sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Os descaminhos da necropolítica no Brasil

Por Liszt Vieira, no site Carta Maior: 

Enquanto o mundo discute desenvolvimento sustentável com proteção ambiental e justiça social, o presidente do Brasil ataca seus fantasmas pessoais e as alucinações que lhe povoam a mente: Cuba, Venezuela, os índios, o socialismo etc.

O discurso de Bozonaro na ONU foi ideológico e dirigido a seu público interno. Confirma que ele continua na guerra fria, negando a realidade. O inimigo está em toda parte: na Universidade, nas escolas, na imprensa, nas ONGs, nos cientistas, todos eles a serviço do comunismo. Mas ele, Bozonaro, salvou o país do socialismo!

Trata-se de paranoia de um idiota arrogante, que enxerga perseguição em tudo e todos. O Brasil está ameaçado por um pequeno país como Cuba. E também pela França que quer invadir e roubar a Amazônia. Seu discurso patético não agradou os investidores e chega a colocar em risco o agronegócio, ameaçado de perder mercado consumidor na Europa. O embaixador aposentado Rubens Ricupero afirmou que esse discurso “desastroso” pode ter reflexos negativos em acordos comerciais e na relação com investidores estrangeiros (Estadão, 25/9/2019).

Dizer que protege a Amazônia não convenceu ninguém. Os fatos falam mais alto do que a retórica. Ele desmontou o Ministério do Meio Ambiente, esvaziou a política de proteção ambiental afastando funcionários, transferindo órgãos e liquidando a fiscalização ambiental. Incentivou o desmatamento e as queimadas que produziram os terríveis incêndios florestais na Amazônia.

Na avaliação do Greenpeace, “promove o desmonte da área socioambiental, negocia terras indígenas com mineradoras estrangeiras e enfraquece o combate ao crime florestal”. Segundo o Observatório do Clima, “envergonhou o Brasil no exterior ao abdicar a tradicional liderança do país na área ambiental em nome de sua ideologia... Põe em risco o próprio agronegócio que diz defender (El País, 24/9/2019).

Ainda há muita confusão quando se trata de explicar a eleição de Bolsonaro. O pano de fundo dessa eleição é o esgotamento da democracia representativa que não representa mais a maioria da população, indignada com os privilégios das elites políticas e cega aos privilégios das elites econômicas. Em vez de um “momento de inconsciência”, a eleição de Bolsonaro se deve antes ao voto consciente de três grupos principais.

1) Os setores ligados ao mercado, de alta renda, apoiam qualquer governo, bárbaro ou não, que promova a transferência dos recursos públicos, via reformas, dos pobres para os ricos.

2) a classe média brasileira, tomada por aporofobia, entra em pânico quando os pobres melhoram de vida e se aproximam, como ocorreu no governo Lula. Por isso, odeiam o PT. Combate à corrupção é mero pretexto, ninguém bateu panela na mega corrupção do governo Temer.

3) os setores empobrecidos da população, o chamado povão, desiludidos com partidos e todo o sistema político, apoiam uma liderança populista acenando para uma ditadura messiânica, não importa se de direita ou esquerda. Com esse espírito de “solução messiânica”, votaram em Collor, Lula e Bolsonaro.

Assim, o que preponderou na eleição foi a defesa racional do que esses três setores entendem ser os seus interesses. E a ideia de que a violência policial combate a violência dos bandidos, de que bandido bom é bandido morto, faz parte do ideário desses três setores que consideram os direitos humanos como obstáculo ao combate à criminalidade.

Esta é a ponte da “aliança do mal” que liga o Presidente, seu Ministro da Justiça e o Governador do Estado do Rio de Janeiro. A proposta de “excludente de ilicitude” que consta do projeto do ministro Moro enviado ao Congresso é na prática uma licença para matar concedida aos policiais. No Rio de Janeiro, e não só, quase toda semana morre gente inocente nas favelas: crianças, mulheres, jovens, idosos, trabalhadores, simplesmente porque a PM atira a esmo, seguindo o exemplo dado pessoalmente pelo Governador que atirou de um helicóptero para uma comunidade. Deu o recado. Há pouco tempo, até um pai em casa com seu bebê no colo foi atingido e morreu.

O recente assassinato da menina Ágatha no Complexo do Alemão, porém, parece ser um divisor de águas. O governador Witzel foi responsabilizado e o ministro Moro se apressou a dizer que isso não tem a ver com sua proposta de “excludente de ilicitude”. Os deputados, que não são idiotas e sentiram a revolta da opinião pública, estão relutantes e temem aprovar essa licença para matar.

O aspecto surrealista dessa história é que Witzel e Bolsonaro ganharam a eleição no Complexo do Alemão. Influência dos evangélicos? Identificação com um candidato aparentemente “anti-sistema”? Um dos elementos pode ser a rejeição aos traficantes. Mas, se eles saírem das favelas, entram a milícias apoiadas pela famiglia Bolsonaro. Vão trocar seis por meia dúzia ou talvez um dia até sintam saudades dos traficantes.

Como se não bastasse, as mortes decorrentes de intervenção policial deixam de ser contabilizadas para o sistema de bônus salarial para os policiais que reduzirem o número de mortes em confronto, prenderem criminosos e apreenderem armas sem morte. A mudança ocorreu através de um decreto assinado pelo governador Wilson Witzel e publicado em 24/9/2019. Entre janeiro e agosto, 1249 pessoas foram mortas por intervenção policial, de acordo com Instituto de Segurança Pública (ISP). Com a mudança, o número de mortes cometidas por policiais deixa de fazer parte da estatística letalidade violenta (O Globo, 24/9/2019).

Mas a necropolítica tem seu preço, e não é baixo. As pesquisas de opinião mostram queda significativa na aprovação de Bolsonaro, inédita para presidentes em primeiro ano de mandato. E o governador Witzel, que surgiu do nada e busca ser alternativa de direita na próxima eleição, perde terreno na classe média esclarecida e na área popular onde teve maioria. A violência perde terreno e não rende mais tantos votos como antes.

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