Por Vinícius Mendes, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Quando o empresário coreano-boliviano Chi Hyun Chung irrompeu por uma das ruas que dão acesso à Praça Kantuta, na região do Pari, zona central de São Paulo, no final de setembro, ninguém o notou de imediato. A chuva fina que caía sobre a cidade naquele domingo havia afugentado a maioria dos frequentadores que, normalmente, lotam o local – principal reduto de lazer dos bolivianos que vivem na capital paulista – neste dia da semana. À boca pequena, se dizia que a visita num dia daquele era benéfica, porque não permitiria que ele aglomerasse muita gente ao seu redor.
A segunda postura, interna à primeira, é levar em conta o passado – notadamente o militar. Isso se explica no exemplo de José Antonio Kast, chamado pela imprensa internacional de “Bolsonaro chileno” desde as eleições presidenciais de 2017, no Chile, por sua visão positiva da ditadura militar chilena, inclusive argumentando que a queda de Salvador Allende, presidente eleito em 1970 e deposto pelo Exército três anos depois, foi na verdade um “ato do povo”. Naquela campanha eleitoral, a sua frase mais impactante foi dizer que, se Augusto Pinochet, ditador do país entre 1973 e 1990, estivesse vivo, votaria nele. Na mesma época, afirmou ainda que a ditadura fez muitas coisas em prol dos direitos humanos no país. “Quando eu falo de melhorar a saúde, quando falo de melhorar a qualidade da educação, quando falo de melhorar a economia, também estou vendo a melhora da qualidade de vida das pessoas, que também são direitos humanos positivos.” Apesar das frases polêmicas, ele terminou a eleição, em que concorreu de forma independente, com 7,93% dos votos (523 mil escolhas entre 6,5 milhões de eleitores).
Segundo um informe produzido por uma comissão pública em 2011, vale dizer, a ditadura chilena deixou 40 mil vítimas entre mortos, desaparecidos e torturados entre 1973 e 1990.
Kast também defende a legalização da posse de armas e se coloca absolutamente contra qualquer tipo de aborto (“O único inocente em um abuso sexual é a criança que vai nascer”). Nas manifestações de outubro no Chile, ele manteve-se ao lado do presidente Sebastián Piñera, mas classificou todos os protestos como “atos terroristas” e, na mesma linha, chamou os manifestantes de “delinquentes”. Até 2016, ele era deputado pela Unión Demócrata Independiente (UDI), um partido de direita que foi de 11 cadeiras no parlamento em 1989 para 37 duas décadas depois. Atualmente, 30 das 155 cadeiras do Congresso chileno estão nas mãos da UDI, enquanto Kast trabalha em um novo partido, o Republicano, que vai disputar as próximas eleições, em 2020. O “Bolsonaro chileno” acredita que vai disputar o segundo turno pela primeira vez.
No caso dele, mais do que a moralidade e o aspecto religioso, o que existe é uma disputa intensa pela ressignificação de um passado que a produção acadêmica e a indústria cultural pareciam indicar que já estava consensualmente simbolizado: Kast é o porta-voz de uma parte da população que, quase três décadas depois, finalmente pode dizer publicamente que o período pinochetista foi bom, seja econômica, social ou moralmente. A ascensão dele é, assim, a ascensão de um discurso outrora tampado à fogo baixo. Então, o rótulo de “Bolsonaro chileno” lhe cabe: enquanto um se orgulha de ser o candidato de Pinochet, o outro trouxe de volta à vida um homem cuja fama está em ter sido responsável pelo desaparecimento e morte de cerca de sessenta pessoas durante o período militar brasileiro.
No Uruguai, o “Bolsonaro local”, o general do Exército Guido Manini Ríos, também faz parte dessa ressignificação da história: ele entrou em colisão com o atual presidente, Tabaré Vázquez, por criticar as punições aos militares que participaram da repressão na ditadura uruguaia (1973-185), dizendo que “seguir julgando o Exército pelo que aconteceu há quarenta anos é a mesma coisa que julgar o que os militares fizeram na Guerra do Paraguai”. Ele terminou a eleição de outubro com 10,88% dos votos (260 mil entre 2,4 milhões de eleitores), número insuficiente para disputar o segundo turno, mas semelhante à proporção de gente que, nos outros países, demonstrou apoio eleitoral ao discurso da direita conservadora. Em uma campanha que rodeou o aumento da violência, a solução que Manini deu foi “mão dura e bala” – leia-se armar a população e dar mais liberdade para a polícia atirar em suspeitos. Em tempo: o rótulo de “Bolsonaro uruguaio”, dado pela imprensa, foi prontamente admitido por ele, ao contrário de Luís Lacalle Pou, candidato da direita que vai disputar o segundo turno presidencial neste domingo, dia 24 de novembro.
A Argentina, por sua vez, se viu em uma espécie de briga pelo rótulo oferecido pelo presidente brasileiro, apesar de ambos ocuparem o mesmo espectro moral: de um lado Alfredo Olmedo, um ex-deputado que, entre as polêmicas, defendeu a construção de banheiros exclusivos para homossexuais em discotecas de Salta, seu reduto político. Em dezembro, ele viajou ao Brasil para se encontrar com Bolsonaro e encheu seus perfis nas redes sociais com fotos ao lado dele, voltando à Argentina se dizendo o “Bolsonaro argentino”. Do outro, o militar reformado Juan José Centurión, que critica o afastamento da sociedade atual dos “valores fundacionais da Argentina”, que ele centralizou no que chamou de “direito à vida” – sua campanha se amparou na crítica à legalização do aborto, que foi discutida no ano passado no país diante de uma grande atenção da imprensa internacional. Recentemente, ele disse em uma entrevista que se considera o equivalente argentino de Jair Bolsonaro. Saiu das urnas agora com 1,7% dos votos.
Eles não são os únicos que brigam pelo nome do totem: o senador Paraguayo “Payo” Cubas ficou conhecido no Paraguai pelos cintarazos (cintadas, literalmente) que desfere nos adversários políticos, além de reiterar que o seu país precisa de uma nova ditadura, que só não seja “tirana”. Da mesma forma que os demais, é chamado na imprensa local de “Bolsonaro paraguaio” – e ele gosta. Em Honduras, o presidente eleito em junho deste ano, Nayib Bukele, de 36 anos, também é chamado de “Bolsonaro” do seu país, mas por seu discurso antissistêmico.
Onde ainda não há Bolsonaros, há quem tema a aparição deles. “‘Ele’ já está na mente dos conservadores que, ante a delinquência crescente, pedem mais polícia e celebram quando ela mata um delinquente”, escreve um colunista do jornal Acento, da República Dominicana. “Os cidadãos devem se afastar dessa perigosa mensagem de que ‘todo político é mal’. Se chegar um Bolsonaro aqui, (…) será pela irresponsabilidade de incendiar e não reconstruir”, advertiu recentemente outro articulista, do El Telegrafo, do Equador. Nos jornais colombianos, salvadorenhos e guatemaltecos também se encontram pequenas versões locais (e temores de ascensões nacionais) do presidente brasileiro.
O fenômeno não é supérfluo: os partidos e os candidatos da direita conservadora latino-americana ainda crescem nos parlamentos, nas redes sociais, nos discursos em disputa e no imaginário de boa parte das populações – como se viu nas últimas eleições e eventos na região. É preciso, antes de tudo, entendê-los. E, então, partir para o combate.
* Vinícius Mendes é jornalista, cientista social e mestrando do departamento de Sociologia da USP.
Quando o empresário coreano-boliviano Chi Hyun Chung irrompeu por uma das ruas que dão acesso à Praça Kantuta, na região do Pari, zona central de São Paulo, no final de setembro, ninguém o notou de imediato. A chuva fina que caía sobre a cidade naquele domingo havia afugentado a maioria dos frequentadores que, normalmente, lotam o local – principal reduto de lazer dos bolivianos que vivem na capital paulista – neste dia da semana. À boca pequena, se dizia que a visita num dia daquele era benéfica, porque não permitiria que ele aglomerasse muita gente ao seu redor.
Quando, enfim, foi percebido, a praça se dividiu: uma parte das pessoas correu para pedir autógrafos, fazer vídeos ou tirar selfies com ele, enquanto outra passou a gritar o nome do então presidente da Bolívia, Evo Morales. De longe, enquanto eu via a aglomeração, uma conhecida surgiu correndo em minha direção gritando com um sorriso irônico: “Você viu o ‘Bolsonaro boliviano?’”. Naquela mesma semana, os jornais bolivianos Pagina Siete e Los Tiempos publicaram uma pesquisa de intenção de voto para as eleições do final de outubro com uma surpresa: o empresário asiático, candidato havia um mês, aparecia na quarta posição, com 3% das escolhas.
No final de outubro, depois da polêmica recontagem dos votos e o início da crise boliviana que se arrasta até agora, pouca gente percebeu que Chi, que concorreu pelo Partido Democrata Cristiano (PDC), terminou as eleições com 8,78% dos votos totais. Em números reais, 539 mil eleitores queriam que ele fosse o presidente do país entre um universo de 6,1 milhões de pessoas. No Brasil, ele somou 16,72% dos votos – mais de 5 mil pessoas.
Em junho, quando o Pagina Siete e o Los Tiempos publicaram uma das primeiras pesquisas eleitorais, o nome de Chi Hyun Chung sequer aparecia entre os entrevistados. A polarização entre Evo Morales e o ex-presidente Carlos De Mesa era fragilmente desafiada pelo senador Óscar Órtiz, um empresário de Santa Cruz de la Sierra que despontava em terceiro lugar. Em um período de dois meses, no entanto, a campanha de Chi cresceu nas redes sociais principalmente por causa das polêmicas morais: no começo de setembro, ele disse – para desespero da entrevistadora do canal ATB – que as mulheres precisam ser educadas para evitar agressões dos homens. “Enquanto o homem fala uma vez, a mulher fala dez. Não é correto”, afirmou.
Segundo a Cepal, a Bolívia é o país com o maior índice de feminicídios da América do Sul, com dois assassinatos deste tipo registrados a cada 100 mil mulheres.
Dias antes, ele havia chamado a atenção da imprensa local ao afirmar que pessoas LGBT sofrem de um “complexo” e que necessitam de tratamentos psiquiátricos para “determinar se o problema que elas têm é oriundo de casa, que se arrastam do passado, ou se têm algum complexo por causa de uma violência sexual ou física na família”. Foi nessa mesma época que ele advertiu que a crença na Pachamama – a Mãe Terra, uma das principais deidades dos Andes sul-americanos até hoje – é uma “artimanha do Diabo”. Não tardou em ser chamado pela imprensa internacional, como o jornal espanhol El País, de “Bolsonaro boliviano”.
Pastor da Igreja Presbiteriana da Bolívia, de origem sul-coreana, Chi Hyun Chung, de 49 anos, era a última expressão de um setor que, dias depois, faria explodir uma crise política e social na Bolívia, e na qual ele mesmo seria atropelado por um outro candidato a “Bolsonaro”: o empresário Luis Fernando Camacho, presidente do Comitê Cívico Pró Santa Cruz, um dos bunkers históricos da oposição ao MAS, de Evo. Antes de entrar no antigo palácio presidencial, o Quemado, com uma bíblia nas mãos – imagem que rodou o mundo minutos depois de ser publicada em seu perfil –, ele passou dias tentando entrar em La Paz com o livro cristão e uma carta de renúncia ao então presidente. “Ele legitima sua posição autoritária com o discurso religioso no estilo Bolsonaro”, disse o sociólogo boliviano Julio Cordova à BBC.
Jeanine Añez, a autoproclamada presidente da Bolívia, teve o mesmo gesto: no dia em que jurou o cargo, saiu do palácio com uma Bíblia erguida. A agência France Presse, em um trabalho de checagem, mostrou tweets de Añez em 2013 afirmando que a festa do ano novo aimará, geralmente comemorado em junho, é um ritual satânico. Em outro, chama Evo de “pobre índio”.
Figuras como a de Chi Hyun Chung e Luis Fernando Camacho estão crescendo na América Latina à sombra de suas semelhanças com o presidente brasileiro, que lhes oferece as ambições políticas, os discursos desbocados e preconceituosos, uma visão de mundo binária e, principalmente, o rótulo do sobrenome, que entrega legitimidade ao mesmo tempo em que perpetua Bolsonaro como uma espécie de totem da direita conservadora da região, sem que ele trabalhe para ser essa liderança. Assim, o fenômeno social adquire os traços de um rosto que lhe cai bem. Compreender os “Bolsonaros latino-americanos” – e a maneira como eles assumem, felizes, o rótulo – a partir dessa perspectiva depende de duas posturas: a primeira é entendê-los como porta-vozes de setores específicos das diferentes sociedades latino-americanas que, ainda que muito parecidas entre si, guardam também suas próprias lutas no campo dos discursos e das demandas – Camacho, por exemplo, é o símbolo tanto de uma oposição conversadora amparada na moral, semelhante ao Brasil, como também expressa uma divisão fortíssima entre o Oriente boliviano, dito “branco”, e o Ocidente, no altiplano, dito “índio” – ou colla –, que rememora os tempos coloniais do país.
Assim, se não se pode falar em uma única direita conservadora na América Latina, pode-se pensar em um fio condutor de todos os discursos direitistas que se tornaram legítimos nos últimos anos nas sociedades e nas políticas institucionais. Ele se prende e cresce, ao meu ver, quando do choque entre as demandas sociais em disputa no centro do Ocidente – notadamente as pautas identitárias – e uma moralidade impregnada há muito tempo nas relações sociais neste lado do mundo. O crescimento do protestantismo pentecostal nas últimas décadas e sua carga conservadora foi só o elemento final dessa combustão.
No final de outubro, depois da polêmica recontagem dos votos e o início da crise boliviana que se arrasta até agora, pouca gente percebeu que Chi, que concorreu pelo Partido Democrata Cristiano (PDC), terminou as eleições com 8,78% dos votos totais. Em números reais, 539 mil eleitores queriam que ele fosse o presidente do país entre um universo de 6,1 milhões de pessoas. No Brasil, ele somou 16,72% dos votos – mais de 5 mil pessoas.
Em junho, quando o Pagina Siete e o Los Tiempos publicaram uma das primeiras pesquisas eleitorais, o nome de Chi Hyun Chung sequer aparecia entre os entrevistados. A polarização entre Evo Morales e o ex-presidente Carlos De Mesa era fragilmente desafiada pelo senador Óscar Órtiz, um empresário de Santa Cruz de la Sierra que despontava em terceiro lugar. Em um período de dois meses, no entanto, a campanha de Chi cresceu nas redes sociais principalmente por causa das polêmicas morais: no começo de setembro, ele disse – para desespero da entrevistadora do canal ATB – que as mulheres precisam ser educadas para evitar agressões dos homens. “Enquanto o homem fala uma vez, a mulher fala dez. Não é correto”, afirmou.
Segundo a Cepal, a Bolívia é o país com o maior índice de feminicídios da América do Sul, com dois assassinatos deste tipo registrados a cada 100 mil mulheres.
Dias antes, ele havia chamado a atenção da imprensa local ao afirmar que pessoas LGBT sofrem de um “complexo” e que necessitam de tratamentos psiquiátricos para “determinar se o problema que elas têm é oriundo de casa, que se arrastam do passado, ou se têm algum complexo por causa de uma violência sexual ou física na família”. Foi nessa mesma época que ele advertiu que a crença na Pachamama – a Mãe Terra, uma das principais deidades dos Andes sul-americanos até hoje – é uma “artimanha do Diabo”. Não tardou em ser chamado pela imprensa internacional, como o jornal espanhol El País, de “Bolsonaro boliviano”.
Pastor da Igreja Presbiteriana da Bolívia, de origem sul-coreana, Chi Hyun Chung, de 49 anos, era a última expressão de um setor que, dias depois, faria explodir uma crise política e social na Bolívia, e na qual ele mesmo seria atropelado por um outro candidato a “Bolsonaro”: o empresário Luis Fernando Camacho, presidente do Comitê Cívico Pró Santa Cruz, um dos bunkers históricos da oposição ao MAS, de Evo. Antes de entrar no antigo palácio presidencial, o Quemado, com uma bíblia nas mãos – imagem que rodou o mundo minutos depois de ser publicada em seu perfil –, ele passou dias tentando entrar em La Paz com o livro cristão e uma carta de renúncia ao então presidente. “Ele legitima sua posição autoritária com o discurso religioso no estilo Bolsonaro”, disse o sociólogo boliviano Julio Cordova à BBC.
Jeanine Añez, a autoproclamada presidente da Bolívia, teve o mesmo gesto: no dia em que jurou o cargo, saiu do palácio com uma Bíblia erguida. A agência France Presse, em um trabalho de checagem, mostrou tweets de Añez em 2013 afirmando que a festa do ano novo aimará, geralmente comemorado em junho, é um ritual satânico. Em outro, chama Evo de “pobre índio”.
Figuras como a de Chi Hyun Chung e Luis Fernando Camacho estão crescendo na América Latina à sombra de suas semelhanças com o presidente brasileiro, que lhes oferece as ambições políticas, os discursos desbocados e preconceituosos, uma visão de mundo binária e, principalmente, o rótulo do sobrenome, que entrega legitimidade ao mesmo tempo em que perpetua Bolsonaro como uma espécie de totem da direita conservadora da região, sem que ele trabalhe para ser essa liderança. Assim, o fenômeno social adquire os traços de um rosto que lhe cai bem. Compreender os “Bolsonaros latino-americanos” – e a maneira como eles assumem, felizes, o rótulo – a partir dessa perspectiva depende de duas posturas: a primeira é entendê-los como porta-vozes de setores específicos das diferentes sociedades latino-americanas que, ainda que muito parecidas entre si, guardam também suas próprias lutas no campo dos discursos e das demandas – Camacho, por exemplo, é o símbolo tanto de uma oposição conversadora amparada na moral, semelhante ao Brasil, como também expressa uma divisão fortíssima entre o Oriente boliviano, dito “branco”, e o Ocidente, no altiplano, dito “índio” – ou colla –, que rememora os tempos coloniais do país.
Assim, se não se pode falar em uma única direita conservadora na América Latina, pode-se pensar em um fio condutor de todos os discursos direitistas que se tornaram legítimos nos últimos anos nas sociedades e nas políticas institucionais. Ele se prende e cresce, ao meu ver, quando do choque entre as demandas sociais em disputa no centro do Ocidente – notadamente as pautas identitárias – e uma moralidade impregnada há muito tempo nas relações sociais neste lado do mundo. O crescimento do protestantismo pentecostal nas últimas décadas e sua carga conservadora foi só o elemento final dessa combustão.
A segunda postura, interna à primeira, é levar em conta o passado – notadamente o militar. Isso se explica no exemplo de José Antonio Kast, chamado pela imprensa internacional de “Bolsonaro chileno” desde as eleições presidenciais de 2017, no Chile, por sua visão positiva da ditadura militar chilena, inclusive argumentando que a queda de Salvador Allende, presidente eleito em 1970 e deposto pelo Exército três anos depois, foi na verdade um “ato do povo”. Naquela campanha eleitoral, a sua frase mais impactante foi dizer que, se Augusto Pinochet, ditador do país entre 1973 e 1990, estivesse vivo, votaria nele. Na mesma época, afirmou ainda que a ditadura fez muitas coisas em prol dos direitos humanos no país. “Quando eu falo de melhorar a saúde, quando falo de melhorar a qualidade da educação, quando falo de melhorar a economia, também estou vendo a melhora da qualidade de vida das pessoas, que também são direitos humanos positivos.” Apesar das frases polêmicas, ele terminou a eleição, em que concorreu de forma independente, com 7,93% dos votos (523 mil escolhas entre 6,5 milhões de eleitores).
Segundo um informe produzido por uma comissão pública em 2011, vale dizer, a ditadura chilena deixou 40 mil vítimas entre mortos, desaparecidos e torturados entre 1973 e 1990.
Kast também defende a legalização da posse de armas e se coloca absolutamente contra qualquer tipo de aborto (“O único inocente em um abuso sexual é a criança que vai nascer”). Nas manifestações de outubro no Chile, ele manteve-se ao lado do presidente Sebastián Piñera, mas classificou todos os protestos como “atos terroristas” e, na mesma linha, chamou os manifestantes de “delinquentes”. Até 2016, ele era deputado pela Unión Demócrata Independiente (UDI), um partido de direita que foi de 11 cadeiras no parlamento em 1989 para 37 duas décadas depois. Atualmente, 30 das 155 cadeiras do Congresso chileno estão nas mãos da UDI, enquanto Kast trabalha em um novo partido, o Republicano, que vai disputar as próximas eleições, em 2020. O “Bolsonaro chileno” acredita que vai disputar o segundo turno pela primeira vez.
No caso dele, mais do que a moralidade e o aspecto religioso, o que existe é uma disputa intensa pela ressignificação de um passado que a produção acadêmica e a indústria cultural pareciam indicar que já estava consensualmente simbolizado: Kast é o porta-voz de uma parte da população que, quase três décadas depois, finalmente pode dizer publicamente que o período pinochetista foi bom, seja econômica, social ou moralmente. A ascensão dele é, assim, a ascensão de um discurso outrora tampado à fogo baixo. Então, o rótulo de “Bolsonaro chileno” lhe cabe: enquanto um se orgulha de ser o candidato de Pinochet, o outro trouxe de volta à vida um homem cuja fama está em ter sido responsável pelo desaparecimento e morte de cerca de sessenta pessoas durante o período militar brasileiro.
No Uruguai, o “Bolsonaro local”, o general do Exército Guido Manini Ríos, também faz parte dessa ressignificação da história: ele entrou em colisão com o atual presidente, Tabaré Vázquez, por criticar as punições aos militares que participaram da repressão na ditadura uruguaia (1973-185), dizendo que “seguir julgando o Exército pelo que aconteceu há quarenta anos é a mesma coisa que julgar o que os militares fizeram na Guerra do Paraguai”. Ele terminou a eleição de outubro com 10,88% dos votos (260 mil entre 2,4 milhões de eleitores), número insuficiente para disputar o segundo turno, mas semelhante à proporção de gente que, nos outros países, demonstrou apoio eleitoral ao discurso da direita conservadora. Em uma campanha que rodeou o aumento da violência, a solução que Manini deu foi “mão dura e bala” – leia-se armar a população e dar mais liberdade para a polícia atirar em suspeitos. Em tempo: o rótulo de “Bolsonaro uruguaio”, dado pela imprensa, foi prontamente admitido por ele, ao contrário de Luís Lacalle Pou, candidato da direita que vai disputar o segundo turno presidencial neste domingo, dia 24 de novembro.
A Argentina, por sua vez, se viu em uma espécie de briga pelo rótulo oferecido pelo presidente brasileiro, apesar de ambos ocuparem o mesmo espectro moral: de um lado Alfredo Olmedo, um ex-deputado que, entre as polêmicas, defendeu a construção de banheiros exclusivos para homossexuais em discotecas de Salta, seu reduto político. Em dezembro, ele viajou ao Brasil para se encontrar com Bolsonaro e encheu seus perfis nas redes sociais com fotos ao lado dele, voltando à Argentina se dizendo o “Bolsonaro argentino”. Do outro, o militar reformado Juan José Centurión, que critica o afastamento da sociedade atual dos “valores fundacionais da Argentina”, que ele centralizou no que chamou de “direito à vida” – sua campanha se amparou na crítica à legalização do aborto, que foi discutida no ano passado no país diante de uma grande atenção da imprensa internacional. Recentemente, ele disse em uma entrevista que se considera o equivalente argentino de Jair Bolsonaro. Saiu das urnas agora com 1,7% dos votos.
Eles não são os únicos que brigam pelo nome do totem: o senador Paraguayo “Payo” Cubas ficou conhecido no Paraguai pelos cintarazos (cintadas, literalmente) que desfere nos adversários políticos, além de reiterar que o seu país precisa de uma nova ditadura, que só não seja “tirana”. Da mesma forma que os demais, é chamado na imprensa local de “Bolsonaro paraguaio” – e ele gosta. Em Honduras, o presidente eleito em junho deste ano, Nayib Bukele, de 36 anos, também é chamado de “Bolsonaro” do seu país, mas por seu discurso antissistêmico.
Onde ainda não há Bolsonaros, há quem tema a aparição deles. “‘Ele’ já está na mente dos conservadores que, ante a delinquência crescente, pedem mais polícia e celebram quando ela mata um delinquente”, escreve um colunista do jornal Acento, da República Dominicana. “Os cidadãos devem se afastar dessa perigosa mensagem de que ‘todo político é mal’. Se chegar um Bolsonaro aqui, (…) será pela irresponsabilidade de incendiar e não reconstruir”, advertiu recentemente outro articulista, do El Telegrafo, do Equador. Nos jornais colombianos, salvadorenhos e guatemaltecos também se encontram pequenas versões locais (e temores de ascensões nacionais) do presidente brasileiro.
O fenômeno não é supérfluo: os partidos e os candidatos da direita conservadora latino-americana ainda crescem nos parlamentos, nas redes sociais, nos discursos em disputa e no imaginário de boa parte das populações – como se viu nas últimas eleições e eventos na região. É preciso, antes de tudo, entendê-los. E, então, partir para o combate.
* Vinícius Mendes é jornalista, cientista social e mestrando do departamento de Sociologia da USP.
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