quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A aliança que sustenta o governo Bolsonaro

Por Luiz Filgueiras e Graça Druck, no site Outras Palavras:

“Se a esquerda radicalizar a esse ponto,
a gente vai precisar ter uma resposta.
E uma resposta pode ser via um novo AI-5”. 

(Eduardo Bolsonaro)

“Sejam responsáveis, pratiquem a democracia. Ou democracia é só
quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses
você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade
é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não
aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”
(Paulo Guedes)


O ministro admitiu que o ritmo das reformas desacelerou no Congresso
após a aprovação das mudanças na Previdência e disse que, quando as
pessoas começam a ir para as ruas “sem motivo aparente”, é preciso
“entender o que está acontecendo” e avaliar se é possível prosseguir
com a agenda liberal
(Folha de S.Paulo, 23/11)


No momento atual - transcorridos onze meses do governo Bolsonaro, mais de três anos do golpe/impeachment que pôs fim ao governo de Dilma Rousseff eleita democraticamente, e seis anos das manifestações de 2013 que deram início à atual conjuntura político-econômica do país –, pode-se identificar, mais claramente, o significado e o sentido de todo o processo, bem como reconstituir a sua origem e desenvolvimento – destacando-se alguns dos seus aspectos fundamentais.

A convergência entre neoliberalismo e neofascismo

Antes de tudo, o processo em curso expressa um movimento político mais amplo, internacional, de ascensão da direita e extrema-direita em inúmeros países, tanto no centro quanto na periferia do capitalismo. Em todos os casos, em maior ou menor grau, esse movimento representa e articula, de forma aparentemente bizarra, um conjunto de interesses e tendências ideológicas, que podem ser resumidos em: ultra-neoliberalismo, autoritarismo político (desqualificação do Estado Democrático de Direito), nacionalismo efetivo ou retórico (contra a “globalização”), xenofobismo (contra a imigração), reacionarismo moral e cultural (anti-iluminista), fundamentalismo religioso cristão (católico e, principalmente, evangélico). E que tem como meio fundamental de propagação e arregimentação de militantes e apoiadores o uso intensivo das redes sociais, fazendo uso da chamada “Guerra Híbrida”.

No plano internacional, a crise geral do capitalismo, eclodida em 2008, assim como a resposta dada pelos diferentes Estados nacionais (socialização dos prejuízos do sistema financeiro, através do endividamento dos Estados) e, na sequência, o aprofundamento das políticas e reformas neoliberais nos países periféricos (a partir da crise da Zona do Euro em 2010), se constituem na base material dessa ascensão da nova direita e extrema-direita em escala mundial. Elas conseguiram capturar a raiva e o ressentimento dos “perdedores” do processo de mundialização do capital dos últimos quarenta anos (conduzido pelas finanças e o neoliberalismo) e direcioná-los contra inimigos imaginários e o establishment em geral (a democracia liberal); raiva e ressentimento derivados do desemprego, da pobreza, da insegurança e da precarização do trabalho e da vida. A incapacidade do liberalismo clássico e da social-democracia, em apresentar alternativas ao ultra-neoliberalismo e suas consequências sociais, facilitou o crescimento do neofascismo.

Para além das aparências e da retórica, há uma clara convergência política, uma afinidade eletiva, entre o neoliberalismo, enquanto expressão dos interesses do capital financeiro – doutrina/ideologia, política econômica e tipo de racionalidade –, e a atual ascensão da extrema-direita (no limite, o neofascismo). Assim como na sua primeira experiência prática no Chile da Ditadura de Pinochet (1973), a implementação das reformas e políticas neoliberais (de natureza regressiva e excludente, gerando mais pobreza, desigualdade e instabilidade) exigem, ao fim e ao cabo, um Estado de Exceção. Como o programa e as políticas neoliberais não têm o que oferecer à esmagadora maioria da população em qualquer parte do mundo, a democracia liberal e o Estado de Direito se evidenciam, cada vez mais, incompatíveis com os interesses e as políticas do capital financeiro. Portanto, a potencial tensão e oposição entre neoliberalismo e democracia (daí a sua crise), presente desde o início dessa utopia regressiva, concretiza-se claramente na atualidade.

Além de atuar pela implantação de um Estado de Exceção – um estado de emergência permanente, não assumido formal e explicitamente, que corrói o Estado Democrático de Direito por dentro, permitindo a perseguição e o extermínio de adversários políticos e grupos de pessoas consideradas à margem da “normalidade” por qualquer razão e/ou não assimiláveis pelo sistema político –, essa extrema-direita contemporânea, neofascista, com caráter mobilizador, dá ao capital financeiro e a sua expressão político-ideológica (o neoliberalismo) uma massa de apoio sensibilizada, principalmente, em sua maioria, não pelo programa do capital financeiro e a política neoliberal enquanto tais, mas por valores morais e culturais retrógrados, assim como pelo fundamentalismo religioso – inclusa a “teologia da prosperidade” evangélica, de inspiração neoliberal.

O golpe de 2016 e o impeachment da presidente Dilma Rousseff

Especificamente no Brasil, o momento de inflexão que dá início à atual conjuntura foi a eclosão das manifestações massivas de 2013, ocorridas nas principais cidades. Motivadas, inicialmente, pelo aumento das tarifas dos transportes urbanos, rapidamente evoluíram para se redirecionar contra os péssimos serviços públicos em geral (saúde, educação etc.), associando-os ao mau uso do dinheiro público (em especial à corrupção) pelos governos municipais, estaduais e, principalmente, o governo federal. Naquele momento começaram a aparecer os primeiros sinais no país de utilização e desenvolvimento da “guerra híbrida” – desencadeada por dentro e por fora das redes sociais. Em sua esteira, vieram a desqualificação e a demonização da política, dos partidos políticos e dos políticos, sintetizadas na “luta contra a corrupção”; que se desdobrou, posteriormente, no ataque ao Estado em geral, mas sobretudo ao Estado social, e a tudo que é público e coletivo, tendo como contraposição o individualismo e a meritocracia. Aí, a semente da conjunção entre neofascismo e neoliberalismo, que se desenvolveria rapidamente nos anos seguintes, foi plantada.

A extrema polarização das eleições de 2014, com a vitória apertada do campo da esquerda, e que já expressava a mudança da conjuntura anunciada pelas manifestações do ano anterior, detonou o processo que levou ao Golpe de Estado de tipo novo, executado por dentro da ordem democrática e fazendo uso de suas instituições. O sujeito fundamental do Golpe, subjacente a todo o processo, mas claramente identificado na obra neoliberal efetivada após a posse de Temer, foi a burguesia cosmopolita (sócia menor umbilical dos capitais imperialistas) e o imperialismo. A sua base social de massa constituiu-se principalmente de parte majoritária da “classe média”, mas também de alguns segmentos das classes populares – ganhos para o ideário da anticorrupção (sempre associada ao Estado) e da meritocracia. Os seus operadores, a linha de frente da ação política, foram a mídia corporativa, o próprio Parlamento, o Poder Judiciário, o Ministério Público (em especial a “Lava Jato”) e a Polícia Federal. E, por fim, como apoiadores e participantes ativos, o Golpe contou com as Igrejas Evangélicas e inúmeras organizações empresariais corporativas e organizações político-ideológicas de direita – muitas delas articuladas e financiadas internacionalmente.

Para além dos eventos de 2013 e das eleições de 2014, as razões mais profundas da mudança da conjuntura podem ser identificadas no impacto continuado da crise mundial do capitalismo no Brasil, que se evidenciou a partir do Governo Dilma em 2011. A desaceleração do crescimento, ano a ano, combinada com a resposta dada por este governo, com a política de desoneração tributária para inúmeros setores da economia, criou um déficit fiscal primário a partir de 2014 – situação que não ocorria desde 1999. Para piorar as coisas, a execução da política de ajuste fiscal (peça-chave do programa derrotado nas eleições) a partir de 2015, logo no início do segundo governo Dilma, levou a economia à recessão, aumentando rapidamente as taxas de desemprego e aprofundando o déficit fiscal em virtude da redução das receitas.

Na nova conjuntura econômica, de aumento do desemprego e queda dos rendimentos, a insatisfação política com o governo se ampliou, abrindo espaço para o discurso neoliberal e sua crítica às políticas econômico-sociais executadas pelo Estado desde a segunda metade do primeiro governo Lula. Nesse ambiente, a ofensiva da burguesia cosmopolita, para retomar o protagonismo no bloco no poder reduzido parcialmente a partir de meados do primeiro governo Lula, em razão da relação privilegiada dos Governos do PT com a burguesia interna, prosperou. E a ponta de lança dessa ofensiva, utilizada historicamente (desde a campanha que levou ao suicídio de Getúlio Vargas) pela burguesia associada ao imperialismo, foi mais uma vez a bandeira da anticorrupção – que mobilizou a massa da classe média para o apoio e execução do golpe, com a organização de grandes atos públicos.

A ascensão da extrema-direita

No processo de preparação e mobilização para o golpe, a extrema-direita veio à “luz do dia”, com seus adeptos, até então dispersos, aglutinando-se na criação de um movimento neofascista no país; cujos primeiros sinais, mirando agora retrospectivamente, já se podiam notar no interior das manifestações de 2013. Um movimento articulado nas redes sociais, contando com robôs e uma milícia digital típicos da “guerra híbrida”. O reconhecimento de seu caráter neofascista, ao mesmo tempo diferente e semelhante aos movimentos que ocorreram no mundo na primeira metade do século XX, justifica-se, apesar de se viver outro tempo histórico e outro momento do sistema capitalista, por algumas de suas características marcantes que o fazem “filho” da grande família do fascismo.

Antes de tudo, a sua própria condição de movimento, que aglutina e mobiliza militantes políticos em torno de um líder (ainda não partidariamente), sensibilizados por frustrações, medos, rancores e pelo ódio e o ressentimento contra o “outro”– que pode ser identificado em vários tipos de sujeitos: o imigrante, o comunista, o nordestino, o gay, o negro, a mulher, o artista, o intelectual, o professor, o político, o funcionário público etc. Mobilização que assume um caráter permanente de luta político-ideológica agressiva, que aponta para a negação e eliminação dos adversários – responsáveis, supostamente, por todos os problemas do país. Adicionalmente, esse movimento se caracteriza por forte conotação emocional e de irracionalidade: anti-iluminista, anti-intelectual e desprezo à teoria – com o uso sistemático da mentira e da falsidade histórica, praticando a distorção da linguagem e dos objetos que ela designa. Para completar, reacionarismo moral e cultural (culto às tradições), associado a uma explicação mítica, mágico-religiosa, do mundo e da política.

O resultado de todo o processo acabou por desembocar na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro para Presidente da República, o representante maior, mas não único, da extrema-direita brasileira. A radicalização da polarização política, que vinha desde a eleição anterior de 2014, se aprofundou e engoliu a direita tradicional neoliberal que conspirou e participou ativamente do golpe, abrindo espaço para a extrema-direita neofascista e ultra-neoliberal. O novo fenômeno trouxe para política indivíduos bizarros, completamente desconhecidos, e implicou a eleição de um Congresso de perfil fortemente conservador e reacionário – a ponto de um Partido “nanico”, o PSL, passar a ter a segunda bancada da Câmara. A prisão de Lula, impedido de disputar as eleições, foi decisiva para a derrota eleitoral da esquerda, assim como o papel cumprido pela Justiça e a Lava Jato – agora claramente evidenciado pelas revelações (Vaza Jato) do The Intercept Brasil.

O governo Bolsonaro: a obra neoliberal-neofascista

No governo Bolsonaro podem ser identificadas três correntes de extrema direita: a neofascista, a ultra-neoliberal e a militar tradicional, esta última em segundo plano. A extrema-direita neofascista tem três ramificações, que cumprem papéis diferenciados e se movem em esferas distintas, quais sejam:

1- O bolsonarismo, centrado na figura do líder e movido a milícias digitais nas redes sociais, é quem permanentemente mobiliza e dirige a massa do movimento neofascista – dando-lhe motivos reais ou imaginários para ataques e agressões aos adversários.

2- A Lava Jato e os operadores do direito (integrantes do Ministério Público, Promotores e Juízes), que se atribuem a função messiânica de limpar o país da corrupção e dos corruptos (os “Savonarolas” contemporâneos), encarregam -se de criminalizar “legalmente” os adversários, manter um clima de suspeita e medo, colocando a “luta contra a corrupção” como uma tarefa permanente e inacabável.

3- As igrejas evangélicas, em especial as neopentecostais, que unem em um só sujeito o casamento do neoliberalismo com o neofascismo – explícito no programa político da Frente Parlamentar Evangélica entregue a Bolsonaro após o primeiro turno das eleições –, incubem-se do controle e manipulação político-religiosa da massa desorganizada e mais pobre das periferias, inculcando-lhes preconceitos, valores morais arcaicos e individualistas, o anticomunismo histérico, mentiras e medos.

A extrema direita ultra-neoliberal, representada sem qualquer disfarce pelo ministro da Economia e seu entorno, é, de fato, a condutora das reformas e das políticas econômicas reivindicadas pelo grande capital financeirizado e o imperialismo. Portanto, é ela que expressa e conduz os interesses dos verdadeiros “donos do poder”, razão maior do Golpe, e que tem forte apoio na quase totalidade da alta classe média.

E, por fim, a extrema direita militar tradicional, avessa à mobilização política ativa de qualquer segmento da população e que se expressa na presença de inúmeros militares nos diversos escalões do governo. Tendo como figura maior o Vice-Presidente da República, mas não parecendo ter uma maior organicidade, o seu discurso evidencia claramente que, além do autoritarismo e anticomunismo tradicionais, o neoliberalismo ganhou os “corações e mentes” dos integrantes das Forças Armadas. O seu papel, simbólico, é de lembrar que as forças armadas estão sempre presentes na função de tutelar a democracia e, caso necessário, poderão ser “chamadas” a golpear o Estado de Direito.

Em suma, o Governo Bolsonaro é o modo de conjunção, especificamente brasileiro, do neoliberalismo com o neofascismo. O conjunto da obra neoliberal (2016-2019), iniciada imediatamente após o Golpe, com o governo Temer, e aprofundado pelo governo Bolsonaro, trás as digitais indeléveis dos interesses econômicos e políticos da burguesia cosmopolita e do imperialismo: congelamento dos gastos correntes por 20 anos, liberação e generalização da terceirização, reforma trabalhista, reforma da Previdência, desmonte da cadeia produtiva do petróleo e entrega do pré-sal às multinacionais, destruição da engenharia pesada nacional, alteração do marco regulatório do petróleo, privatizações e, agora, a ameaça de uma reforma administrativa contra o serviço e os servidores públicos.

No longo prazo, do ponto de vista estrutural, o significado e as implicações dessa obra se manifestarão no aprofundamento da dependência e no aumento da vulnerabilidade externa, desindustrialização, redução do mercado interno, e aumento da desigualdade e da pobreza – cujos indicadores em 11 meses de governo já apontam. E do ponto de vista conjuntural, está levando à estagnação da economia e regressão social; pois essa política ultra-neoliberal afeta negativamente, direta e indiretamente, o consumo das famílias, o investimento das empresas, os gastos do governo e o saldo da balança comercial do país – o conjunto de variáveis que expressa e determina a dinâmica de toda e qualquer economia capitalista.

Por sua vez, o conjunto da obra neofascista também é amplo: apoio a Ditaduras e ataque ao Estado de Direito; defesa da tortura e de torturadores; ataques a Instituições científicas (IBGE, INPE, CNPq); violência armada contra os índios e movimentos sociais; defesa e estímulo ao desmatamento da Amazônia; conivência/omissão/prevaricação no derramamento de petróleo no litoral brasileiro; perseguição das minorias; ataque a Instituições do Estado (STF, BNDES, INCRA); ataque à cultura (ANCINE) e extinção de conselhos populares em todas as áreas; estrangulamento financeiro das Universidades Públicas e tentativa de extinguir a sua autonomia e privatizá-las, através da proposta do MEC denominada de “Future-se” – já rechaçada pela comunidade universitária; tentativa de desmoralização da escola como instituição educadora e de sociabilização, acompanhada da tentativa de impor o projeto autoritário “Escola sem Partido”; e no plano internacional e diplomático, o alinhamento servil (vira-lata) aos EUA, sem a exigência de qualquer tipo de contrapartida.

A responsabilidade da esquerda

Antes de tudo, para se evitar mal-entendidos, deve ser dito que a derrota da esquerda nesse processo, em especial do Partido dos Trabalhadores e seu governo, resultou de um conjunto de contradições, protagonizadas ou não por suas ações. Em outras palavras, o PT e o seu governo foram derrotados por seus méritos, mas também por seus equívocos.

Os governos do PT sintetizaram uma aliança ou frente política, expressa em um programa autodenominado de “neodesenvolvimentista” (crescimento com distribuição de renda), composta pela burguesia interna, trabalhadores organizados e setores populares desorganizados identificados diretamente com Lula. O contexto de ascensão do ciclo econômico internacional nos anos 2000 (a fortuna), combinado com a mudança parcial da política macroeconômica a partir de meados do primeiro governo Lula e a adoção de um conjunto de políticas sociais (a virtude), possibilitou taxas de crescimento do PIB mais elevadas, redução do desemprego e da pobreza, pequena alteração (para melhor) na distribuição de renda (fundamentalmente entre os diversos segmentos de trabalhadores), elevação do consumo (em especial de bens de consumo duráveis) da população em geral, mas especificamente dos segmentos de menor renda. Além de políticas nos campos da habitação (com o Programa Minha Casa, Minha Vida) e da educação (ampliação do FIES e criação do PROUNI, voltados para o acesso a Instituições de Ensino Superior Privadas, e do REUNI, este último viabilizando a criação de mais Instituições Federais de Ensino Superior e ampliação das já existentes).

Esse arranjo político, interpretado pelo PT e seus intelectuais como uma superação do “modelo neoliberal”, ressuscitou a ilusão histórica da possibilidade de um desenvolvimento do capitalismo brasileiro mais autônomo e soberano frente ao imperialismo. O Estado apoiou privilegiadamente – principalmente através da atuação do BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e da Petrobrás – a burguesia interna, promovendo suas empresas, centralizando capitais e internacionalizando-as (a política de fomento aos “campeões nacionais”), expandindo sua influência na América Latina e na África. Esse movimento veio acompanhado por um novo tipo de diplomacia, com forte ênfase nas relações com os demais países periféricos – que promoveu e estimulou programas de cooperação em diversas áreas que, para alguns observadores e analistas políticos, se constituíram na “face simpática do subimperialismo brasileiro”.

No entanto, os relevantes resultados econômico-sociais alcançados, fundamentais principalmente para a população mais pobre, não significaram a superação do neoliberalismo no país. A flexibilização da política macroeconômica (metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante), permitida pela folga no balanço de pagamentos do país nos anos 2000, foi operacionalizada dentro do Padrão de Desenvolvimento Liberal Periférico – constituído a partir dos anos 1990 (governo Collor), consolidado pelos governos de FHC e aceito, como irreversível, pelos governos do PT – que não reverteu nenhuma de suas reformas estruturais. Daí a fragilidade e os estreitos limites dos avanços sociais que beneficiaram a parte mais pobre da população, e que sofreu um rápido processo de desmonte a partir do Golpe. A ilusão de que se estava superando o neoliberalismo deriva de se confundir o Padrão de Desenvolvimento Capitalista (estrutural) com o Regime de Política Macroeconômica (conjuntural) – este último de fato alterado.

A ausência de reformas estruturais, que realmente confrontassem o neoliberalismo, evidenciaram as contradições e limites do arranjo político “neodesenvolvimentista”. A expressão institucional-parlamentar desse arranjo teve como fiel da balança para a “governabilidade”, tal como nos governos de FHC, o chamado “Centrão”; constituindo o que ficou conhecido como o “Presidencialismo de Coalização”. Com a crise econômica, que possibilitou e facilitou a ação política da burguesia cosmopolita e do imperialismo, a expressão parlamentar do arranjo neodesenvolvimentista se desfez, abrindo o caminho para o impeachment. Não tendo respaldo suficiente das mobilizações de massa contra o golpe, a ação político-institucional da esquerda no Parlamento não conseguiu reverter a situação. E, no processo, a burguesia interna (hoje inexistente politicamente e em boa parte desestruturada, com a contribuição decisiva da Lava Jato) “lavou as mãos” ou apoiou abertamente o golpe. De outro lado, retrocedendo no tempo, é importante lembrar que a entrada do neoliberalismo no Brasil a partir do governo Collor impactou fortemente o conjunto das forças políticas em disputa, em particular o Partido dos Trabalhadores.

Acompanhando o movimento geral de deslocamento à direita, o PT aos poucos foi abandonando o seu programa original, depurando-o de seus aspectos claramente socialistas e se assumiu definitivamente como um partido social-democrata na periferia do capitalismo. Vitórias eleitorais sucessivas, em municípios e estados, com ampliação do número de prefeitos, governadores (cargos a serem preenchidos) e parlamentares (com muitos assessores) em todos os níveis, e com um processo de institucionalização e burocratização cada vez maior, a frente de luta institucional-parlamentar se agigantou, deslocando para segundo plano a ampliação, educação, organização e mobilização política cotidiana das bases sociais tradicionais do partido. A ocupação da presidência da República, pela sua liderança maior, aprofundou esse processo e impulsionou mais ainda esse redirecionamento do partido, que se refletiu inclusive no perfil de seus novos integrantes.

Essa prioridade quase que absoluta da frente de luta institucional-parlamentar cobrou o seu preço, manifestado dramaticamente na incapacidade da esquerda em geral, e do PT em particular, em se contrapor ao processo que levou ao golpe. As grandes mobilizações de massa (da classe média) no período foram feitas pelas forças de direita insufladas decisivamente pela mídia corporativa e fazendo uso das redes sociais. As mobilizações contra o golpe, além de claramente menores, alcançaram, fundamentalmente, segmentos sociais minoritários de classe média e de trabalhadores organizados em sindicatos fragilizados e burocratizados. As grandes massas populares das periferias urbanas, cada vez mais influenciadas politicamente pelas igrejas evangélicas (o maior partido de direita do país), ficaram majoritariamente à margem do processo – numa atitude de indiferença – ou tomaram posição a favor do golpe, no caso de seus segmentos mais integrados organicamente a essas igrejas.

Por sua vez, as tendências políticas e organizações e partidos à esquerda do PT não apresentaram robustez e amplitude suficiente para dirigir as forças democráticas e socialistas; na verdade, cumpriram um papel importante de puxar o movimento contra o golpe para as ruas e ações mais combativas, mas um papel coadjuvante e mais localizado em determinados segmentos de trabalhadores. O destaque nesse subcampo da esquerda é, sem dúvida, o MTST e sua liderança maior: Guilherme Boulos. Adicionalmente, algumas de suas tendências e organizações não se mobilizaram contra o Golpe, ou se mobilizaram muito tardiamente, influenciadas por uma interpretação equivocada de que “ser contra o impeachment era ser a favor do governo Dilma e de sua política de ajuste fiscal”. Uma concepção que se reiterou na questão do “Lula Livre”; que não percebe que, em ambos os casos, a questão central é a da defesa da democracia e da esquerda em geral, e não o apoio político a Dilma, a Lula ou ao programa do PT.

Situação atual e perspectivas

A obra neoliberal-neofascista, realizada até aqui, é impressionante pelas mudanças profundas que foram efetivadas na estrutura institucional e econômico-social da sociedade brasileira – em um espaço de tempo muito curto. A reversão dessa nova situação é dificílima e se ocorrer só acontecerá no longo prazo, com a existência de uma correlação de forças bem distinta da atual. E, para isso, é crucial o convencimento majoritário da esquerda, e de suas direções, de que o capitalismo dependente em geral, e o brasileiro especificamente, jamais poderá ter vida própria, descolada do imperialismo. A burguesia cosmopolita, fração hegemônica das classes dominantes, está atada historicamente, e atrelou o país, ao imperialismo; daí não sairá nenhum projeto nacional de desenvolvimento capitalista soberano – articulado ou não com o Estado.

Do ponto de vista conjuntural, no entanto, o ambiente está se alterando, tornando-se mais favorável às forças político-sociais democráticas e de esquerda. O governo Bolsonaro, embora ainda promovendo ataques de vários tipos e em várias áreas, vem sofrendo um desgaste acelerado (detectado em todas as pesquisas de opinião), tanto no âmbito interno quanto internacionalmente; além de sofrer, juntamente com as forças de extrema-direita que o apoiam, derrotas importantes.

No plano internacional, o seu isolamento político é evidente e cada vez maior nas mais diversas áreas: no meio ambiente, direitos humanos, cultura e situações específicas como apoio à política de Israel no oriente médio e o embargo a Cuba patrocinado pelos Estados Unidos. O seu caráter neofascista está registrado, e rejeitado, mundialmente, assim como o da figura ridícula e caricata que hoje dirige o Itamaraty. Na América Latina, apesar do Golpe de Estado executado na Bolívia (após mais uma vitória de Evo Morales) e da vitória da direita no Uruguai (praticamente um empate), a reação ao neoliberalismo e sua políticas vem se difundindo rapidamente: revoltas no Haiti e em Honduras, e grandes movimentos políticos e protestos de ruas no Chile, no Equador e na Colômbia (com vitórias importantes nas eleições municipais), além da derrota eleitoral da direita na Argentina no primeiro turno.

Internamente, assiste-se a um processo agressivo de confronto no interior das forças de direita e extrema-direita, em especial a autofagia do bolsonarismo e o afastamento de vários segmentos de apoiadores; o desmascaramento e a defensiva de Sérgio Moro e da Lava Jato, assim como revelação da politização de parcelas do Ministério Público a ela associadas; derrotas jurídicas importantes no STF, como a derrubada da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, que implicou a soltura do ex-presidente Lula; a instalação da CPI das Fake News, ampliando a percepção de fraude eleitoral na vitória de Bolsonaro; a rejeição do programa proposto pelo MEC para as Universidades Públicas Federais (o Future-se), que foi amplamente criticado e denunciado pela comunidade universitária; e várias derrotas no parlamento (derrubadas de vetos de Bolsonaro), com destaque para a aprovação da lei contra o abuso de autoridade.

O discurso neoliberal de “consertar a economia” e voltar a crescer, gerar empregos e melhorar o bem-estar, bem como a ladainha do “combate à corrupção”, vai se desmoralizando rapidamente, inclusive entre apoiadores do golpe. E a razão disso está, de um lado, na dificuldade de retomada da economia, afetada negativamente pelas reformas e políticas econômicas implementadas por Temer e Bolsonaro e, de outro, nos vínculos cada vez mais explícitos entre a família Bolsonaro e o crime organizado no Rio de Janeiro, em particular as chamadas “milícias” (incluindo suspeitas da implicação da família Bolsonaro com o assassinato da vereadora Marielle Franco e o seu motorista).

Nesses 11 meses de governo, a “arquitetura da destruição” do governo Bolsonaro encontrou limites importantes, que não têm sido destacados com a devida ênfase. E esse é um problema que a maioria da esquerda ainda não percebeu; não consegue valorizar vitórias parciais e freios que foram impostos ao governo: as greves e manifestações contra a reforma da previdência fizeram recuar o projeto original, retirando a capitalização, mantendo a aposentadoria rural e o Beneficio de Prestação Continuada, por exemplo. As mobilizações de rua na área de educação (maio, agosto e setembro) na luta contra os cortes de recursos e perseguição às universidades federais, revitalizaram o movimento estudantil, implicando na rejeição do Future-se (tentativa de desobrigar o Estado com o financiamento público do ensino superior e pôr fim à autonomia universitária) pela a maioria das universidades (as maiores) – que abrigam 82% dos estudantes matriculados – e na suspensão do contingenciamento e bloqueio de recursos.

Os movimentos indígenas e de quilombolas, apesar da violência e de assassinatos de lideranças, têm se enfrentado com o garimpo e os fazendeiros, impondo recuos. A luta dos petroleiros contra a privatização da Petrobrás, demissões em massa e o fechamento de sua unidade na Bahia, inclusive com manifestações e greve que unificaram terceirizados e empregados da Petrobrás, tem sensibilizado a sociedade, apesar da repressão e decisão do TST para inibir o movimento. As frentes parlamentares que foram formadas em defesa do conhecimento e do serviço público, com a realização de audiências públicas, têm denunciado e construído propostas alternativas a essa destruição.

Mais recentemente a libertação de Lula que até pouco tempo, parecia que iria morrer na prisão, expressa o desarranjo das forças reacionárias e de extrema-direita no país, motivado, em grande parte pelas revelações do The Intercept Brasil junto com setores importantes da imprensa, que influenciaram o STF, causando fissuras importantes no seu interior.

Entretanto, o discurso da esquerda em geral sobre a conjuntura política no país, especialmente aquela mais organizada em sindicatos, movimentos e partidos, expressa um sentimento de absoluta derrota, de um abatimento desmobilizador que tem, nas redes sociais, o meio mais eficaz de repercutir quase que exclusivamente os ataques do governo e as barbaridades ditas e tuitadas pelos seus membros, menosprezando os recuos, vacilações e o adiamento de reformas, a exemplo da do funcionalismo público. A repercussão da entrevista de Paulo Guedes à Folha de São Paulo é um exemplo dessa postura. O destaque ficou por conta da ameaça com o AI-5, no melhor estilo bolsonarista; entretanto, ele deixou evidenciado que por trás da ameaça está o medo da contaminação do Brasil pelas revoltas populares na América Latina, bem como do papel do Lula em liberdade – que tem conclamado o povo a ir para as ruas.

É possível que as revoltas e manifestações populares dos países da América Latina contaminem o Brasil? O que estimulou as explosões populares recentes, especialmente no Equador, Chile e Colômbia, assim como a vitória eleitoral na Argentina, foi o fundamentalismo neoliberal, que tem levado amplos segmentos da sociedade a uma situação de empobrecimento e violenta precarização do trabalho e da vida: desemprego, ausência de políticas sociais, privatização de bens coletivos e serviços públicos, aumentos de tarifas e impostos de bens de primeira necessidade (energia, água, combustíveis, transportes etc); implicando um processo de concentração da propriedade e da renda inéditos em sua história.

Desse modo, com as singularidades históricas, políticas, econômicas e sociais de cada país, há um fio condutor comum que tem gerado as revoltas. Ele está nas condições materiais de vida da sociedade, que é a base real das disputas entre as classes sociais. É nesse campo que as forças democráticas e de esquerda podem se reorganizar e construir um novo projeto de sociedade alternativo – não só ao fundamentalismo neoliberal e ao fascismo, mas ao próprio capitalismo, que já não consegue se descolar das formas mais autoritárias e antidemocráticas de governo.

Essa perspectiva de longo prazo, portanto, uma vez admitida, orientaria a ação política conjuntural da esquerda socialista – que tem o desafio de enfrentar ao mesmo tempo um movimento e um governo que fundiram politicamente neofascismo e ultra-neoliberalismo. Embora haja alguns segmentos políticos neoliberais que apoiaram o Golpe e a eleição de Jair Bolsonaro, mas que hoje têm dificuldades com a agenda político-ideológica-cultural do neofascismo e que, por isso, podem se incorporar à luta democrática contra o neofascismo, as evidências de sustentação desse Governo pelo capital financeiro não deixam dúvida: hoje, a luta contra o neofascismo é, concomitantemente, a luta contra o neoliberalismo; mesmo que, eventualmente, a derrota do primeiro não implique necessariamente a derrota definitiva imediata do segundo. Por isso, é urgente a constituição de uma frente de esquerda democrático-popular, nas ruas e no parlamento, que dê o norte à luta democrática, antineoliberal e anti-imperialista.

O “liberalismo brasileiro”, fundado ainda no período da escravidão – constituindo-se em uma “ideia fora de lugar” na periferia do capitalismo, já demonstrou suficientemente, ao longo da história, o seu oportunismo político, inconsistência e fragilidade – ao apoiar, ou na melhor das hipóteses aceitar passivamente, inúmeras vezes, reiteradas tentativas de rupturas ou rupturas efetivas do Estado Democrático de Direito. Agora, mais uma vez, não se pode esperar dele um combate consequente contra o neofascismo em defesa do Estado de Direito; a expressão mais clara disso tem sido o comportamento da grande mídia corporativa e do STF, apoiadores em primeira hora do Golpe e da eleição de Bolsonaro e, agora, mesmo com todas as agressões que vêm sofrendo, sistematicamente coniventes e vacilantes em combater o movimento e o Governo neofascistas.

Os supostos liberais brasileiros, defensores e apoiadores das reformas neoliberais, que esse governo lhes propiciou, têm um medo pavoroso do povo e da esquerda, considerados o seu inimigo de classe. Por isso, e sem negar a possibilidade de, eventualmente, marchar junto com esse liberalismo (retórico e de fachada) na defesa da democracia, a frente de esquerda democrático-popular precisa construir o seu caminho independente, sem abrir mão da luta contra o neoliberalismo e o imperialismo. E, o mais importante, não pode subordinar o combate ao neofascismo a cálculos eleitorais (embora isso também seja importante), do tipo “sangrar Bolsonaro” para derrotá-lo nas eleições 2022. A fraude que elegeu Bolsonaro-Mourão é cada vez mais evidente, assim como, do ponto de vista jurídico, podem ser identificados inúmeros crimes de responsabilidade e de falta decoro já cometidos por Bolsonaro e outros integrantes desse Governo. O “fora Bolsonaro” não pode esperar até as próximas eleições; a continuação da destruição medonha que vem sendo realizada pelo Governo Neofascista-Neoliberal tem que ser estancada, o mais rapidamente possível.

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