Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
É sem dúvida correto questionar o excesso de prisões preventivas num país onde a presunção da inocência tem sido ignorada sistematicamente em decisões judiciais.
Apesar disso, a decisão do Superior Tribunal Militar que mandou para casa os nove militares acusados de fuzilar dois inocentes em Guadalupe, em abril, chega a ser escandalosa diante das evidências conhecidas.
Foram disparados mais de 200 tiros em direção a um automóvel no qual viajava uma família que aproveitava o descanso de domingo e se dirigia a um chá de bebê. Morreu o músico Evaldo Rosa, que ia no volante. Momentos depois, foi alvejado o catador de material reciclado Luciano Macedo, que tentou prestar socorro as vítimas e faleceu uma semana depois.
Dos treze ministros que participaram da decisão, nove se manifestaram pela soltura dos acusados, que irão esperar por um julgamento que ninguém sabe quando e se irá ocorrer. Outros três foram favoráveis a manutenção da prisão. Entre estes, dois se manifestaram pela transferência dos réus para prisão domiciliar.
Apenas a ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha se manifestou pela permanência dos acusados atrás das grades. Com a autoridade de quem já foi presidente do STM, entre 2014-2015, a primeira e única mulher a ocupar o posto até agora, ela apontou um motivo consistente para que os acusados fossem mantidos na cadeia -- o risco de que pudessem usar a liberdade pudesse atrapalhar o andamento das investigações.
Não é um exercício de imaginação. Apoiada em documentos do ministério público, a ministra apontou um fato gravíssimo: a apresentação de provas forjadas, apenas para facilitar a liberdade dos acusados. Vale a pena ler um trecho do voto de Maria Elizabeth: "ao utilizar-se da mentira, que comprometeu o Comando Militar do Leste e a própria credibilidade do Exército, eles influíram para que viessem aos autos três fotos de viaturas atingidas. Tais viaturas, de fato, possuem marcas de tiro. Mas se tratam de veículos completamente diferentes dos usados na ação. Ou seja, os militares forjaram, com informações inidôneas, que haviam sido alvejados na ação".
A questão colocada pela ministra e que ficou escancarada pelo julgamento é esta. É errado imaginar que os militares deveriam ser mantidos na prisão porque podem ser considerados culpados de um crime bárbaro -- isso só se decide caso sua culpa venha a ser reconhecida em julgamento. Até lá, são inocentes até prova em contrário, certo?
O que torna sua liberdade questionável é o que aconteceu depois. A acusação, aqui, é de embaralhar a investigação, atitude que, conforme o artigo 312 do Código de Processo Penal, justifica a permanência de um acusado na cadeia. Como foi dito dois parágrafos acima: tentando colocar-se na posição de vítimas, "os militares forjaram, com informações inidôneas, que haviam sido alvejados na ação".
Num voto de quem não tem receio de apontar para a gravidade dos fatos a ministra Maria Elizabeth denunciou "o horror de uma esposa e de um filho de 7 anos verem o pai e marido ser fuzilado na sua frente sem nenhuma razão".
Também lamentou o destino de "um humilde catador de resíduos perder a vida para tentar ajudar outro ser humano". Maria Elizabeth apontou ainda para um aspecto especialmente chocante do caso: a "falta de misericórdia dos réus", que seguiram atirando quando as vítimas e seus familiares gritavam por socorro.
Também lembrou que inicialmente a viúva de Evaldo Rosa chegou a mostrar-se tranquilizada, confiante até, com a presença dos militares, dizendo: "são do quartel". (Mais tarde, não custa lembrar, acusou os militares de assumir uma postura de "deboche" diante de familiares das vítimas).
Através da leitura em plenário de um trecho da denúncia do Ministério Público, a ministra deixou claro que ao longo do tempo ocorreu uma mudança de atitude da própria Justiça Militar: "só após a repercussão midiática dos fatos, é que foram ouvidas as vítimas sobreviventes, sendo alterada substancialmente a versão apresentada pelos militares, que se revelou inverídica comprometendo a credibilidade do comando militar que apresentou a versão à sociedade para desmenti-la depois."
Numa observação de quem sabe a importância de não confundir comportamentos particulares com o perfil de uma instituição em seu conjunto, em 8 de maio a ministra fez uma referência necessária ao racismo e ao preconceito contra pobres em geral: "duvido que isso aconteceria com um branco em Ipanema. Não é o Exército que tem especificamente essa visão. Lamentavelmente, isso é uma visão da sociedade brasileira".
Além do preconceito tão bem conhecido, a decisão de ontem guarda uma lamentável semelhança com um comportamento jurídico de outra época histórica.
O arquivo do regime de 64 está recheado de decisões que invertiam o sentido das provas. Foi assim no caso Rio Centro, no qual um capitão flagrado num atentado a bomba foi tratado como vítima de uma organização terrorista de esquerda. Ou o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, inicialmente apresentado como suicídio. Isso acontecia por uma razão funcional. A preservação de um regime baseado na violência, na tortura e no ataque permanente aos direitos e garantias individuais, só era possível pela garantia absoluta de impunidade oferecida aos responsáveis. Ninguém seria julgado nem condenado.
Referindo-se a fatos recentes, ocorridos no contexto de uma democracia conquistada a duras penas, o lúcido voto de Maria Elizabeth Teixeira da Rocha ajuda a lembrar um passado que ninguém quer repetir.
Alguma dúvida?
É sem dúvida correto questionar o excesso de prisões preventivas num país onde a presunção da inocência tem sido ignorada sistematicamente em decisões judiciais.
Apesar disso, a decisão do Superior Tribunal Militar que mandou para casa os nove militares acusados de fuzilar dois inocentes em Guadalupe, em abril, chega a ser escandalosa diante das evidências conhecidas.
Foram disparados mais de 200 tiros em direção a um automóvel no qual viajava uma família que aproveitava o descanso de domingo e se dirigia a um chá de bebê. Morreu o músico Evaldo Rosa, que ia no volante. Momentos depois, foi alvejado o catador de material reciclado Luciano Macedo, que tentou prestar socorro as vítimas e faleceu uma semana depois.
Dos treze ministros que participaram da decisão, nove se manifestaram pela soltura dos acusados, que irão esperar por um julgamento que ninguém sabe quando e se irá ocorrer. Outros três foram favoráveis a manutenção da prisão. Entre estes, dois se manifestaram pela transferência dos réus para prisão domiciliar.
Apenas a ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha se manifestou pela permanência dos acusados atrás das grades. Com a autoridade de quem já foi presidente do STM, entre 2014-2015, a primeira e única mulher a ocupar o posto até agora, ela apontou um motivo consistente para que os acusados fossem mantidos na cadeia -- o risco de que pudessem usar a liberdade pudesse atrapalhar o andamento das investigações.
Não é um exercício de imaginação. Apoiada em documentos do ministério público, a ministra apontou um fato gravíssimo: a apresentação de provas forjadas, apenas para facilitar a liberdade dos acusados. Vale a pena ler um trecho do voto de Maria Elizabeth: "ao utilizar-se da mentira, que comprometeu o Comando Militar do Leste e a própria credibilidade do Exército, eles influíram para que viessem aos autos três fotos de viaturas atingidas. Tais viaturas, de fato, possuem marcas de tiro. Mas se tratam de veículos completamente diferentes dos usados na ação. Ou seja, os militares forjaram, com informações inidôneas, que haviam sido alvejados na ação".
A questão colocada pela ministra e que ficou escancarada pelo julgamento é esta. É errado imaginar que os militares deveriam ser mantidos na prisão porque podem ser considerados culpados de um crime bárbaro -- isso só se decide caso sua culpa venha a ser reconhecida em julgamento. Até lá, são inocentes até prova em contrário, certo?
O que torna sua liberdade questionável é o que aconteceu depois. A acusação, aqui, é de embaralhar a investigação, atitude que, conforme o artigo 312 do Código de Processo Penal, justifica a permanência de um acusado na cadeia. Como foi dito dois parágrafos acima: tentando colocar-se na posição de vítimas, "os militares forjaram, com informações inidôneas, que haviam sido alvejados na ação".
Num voto de quem não tem receio de apontar para a gravidade dos fatos a ministra Maria Elizabeth denunciou "o horror de uma esposa e de um filho de 7 anos verem o pai e marido ser fuzilado na sua frente sem nenhuma razão".
Também lamentou o destino de "um humilde catador de resíduos perder a vida para tentar ajudar outro ser humano". Maria Elizabeth apontou ainda para um aspecto especialmente chocante do caso: a "falta de misericórdia dos réus", que seguiram atirando quando as vítimas e seus familiares gritavam por socorro.
Também lembrou que inicialmente a viúva de Evaldo Rosa chegou a mostrar-se tranquilizada, confiante até, com a presença dos militares, dizendo: "são do quartel". (Mais tarde, não custa lembrar, acusou os militares de assumir uma postura de "deboche" diante de familiares das vítimas).
Através da leitura em plenário de um trecho da denúncia do Ministério Público, a ministra deixou claro que ao longo do tempo ocorreu uma mudança de atitude da própria Justiça Militar: "só após a repercussão midiática dos fatos, é que foram ouvidas as vítimas sobreviventes, sendo alterada substancialmente a versão apresentada pelos militares, que se revelou inverídica comprometendo a credibilidade do comando militar que apresentou a versão à sociedade para desmenti-la depois."
Numa observação de quem sabe a importância de não confundir comportamentos particulares com o perfil de uma instituição em seu conjunto, em 8 de maio a ministra fez uma referência necessária ao racismo e ao preconceito contra pobres em geral: "duvido que isso aconteceria com um branco em Ipanema. Não é o Exército que tem especificamente essa visão. Lamentavelmente, isso é uma visão da sociedade brasileira".
Além do preconceito tão bem conhecido, a decisão de ontem guarda uma lamentável semelhança com um comportamento jurídico de outra época histórica.
O arquivo do regime de 64 está recheado de decisões que invertiam o sentido das provas. Foi assim no caso Rio Centro, no qual um capitão flagrado num atentado a bomba foi tratado como vítima de uma organização terrorista de esquerda. Ou o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, inicialmente apresentado como suicídio. Isso acontecia por uma razão funcional. A preservação de um regime baseado na violência, na tortura e no ataque permanente aos direitos e garantias individuais, só era possível pela garantia absoluta de impunidade oferecida aos responsáveis. Ninguém seria julgado nem condenado.
Referindo-se a fatos recentes, ocorridos no contexto de uma democracia conquistada a duras penas, o lúcido voto de Maria Elizabeth Teixeira da Rocha ajuda a lembrar um passado que ninguém quer repetir.
Alguma dúvida?
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