Por Enzo Bello, Gustavo Capela e Rene Keller, no site Carta Maior:
Super Homem, Capitão América, Homem Aranha, Mulher Maravilha e Batman. Heróis. Heróis de uma geração que parece ter sido acostumada a pensar sobre mudanças e transformações através da ficção. Heróis de um mundo em que a mídia de massa produz uma forma específica de imaginação coletiva, empolgação, euforia, que se projetam sobre o entendimento das pessoas acerca da vida real, material.
Transformações sociopolíticas tornaram-se colonizadas por esses produtos culturais que celebram poderes verdadeiros e autênticos de certos indivíduos – tipos especiais de pessoas. Isso representa a glorificação do talento individual, a reafirmação do indivíduo como força poderosa que atua, mesmo unido a outras individualidades, através de seu/sua gênio pessoal, excepcional.
Não é surpresa que essas figuras heróicas sejam um produto dos Estados Unidos, onde o individualismo e o pensamento liberal são hegemônicos; a excepcionalidade é a justificação para o lugar deles/delas no mundo; e o Estado de Direito é a arma de um senso de justiça moralista.
Também não é surpresa que tal perspectiva, produzida massivamente, seja levada para países como o Brasil, onde Hollywood tem papel relevante na modelagem do acesso à cultura e onde os EUA têm atuado diretamente para assegurar sua dominação ao menos desde 1964.
Lá atrás, os EUA apoiaram um golpe militar e a consequente instalação de uma ditadura que durou até 1985. O Presidente do Brasil à época, João Goulart, desejava promover reformas sociais e políticas para tornar o país mais competitivo, reduzir as desigualdades e sustentar a competição internamente, fomentando indústrias nacionais e limitando a dependência da economia brasileira.
Mesmo adotando tese tipicamente burguesa nacionalista, Goulart foi estigmatizado como “comunista” e logo deposto. Contra a “ameaça comunista”, um inimigo externo imaginário, os militares heróicos salvariam o Brasil de se tornar Cuba, como afirma a retórica deles.
Em 2018, na sua campanha presidencial, Jair Bolsonaro repetiu o slogan da “ameaça comunista”, desta vez um inimigo interno, o Petismo. Ao contrário de 1964, os heróis de hoje são mais similares aos do Universo Marvel / DC Comics. O então magistrado Sergio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol foram exaltados em camisetas, memes, bonecos infláveis [1] etc. como Super Homem, Batman e outras personagens imaginativas, por canalizarem a retórica da moralidade, da ética, da higidez.
Seus superpoderes são as habilidades de lutar contra a corrupção, de derrotar os vermelhos (assim como o Caveira Vermelha, vilão de Capitão América) e impor um puro e limpo Brasil. Mesmo permeados pela retórica de “purificação”, os heróis de hoje em dia são mais vinculados a individualidades que coletividades. Eles glorificam juízes e procuradores por todo o Brasil. Dallagnol e Moro sentem-se ungidos. Exibem essa marca em eventos corporativos. Afinal, eles foram escolhidos, eles são especiais, eles são super humanos, super heróis nacionais.
Em contraste com a versão de Stan Lee de transformação ou criação de heróis, essa estória é correlata a um processo social que teve sua maior expressão em 2013 e ainda se desenrola. Esta é uma história de luta de classes, de novas tecnologias e da extrema direita.
Junho de 2013: Batman Begins
A complexidade de eventos, sua contingência e sua constituição multifacetada são parte da emergência de fatos políticos relevantes. A ascensão de Trump como líder de um movimento alternativo de direita nos EUA pode ser vinculada a um momento específico? Pensamos que não.
Em nossa visão, um evento político pode ser entendido como um momento político relevante quando é possível criar continuidades discursivas entre ação política no passado e possibilidades políticas no futuro.
Junho de 2013 foi capaz de fazê-lo em alguma medida. Produziu um senso de urgência e uma falta de entendimento a seu respeito, algo típico de novas linguagens ou gramáticas da vida política. Expandiu horizontes, questionou a lógica prévia de organização política e levou adiante temas sobre uma necessária reformulação institucional.
O processo que começou com uma demanda específica por redução das tarifas de ônibus na cidade de São Paulo se espalhou Brasil e cresceu para incríveis proporções em poucos dias. O “Movimento pelo Passe Livre” (MPL) não foi inicialmente bem sucedido em bloquear o aumento nas tarifas de ônibus, e os protestos registraram conflitos tidos como “vandalismo”.
A violência brutal da Polícia trouxe à tona uma indignação popular generalizada que transformou a natureza/dimensão dos protestos. O que começou como algo ligado a demandas locais e específicas metamorfoseou-se em levante difuso e nacional. Inicialmente liderado por um movimento social, tornou-se massa sem liderança com reclames abstratos por “mudança”.
Em pouco tempo, inúmeras pessoas desconhecidas e despolitizadas começaram a criar eventos em redes sociais como o Facebook “em solidariedade” ao MPL. Em poucas horas, “eventos” criados em redes sociais tinham milhares de confirmações de presença. Essa mesma história poderia ser contada por diferentes pessoas em todo o país.
Junho de 2013: a virada heróica
A mudança dos protestos liderados pelo MPL em São Paulo para os protestos nacionais e difusos, e a alteração de demandas concretas para outras mais abstratas são: 1) efeitos de uma sociabilidade forjada dentro da esfera virtual da internet; e 2) o que possibilitou isso para a mídia tradicional disputar a narrativa e a direção do movimento.
Nesse cenário confuso, organizações como a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) impuseram suas agendas corporativistas para ampliação de poderes investigativos. Tinham verba, organização e se empunham como agentes sociais de mudança sobre o mundo que as colocou no centro de tudo isso.
O discurso contra a “corrupção” - inicialmente uma demanda por saúde e educação, ao invés de estádios para a Copa do Mundo - foi colonizado por uma retórica moralista, típica de heróis, por exemplo, na proposta das “10 Medidas de Combate à Corrupção”. Policiais, promotores/procuradores e juízes invocaram seu comprometimento com a justiça acima de tudo, na linha de quem lhes legitimou para atuarem contra os políticos tradicionais e seus interesses pessoais. Eles, os heróis, salvariam o povo brasileiro dos seus representantes eleitos, os vilões.
Na linha anti-política surgiu um movimento político novo, de extrema direita. Em reação direta ao MPL, os brasileiros filiados à ideologia dos irmãos Koch começaram se denominar “Movimento Brasil Livre” (MBL). A diferença está na letra “B”. Enquanto o MPL invoca o passe livre e o acesso livre à cidade, os “campeões” neoliberais, os gênios do mercado livre, o MBL, clamam por um “Brasil livre”. O MBL opôs a “esquerda” a qualquer coisa “nacional”, repetindo o falacioso mantra patriótico invocado em pedidos de retorno da ditadura militar.
Eis o quebra-cabeças do Brasil atual. Movimentos de extrema direita viram, em 2013, que os tradicionais partidos de esquerda eram incapazes de organizar a raiva social que permeia a luta de classes. Usaram de comunicação simples e acessível. Aprenderam que os limites do Partido dos Trabalhadores (PT) restavam na sua falta de habilidade em romper com as demandas institucionais da democracia burguesa. Capturaram o desprezo popular pela conciliação de classes em um país que tem as desigualdades como marca abrangente da vida social.
Sergio Moro, Deltan Dallagnol e Jair Bolsonaro são efeitos desse processo social. Enquanto tais, replicam discursos de hiper fragmentação, anti coletividade e individualismo. Onde os rituais coletivos são fundamentais para a sociabilidade, eles representam a tendência a uma Americanização, uma “Netflix-zação” da vida social. Não há acaso na entrega de estatais a multinacionais estrangeiras e na saudação de Bolsonaro à bandeira dos EUA, práticas comuns de elites nacionais colonizadas e subservientes ao cerne do capitalismo.
A corrupção no combate à corrupção (2019): os heróis no poder se revelam humanos
Com o passar do tempo, alguns desses "heróis" parecem ser mais humanos (logo, falíveis) do que eles e seus fãs imaginavam.
Recentemente, o veículo The Intercept Brasil iniciou a publicação de reportagens (batizada de Vaza Jato) com conteúdos de conversas entre Sergio Moro, Deltan Dallagnon e membros do MP, indicando uma atuação política articulada na Operação Lava Jato, e a falta de imparcialidade em processos criminais, entre eles o que condenou o ex-presidente Lula. Apareceram vazamentos de informações dos processos à grande mídia brasileira e até à oposição ao governo venezuelano [2].
A Constituição de 1988 adota o Sistema Acusatório. No ordenamento jurídico brasileiro, acusação e julgamento são funções que devem ser exercidas de forma separada e por instituições e agentes públicos distintos: Ministério Público e Judiciário, respectivamente.
Não cabe analogia com a Operação Mãos Limpas (Mani Pulite) no campo jurídico, só no político. Na Itália o juiz de investigações preliminares (giudizio di indagini preliminari) não é o mesmo que aprecia as provas e julga os réus; no Brasil só há um juiz responsável por instrução probatória e julgamento. Na Itália, Giovanni Falcone deixou a magistratura para se tornar Ministro da Justiça. No Brasil, Sergio Moro seguiu o mesmo caminho, poucos meses após condenar à prisão o principal adversário político do atual presidente, hoje seu superior hierárquico.
Há evidências e provavelmente provas de vícios insanáveis de nulidade absoluta, o que justifica a anulação dos processos e o cancelamento das condenações.
No plano jurídico, repercute a liberdade imediata para Lula e os demais condenados em processos maculados, além da investigação das condutas de Dallagnol e Moro pela possível prática de crimes de prevaricação, organização criminosa, abuso de autoridade, fraude processual. No campo político é insustentável a permanência de Moro no Ministério da Justiça e Segurança Pública, inclusive porque chefia a Polícia Federal, responsável pela apuração das denúncias. Comprovadas as irregularidades, a renúncia de Moro é um caminho sem volta.
Eles não negam a veracidade dos conteúdos e acusam hackers de crimes contra a privacidade, mesmo ambos já tendo defendido num passado recente a prevalência do direito de informação sobre o direito à privacidade em assuntos de interesse público.
Já foi arquivado no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) um primeiro pedido de investigação quanto a Dallagnon. Moro foi ao Congresso Nacional prestar esclarecimentos evasivos e tem sido pressionado pela mídia. Dallagnon se recusou a fazê-lo. Moro foi aos EUA em agenda não divulgada e tem sido blindado por organizações Globais.
Ao invés dos heróis das camisetas e memes, Dallagnol e Moro parecem cada vez repetir a saga de Harvey Dent, o combativo promotor de justiça que defendia o discurso da “lei e ordem” e assumiu a identidade de Duas Caras, tornando-se meio herói e meio vilão.
Conclusão: o Brasil não foi feito para amadores; e para heróis?
Impossível entender a Operação Lava Jato – que levou à prisão de empresários e líderes políticos, sobretudo o ex-Presidente Lula, ao impeachment de Dilma Rousseff, e à eleição de Jair Bolsonaro – sem considerar: 1) a ascensão e derrocada do PT; 2) o reaparecimento ressignificado da extrema direita; 3) a ação imperialista da mídia de massa; 4) as tecnologias inovadoras de redes sociais que contornam organizações políticas tradicionais e focam nos indivíduos; e 5) a criação e o uso de imagens e personagens capazes de unir e replicar todas essas forças, em benefício de uma relação exploradora entre os muito ricos e os pobres.
Eles afirmam não terem cometido irregularidades e tentam se manter como intocáveis super heróis; afinal, somente humanos falham e vilões são sempre os outros. Enquanto isso, a popularidade de Moro está em queda [3], a aprovação de Bolsonaro em 7 meses de governo está em 33% [4] e a população brasileira está dividida entre quem defende o respeito à legalidade e aqueles (como João Doria Jr.) que consideram prisões justas mesmo diante de graves irregularidades nos processos judiciais.
Agora estão em xeque os pretensos heróis que invocaram a lei acima de todos e a aplicaram a alguns de forma seletiva e possivelmente irregular. Estariam eles acima da lei? Combater a corrupção e prender vilões são fins (justiça) que justificam os meios (ilegalidade)? Qual limite demarca as posições de heróis e vilões? Eis algumas questões morais e políticas que permeiam o Universo Marvel / DC Comics e se mostram candentes no Brasil atual.
* Enzo Bello é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Gustavo Capela é Doutorando em Antropologia pela Universidade da Califórnia (EUA) e Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Rene Keller é Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Advogado.
Notas
[1] https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-05-26/manifestacao-pelo-governo-em-brasilia-tem-boneco-de-moro-super-heroi.html
Super Homem, Capitão América, Homem Aranha, Mulher Maravilha e Batman. Heróis. Heróis de uma geração que parece ter sido acostumada a pensar sobre mudanças e transformações através da ficção. Heróis de um mundo em que a mídia de massa produz uma forma específica de imaginação coletiva, empolgação, euforia, que se projetam sobre o entendimento das pessoas acerca da vida real, material.
Transformações sociopolíticas tornaram-se colonizadas por esses produtos culturais que celebram poderes verdadeiros e autênticos de certos indivíduos – tipos especiais de pessoas. Isso representa a glorificação do talento individual, a reafirmação do indivíduo como força poderosa que atua, mesmo unido a outras individualidades, através de seu/sua gênio pessoal, excepcional.
Não é surpresa que essas figuras heróicas sejam um produto dos Estados Unidos, onde o individualismo e o pensamento liberal são hegemônicos; a excepcionalidade é a justificação para o lugar deles/delas no mundo; e o Estado de Direito é a arma de um senso de justiça moralista.
Também não é surpresa que tal perspectiva, produzida massivamente, seja levada para países como o Brasil, onde Hollywood tem papel relevante na modelagem do acesso à cultura e onde os EUA têm atuado diretamente para assegurar sua dominação ao menos desde 1964.
Lá atrás, os EUA apoiaram um golpe militar e a consequente instalação de uma ditadura que durou até 1985. O Presidente do Brasil à época, João Goulart, desejava promover reformas sociais e políticas para tornar o país mais competitivo, reduzir as desigualdades e sustentar a competição internamente, fomentando indústrias nacionais e limitando a dependência da economia brasileira.
Mesmo adotando tese tipicamente burguesa nacionalista, Goulart foi estigmatizado como “comunista” e logo deposto. Contra a “ameaça comunista”, um inimigo externo imaginário, os militares heróicos salvariam o Brasil de se tornar Cuba, como afirma a retórica deles.
Em 2018, na sua campanha presidencial, Jair Bolsonaro repetiu o slogan da “ameaça comunista”, desta vez um inimigo interno, o Petismo. Ao contrário de 1964, os heróis de hoje são mais similares aos do Universo Marvel / DC Comics. O então magistrado Sergio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol foram exaltados em camisetas, memes, bonecos infláveis [1] etc. como Super Homem, Batman e outras personagens imaginativas, por canalizarem a retórica da moralidade, da ética, da higidez.
Seus superpoderes são as habilidades de lutar contra a corrupção, de derrotar os vermelhos (assim como o Caveira Vermelha, vilão de Capitão América) e impor um puro e limpo Brasil. Mesmo permeados pela retórica de “purificação”, os heróis de hoje em dia são mais vinculados a individualidades que coletividades. Eles glorificam juízes e procuradores por todo o Brasil. Dallagnol e Moro sentem-se ungidos. Exibem essa marca em eventos corporativos. Afinal, eles foram escolhidos, eles são especiais, eles são super humanos, super heróis nacionais.
Em contraste com a versão de Stan Lee de transformação ou criação de heróis, essa estória é correlata a um processo social que teve sua maior expressão em 2013 e ainda se desenrola. Esta é uma história de luta de classes, de novas tecnologias e da extrema direita.
Junho de 2013: Batman Begins
A complexidade de eventos, sua contingência e sua constituição multifacetada são parte da emergência de fatos políticos relevantes. A ascensão de Trump como líder de um movimento alternativo de direita nos EUA pode ser vinculada a um momento específico? Pensamos que não.
Em nossa visão, um evento político pode ser entendido como um momento político relevante quando é possível criar continuidades discursivas entre ação política no passado e possibilidades políticas no futuro.
Junho de 2013 foi capaz de fazê-lo em alguma medida. Produziu um senso de urgência e uma falta de entendimento a seu respeito, algo típico de novas linguagens ou gramáticas da vida política. Expandiu horizontes, questionou a lógica prévia de organização política e levou adiante temas sobre uma necessária reformulação institucional.
O processo que começou com uma demanda específica por redução das tarifas de ônibus na cidade de São Paulo se espalhou Brasil e cresceu para incríveis proporções em poucos dias. O “Movimento pelo Passe Livre” (MPL) não foi inicialmente bem sucedido em bloquear o aumento nas tarifas de ônibus, e os protestos registraram conflitos tidos como “vandalismo”.
A violência brutal da Polícia trouxe à tona uma indignação popular generalizada que transformou a natureza/dimensão dos protestos. O que começou como algo ligado a demandas locais e específicas metamorfoseou-se em levante difuso e nacional. Inicialmente liderado por um movimento social, tornou-se massa sem liderança com reclames abstratos por “mudança”.
Em pouco tempo, inúmeras pessoas desconhecidas e despolitizadas começaram a criar eventos em redes sociais como o Facebook “em solidariedade” ao MPL. Em poucas horas, “eventos” criados em redes sociais tinham milhares de confirmações de presença. Essa mesma história poderia ser contada por diferentes pessoas em todo o país.
Junho de 2013: a virada heróica
A mudança dos protestos liderados pelo MPL em São Paulo para os protestos nacionais e difusos, e a alteração de demandas concretas para outras mais abstratas são: 1) efeitos de uma sociabilidade forjada dentro da esfera virtual da internet; e 2) o que possibilitou isso para a mídia tradicional disputar a narrativa e a direção do movimento.
Nesse cenário confuso, organizações como a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) impuseram suas agendas corporativistas para ampliação de poderes investigativos. Tinham verba, organização e se empunham como agentes sociais de mudança sobre o mundo que as colocou no centro de tudo isso.
O discurso contra a “corrupção” - inicialmente uma demanda por saúde e educação, ao invés de estádios para a Copa do Mundo - foi colonizado por uma retórica moralista, típica de heróis, por exemplo, na proposta das “10 Medidas de Combate à Corrupção”. Policiais, promotores/procuradores e juízes invocaram seu comprometimento com a justiça acima de tudo, na linha de quem lhes legitimou para atuarem contra os políticos tradicionais e seus interesses pessoais. Eles, os heróis, salvariam o povo brasileiro dos seus representantes eleitos, os vilões.
Na linha anti-política surgiu um movimento político novo, de extrema direita. Em reação direta ao MPL, os brasileiros filiados à ideologia dos irmãos Koch começaram se denominar “Movimento Brasil Livre” (MBL). A diferença está na letra “B”. Enquanto o MPL invoca o passe livre e o acesso livre à cidade, os “campeões” neoliberais, os gênios do mercado livre, o MBL, clamam por um “Brasil livre”. O MBL opôs a “esquerda” a qualquer coisa “nacional”, repetindo o falacioso mantra patriótico invocado em pedidos de retorno da ditadura militar.
Eis o quebra-cabeças do Brasil atual. Movimentos de extrema direita viram, em 2013, que os tradicionais partidos de esquerda eram incapazes de organizar a raiva social que permeia a luta de classes. Usaram de comunicação simples e acessível. Aprenderam que os limites do Partido dos Trabalhadores (PT) restavam na sua falta de habilidade em romper com as demandas institucionais da democracia burguesa. Capturaram o desprezo popular pela conciliação de classes em um país que tem as desigualdades como marca abrangente da vida social.
Sergio Moro, Deltan Dallagnol e Jair Bolsonaro são efeitos desse processo social. Enquanto tais, replicam discursos de hiper fragmentação, anti coletividade e individualismo. Onde os rituais coletivos são fundamentais para a sociabilidade, eles representam a tendência a uma Americanização, uma “Netflix-zação” da vida social. Não há acaso na entrega de estatais a multinacionais estrangeiras e na saudação de Bolsonaro à bandeira dos EUA, práticas comuns de elites nacionais colonizadas e subservientes ao cerne do capitalismo.
A corrupção no combate à corrupção (2019): os heróis no poder se revelam humanos
Com o passar do tempo, alguns desses "heróis" parecem ser mais humanos (logo, falíveis) do que eles e seus fãs imaginavam.
Recentemente, o veículo The Intercept Brasil iniciou a publicação de reportagens (batizada de Vaza Jato) com conteúdos de conversas entre Sergio Moro, Deltan Dallagnon e membros do MP, indicando uma atuação política articulada na Operação Lava Jato, e a falta de imparcialidade em processos criminais, entre eles o que condenou o ex-presidente Lula. Apareceram vazamentos de informações dos processos à grande mídia brasileira e até à oposição ao governo venezuelano [2].
A Constituição de 1988 adota o Sistema Acusatório. No ordenamento jurídico brasileiro, acusação e julgamento são funções que devem ser exercidas de forma separada e por instituições e agentes públicos distintos: Ministério Público e Judiciário, respectivamente.
Não cabe analogia com a Operação Mãos Limpas (Mani Pulite) no campo jurídico, só no político. Na Itália o juiz de investigações preliminares (giudizio di indagini preliminari) não é o mesmo que aprecia as provas e julga os réus; no Brasil só há um juiz responsável por instrução probatória e julgamento. Na Itália, Giovanni Falcone deixou a magistratura para se tornar Ministro da Justiça. No Brasil, Sergio Moro seguiu o mesmo caminho, poucos meses após condenar à prisão o principal adversário político do atual presidente, hoje seu superior hierárquico.
Há evidências e provavelmente provas de vícios insanáveis de nulidade absoluta, o que justifica a anulação dos processos e o cancelamento das condenações.
No plano jurídico, repercute a liberdade imediata para Lula e os demais condenados em processos maculados, além da investigação das condutas de Dallagnol e Moro pela possível prática de crimes de prevaricação, organização criminosa, abuso de autoridade, fraude processual. No campo político é insustentável a permanência de Moro no Ministério da Justiça e Segurança Pública, inclusive porque chefia a Polícia Federal, responsável pela apuração das denúncias. Comprovadas as irregularidades, a renúncia de Moro é um caminho sem volta.
Eles não negam a veracidade dos conteúdos e acusam hackers de crimes contra a privacidade, mesmo ambos já tendo defendido num passado recente a prevalência do direito de informação sobre o direito à privacidade em assuntos de interesse público.
Já foi arquivado no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) um primeiro pedido de investigação quanto a Dallagnon. Moro foi ao Congresso Nacional prestar esclarecimentos evasivos e tem sido pressionado pela mídia. Dallagnon se recusou a fazê-lo. Moro foi aos EUA em agenda não divulgada e tem sido blindado por organizações Globais.
Ao invés dos heróis das camisetas e memes, Dallagnol e Moro parecem cada vez repetir a saga de Harvey Dent, o combativo promotor de justiça que defendia o discurso da “lei e ordem” e assumiu a identidade de Duas Caras, tornando-se meio herói e meio vilão.
Conclusão: o Brasil não foi feito para amadores; e para heróis?
Impossível entender a Operação Lava Jato – que levou à prisão de empresários e líderes políticos, sobretudo o ex-Presidente Lula, ao impeachment de Dilma Rousseff, e à eleição de Jair Bolsonaro – sem considerar: 1) a ascensão e derrocada do PT; 2) o reaparecimento ressignificado da extrema direita; 3) a ação imperialista da mídia de massa; 4) as tecnologias inovadoras de redes sociais que contornam organizações políticas tradicionais e focam nos indivíduos; e 5) a criação e o uso de imagens e personagens capazes de unir e replicar todas essas forças, em benefício de uma relação exploradora entre os muito ricos e os pobres.
Eles afirmam não terem cometido irregularidades e tentam se manter como intocáveis super heróis; afinal, somente humanos falham e vilões são sempre os outros. Enquanto isso, a popularidade de Moro está em queda [3], a aprovação de Bolsonaro em 7 meses de governo está em 33% [4] e a população brasileira está dividida entre quem defende o respeito à legalidade e aqueles (como João Doria Jr.) que consideram prisões justas mesmo diante de graves irregularidades nos processos judiciais.
Agora estão em xeque os pretensos heróis que invocaram a lei acima de todos e a aplicaram a alguns de forma seletiva e possivelmente irregular. Estariam eles acima da lei? Combater a corrupção e prender vilões são fins (justiça) que justificam os meios (ilegalidade)? Qual limite demarca as posições de heróis e vilões? Eis algumas questões morais e políticas que permeiam o Universo Marvel / DC Comics e se mostram candentes no Brasil atual.
* Enzo Bello é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Gustavo Capela é Doutorando em Antropologia pela Universidade da Califórnia (EUA) e Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Rene Keller é Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Advogado.
Notas
[1] https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-05-26/manifestacao-pelo-governo-em-brasilia-tem-boneco-de-moro-super-heroi.html
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