje e em tantas outras ocasiões) pela pressão ostensiva e pessoal do ministro da Aeronáutica da ocasião, o brigadeiro Eduardo Gomes.

A Panair do Brasil era então a segunda linha em extensão, no ranking das aéreas do mundo.

O doc conta a história da Panair do Brasil comentada por ex-funcionários e por herdeiros das famílias de Mario Wallace Simonsen, de São Paulo, e Celso Rocha Miranda, do Rio de Janeiro. E de Paulo Sampaio que era o presidente da companhia.

“Fomos o caso mais emblemático de pessoa jurídica perseguida pela ditadura. Eles não apenas fecharam a Panair de forma arbitrária e violenta atingindo em cheio milhares de famílias, como fabricaram dados para incriminar seus acionistas e diretores, em atos de perseguição continuada que duraram anos”, destaca o carioca Rodolfo da Rocha Miranda, filho de Celso da Rocha Miranda, que dividia o controle acionário da aérea com o paulista Mario Wallace Simonsen.

Com o seu apogeu durante o governo Juscelino Kubitschek, a empresa passou a ser perseguida durante a ditadura de 64 para favorecer a outro grupo da aviação civil, a Varig, que então despontava no Rio Grande do Sul sob a presidência do gaúcho Ruben Berta, amigo de militares e herdeiro do fundador da companhia, o alemão Otto Meyer.

Berta iniciou a compra de ações da Panair e já possuía 30% delas visando o controle do negócio. Mas Sampaio procurou os Simonsen e os Rocha Miranda propondo uma injeção maciça de capital visando, com os novos acionistas, afastar a Varig do caminho. E logo nacionalizou o negócio cujo controle originariamente era da Panamerican, a Panam.

Nestes tempos, a Panair contava com uma frota de hidroaviões que voava para 70 comunidades ribeirinhas, em lugares remotos da Amazônia, e seguia até Iquitos, no Peru. Transportava medicamentos, feridos, índios doentes, e víveres. E já abrira linhas para Lisboa, Paris, Londres, Nova Iorque e Buenos Aires, logo expandidas para Berlim, Hamburgo, Zurique, Roma e Istambul as quais servia com suas aeronaves Constellation, o mais sofisticado e mais moderno aparelho da aviação civil da época.

A decolagem dos Constellation para Paris, uma vez por semana, no Galeão do Rio de Janeiro, chegava a ser notícia dos jornais locais. Eles atravessavam o Atlântico voando, sem radar, a 600 km por hora – uma proeza, naquele tempo - e a lista de passageiros dos seus vôos costumava ser publicada na imprensa com destaque. Mais adiante, o jato DC-8, se juntou à frota da Panair.

No começo dos anos 60 a aérea contava com dez mil funcionários no Brasil e no exterior e era proprietária também da Celma, a maior e mais avançada oficina de reparos de motores de aviões do Hemisfério Sul, em Petrópolis, que prestava serviço a congêneres nacionais, estrangeiras – companhias americanas e italianas - e fabricava peças para as aeronaves da FAB.

A Panair também controlava a mais extensa rede de estações meteorológicas e de telecomunicações aeronáuticas do continente, que atendia toda aeronave civil ou militar e de qualquer nacionalidade que cruzasse o Atlântico Sul.

Era uma das mais simpáticas e estimadas instituições da vida nacional.

Quando viu que não conseguiria o controle da empresa, Berta recorreu à força bruta da ditadura. No dia 10 de fevereiro de 65, de repente, começo da noite, as rádios anunciaram o decreto de cassação das linhas da aérea de bandeira brasileira (decreto conhecido até hoje como o Decreto Panair), a suspensão imediata de todos os voos e sua falência - apesar da sua situação financeira excelente!

Até mesmo o vôo que se iniciaria horas mais tarde, naquela mesma noite, foi cancelado. No dia seguinte uma aeronave da Panair, já com o logotipo da Varig estampado na cauda, decolou para Paris...

As oficinas da Celma foram ocupadas por uma tropa chefiada por um oficial-coronel e apenas as linhas de telegrafia da empresa continuaram funcionando embora com os operadores vigiados por metralhadoras.

Um detalhe singelo: a Celma hoje, ainda instalada em Petrópolis, se chama Celma GE. Pertence à General Motors.

Enquanto milhares de famílias foram penalizadas com a falta de assistência prestada pela frota de hidroaviões na Amazônia, e enquanto outros tantos milhares de funcionários da Panair, de um dia para a outro ficaram desempregados e à míngua, era iniciada uma perseguição, que durou décadas, aos proprietários da empresa, que tiveram telefones grampeados e casas invadidas.

Vale a pena assistir a esse documentário que conta com imagens de arquivo preciosas e, através de depoimentos contundentes, relembrar essa história trágica.

Seria importante, dada a proximidade da data de 10 de fevereiro que se avizinha, a reprogramação, pelo Canal Curta! desse emocionante filme de Marco Altberg, de pouco mais de uma hora.

Ele mostra também a forte relação de afeto de centenas de funcionários com a Panair - a auto-intitulada Família Panair – que se reunia, como se vê em várias cenas do filme, até os dias em que o filme foi realizado, em 2008. E pelas informações que temos, há sobreviventes se encontram até hoje.

O belo doc termina com Elis Regina cantando a canção de Milton Nascimento e Fernando Brant que originariamente tem o título de Nas asas da Panair.

Para despistar a censura dos militares, porém, se chamou Conversando no bar.

E o ator Paulo Betti lê a primeira crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no Caderno B do Jornal do Brasil, em 1969 (clique aqui para ler), sobre o leilão de objetos utilizados nas aeronaves, talheres, copos, louças, toalhas, brindes - realizado anos depois do estupro à Panair do Brasil: Leilão do ar.

Ele poderia se chamar hoje de Leilão do Brasil.

Assista ao documentário 'Panair do Brasil' na íntegra [aqui].

0 comentários: