sábado, 21 de setembro de 2019

Lula não pode ser solto

Por Tarso Genro, no site Sul-21:

“O mais encoberto
tornou-se o mais manifesto,
todos os velhos
paradoxos do devir reaparecerão
numa nova juventude –
transmutação.”
Deleuze


As formas e o discurso da opressão mudam em cada ciclo da História, mas tem na transmutação a sua permanência essencial. O Promotor que pediu a condenação de Antonio Gramsci disse ao Tribunal Fascista que o julgava, algo como: “façam este cérebro parar de pensar por 20 anos!” O acusador de Nelson Mandela, no Tribunal do “apartheid” pediu ao Juiz – branco e fascista – mais ou menos isso:
“matem esse homem!” Os Promotores da República de Curitiba e o Juiz Moro acertaram na surdina, talvez o seguinte: “vamos tirar Lula da corrida, para que seja Presidente qualquer um, menos ele.” Dizem que “Che” falou ao seu carrasco: “aponta bem, vais matar um Homem!” Cada vítima com seu algoz, cada algoz preparando sua infinita pequenez perante a História, ao deparar-se com indivíduos bem maiores do que ele.

As utopias de esquerda – desejos reguladores do futuro – sejam radicais ou revolucionárias, modestas, reformistas, “possíveis” ou realistas, se não receberam as mesmas respostas pela violência dos poderosos de turno, sempre foram alvo de reações com o mesmo “sentido” realista: o reacionário e violento, assentado no poder burocrático ou diretamente no dinheiro, é sempre impiedoso e terrivelmente eficaz. Ela mata, sufoca, prende, sem pestanejar.

No final dos anos 90, em Londres, favorecido por um convite do Professor Leslie Bethel, então Coordenador de um programa “brazialinista da Universidade de Oxford, tive o privilégio de ali participar – sem mérito para tanto – de um debate sobre o futuro da democracia, frente à reformas “liberais” já implantadas na Inglaterra. Na mesa que me acolheu, além de brasileiros ilustres como o presidente Lula, Marco Aurélio Garcia e Emir Sader, estava um dos maiores historiadores do Século XX. Era o Professor Eric Hobsbawn (1917-2012), que ali defenderia – não sei se pela primeira vez – o seu conhecido enunciado que o neoliberalismo era “o anarquismo da classe média baixa”. A utopia de direita do liberalismo em mutação, era a liberdade plena de ser feliz sem Estado e sem garantia de direitos.

Hoje, a notável previsão do autor da “Era das Revoluções” poderia ser completada com mais do que isso, pois o neoliberalismo alcançou a adesão de um espectro social bem mais vasto. Ampliou-se para os setores informais do mundo do trabalho, empresários monopolistas, pequenos empresários, classes médias superiores. Abriu a rebelião contra um Estado lerdo – protetor da natureza e das pessoas -, esgotado nas suas funções públicas e sugado nas suas reservas pela especulação financeira do capital. O mesmo capital que hoje dirige a reforma do Estado com o intento de “enxugá-lo”, privatizá-lo, agilizá-lo, acabar com o que ele tem de “público” e social, como contraponto ao projeto socialdemocrata da utopia reformista inglesa.

O artigo do advogado e jurista Mauro Menezes, “O anarco-liberalismo fracassado de Guedes” é um daqueles textos de “fim de época”. Dele, os pesquisadores do futuro irão se servir para rever o Brasil pós-Lula, contrastado com a informação divulgada – logo depois – no “twiter” lapidar (17.07) de Márcio Pochmann: “Na mais grave crise do capitalismo brasileiro, o número de ricos com mais de 1 bilhão, aumentou de 42, em 2018, para 58, em 2019, segundo o ranking mundial da revista Forbes; ao contrário do mundo, que viu cair (este número) de 2208, para 2153, no mesmo período de tempo.”

A conhecida revista Forbes – que já poderá ser apontada como “comunista” por Guedes e sua equipe de Chicago-boys – dá solidez às argumentações de Mauro Menezes, que concluem o seguinte: “o que sobra do autêntico liberalismo nas políticas de Guedes é a sanha privatizante e demolidora dos direitos sociais, implementada sem contemplação e com pitadas de escárnio”. A primeira parte (“sanha privatizante”) é teoria econômica; a segunda parte (“pitadas de escárnio”) é racionalidade da ética burguesa na época da sua decadência republicana. É a dureza da vida real: os valores do capital tem a “guarda” dos Bancos Centrais do mundo inteiro, já os valores dos cidadãos excluídos tem a “guarda” da Constituição do Estado Social em destruição. É desigual a força normativa de ambos, para impor a ordem política democrática na era da acumulação rentista improdutiva.

Estamos falando de um tipo de capitalismo que não só admite a destruição ambiental plena (“risco” de depredação do “capital” natural), mas também aceita os “planos quinquenais” da miséria triplicada. Sua aceitação cordata é reveladora de uma lógica impiedosa na manipulação das consciências, que consiste em responsabilizar os pobres, considerando-os “não-pessoas”, mas meros “custos” da nova etapa da acumulação.

Temos hoje no Brasil do pós-golpe mais alguns milhões de desempregados que são considerados “autônomos”, ou informais com renda -vendedores de água, de balas, de panos-de-casa, de sucata chinesa sem procedência formal- mas em compensação temos mais 16 novos bilionários! Estes realizaram escrupulosamente a sua utopia e passaram integrar um seleto mundo novo, longe da modesta utopia democrática e social que emergiu do governo Lula, baseada nas três refeições diárias e no simples respeito humano e político aos “de baixo”.

Já no começo do segundo governo Lula, a redução da miséria no Brasil começou a ser visível nas ruas das grandes cidades, sem falar nas pequenas e pobres cidades do Norte e do Nordeste, com a forte interferência do Bolsa Família, dos aumentos reais do salário-mínimo e das aposentadorias modestas já melhoradas.

Passamos a ver menos mães com seus filhos esmolando, menos “empresários” de si mesmos na venda de panos-de-prato nas sinaleiras, menos placas de “estou com fome”; muito menos crianças vendendo pirulitos, muitas placas de oferta de empregos na indústria naval, no comércio e nas indústrias; mais oferta de cursos técnicos e vagas na construção civil, no pequeno e médio comércio, nos serviços de escritório e nos restaurantes populares.

Isso tudo foi considerado insuportável num país de herança ideológica e moral do escravismo, onde os pobres são majoritariamente negros e descendentes de negros, repulsa que se acelerou quando estes começaram a frequentar aeroportos e universidades.

Quando inicia a conspiração golpista, ela se escora nos erros políticos do governo e do próprio PT, sustenta-se nas manifestações de Junho (manipuladas e glamourizadas pela Globo), no agravamento da crise mundial e nas dificuldades de manter o financiamento do Estado sem o preço elevado das “commodities”. A conspiração é fortalecida pelo “lawfare” dos processos judiciais contra Lula e faz crescer o ódio geral ao Estado.

Os impostos indiretos, as obrigações trabalhistas, a insensatez burocrática e o corporativismo da esfera estatal são – então – alvo de um ódio ilimitado, rapidamente convertido em anti-petismo dogmático. A falsa ideia de que os fascistas, a direita neoliberal e os demais fisiológicos convertidos à honestidade plena, vieram para combater a corrupção é disseminada rapidamente pelo oligopólio da mídia.

O ódio, então, se espalha nas bases de todos os partidos tradicionais, destrói a funcionalidade das velhas alianças e coloca – na forma de estelionato político – em primeiro plano os preços do gás e da gasolina, das tarifas de ônibus e da eletricidade (hoje na estratosfera), e em relevo – em termos ideológicos – as mensagens moralistas das religiões do dinheiro, os preconceitos e as falsificações da história e da cultura dos bufões olavistas.

A democracia deixa de ser um requisitório de massas e passa a ser considerada um bloqueio ao progresso, como querem os conservadores de todas as origens. Os pastores dolarizados e os procuradores de extrema-direita são elevados à condição de novos corifeus da ordem moral neoliberal: tudo vai se dissolvendo e mudando de forma, mas a a crise golpista deixa de herança – pela primeira vez na História do Brasil – o “milicianismo” como fator real de poder, já destruídas as utopias moderadas do Estado Social cambaleante.

Para compreender porque a libertação de Lula não é aceita – não somente pelos fascistas das redes,
mas também pelas elites rentistas de todas classes – e porque sua libertação não é desejada pelos “isentões” de todas as classes, para enfim compreender porque a libertação de Lula é também odiada pelos pastores exploradores do povo honesto, é preciso entender qual a herança que está sendo deixada pelos golpistas e qual a herança de Lula. A herança dos golpistas é essa que está na boca do Presidente todos os dias.

A herança de Lula pode ser sintetizada no seguinte: os trabalhadores melhoraram de vida, os negros foram à universidade, a redução da miséria e da pobreza foi uma evidência, o respeito internacional ao Brasil foi inédito, o diálogo social amplo permitiu um maior respeito aos direitos humanos de todos os tipos, a política externa foi exercida com soberania, o Prouni foi vitorioso, a ampliação exponencial da Rede Federal de Ensino superior e técnico foi flagrante e os gastos públicos em proteção social transformaram a miséria absoluta em pobreza decente. O Brasil retomou a criação de empregos e a agricultura familiar e camponesa tiveram um ímpeto extraordinário.

Por isso Lula não pode ser solto.

Sua liberdade geraria um contraste e os 16 novos bilionários poderiam ficar amargurados com os pobres querendo de volta os programas sociais, os trabalhadores buscando salários mais dignos, as privatizações sendo interrompidas por qualquer novo presidente que não fosse simplesmente um mandalete “trumpiano”: o Brasil poderia começar a respirar e ser novamente respeitado no mundo.

Lula não pode ser solto, mas será solto. Porque os algozes de Lula – já divididos – começam a receber de volta as desgraças da sua traição à democracia. Depois da soltura de Lula, os 16 novos bilionários certamente ficarão indignados e como têm recursos infinitos, se quiserem, poderão ir para Miami desprezar de longe a democracia que lhes permitiu serem ricos, direitistas e utópicos e vitoriosos.

Michael Lewis (“Bumerangue”, Ed. Sextante 2008) mostra como “o colapso do mercado hipotecário do subprime” atingiu em cheio e destruiu, à época, países com bons níveis de igualdade social, como a longínqua Islândia. Através do enxerto das reformas liberais lideradas pelos aventureiros do mercado, aquela infiltração – como no Brasil – estruturou-se organicamente no Estado, refez a economia: “o enxerto acabou dominando o hospedeiro”. Dado o atraso letal, a pobreza verbal, a ignorância vertebral e o ódio animal, dos nossos dirigentes políticos no poder, os enxertos daqui poderão reavivar no hospedeiro as utopias de Justiça e Solidariedade. Elas permanecem vivas na figura de Lula, na memória majoritária do povo pobre e dos trabalhadores do país inteiro. E saia ou não do cárcere, Lula – no espaço ou na História – então será libertado para sempre.

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