quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

O juiz de garantias e a fúria da juristocracia

Por Ana Paula Lemes de Souza, na revista CartaCapital:

O ano de 2019 se marcou por iniciativas de supressão democrática e investidas autoritárias, muitas delas tão escondidas que se tornou difícil enxergá-las com precisão, exigindo um esforço microscópico. São as pulverizações dos microfascismos, vezes tão pequenos e incontáveis que se tornam quase imperceptíveis, pois se acionam sobre as construções de subjetividades.

Outras delas são difíceis de enxergar pela camuflagem. Como numa emboscada da visão, somente são vistas com o afastamento do olhar. São esvaziamentos diversos que solapam as estruturas e, como cromatóforos de camaleões, metamorfoseiam e enganam a visão: destroem a democracia através da própria democracia, esvaziam os sentidos da Constituição utilizando a própria Constituição.

É o que aconteceu por parte do desembargador Benedicto Abicair, do TJRJ, em 08/01/2020, ao determinar à Netflix, em decisão liminar, a suspensão da exibição de “A Primeira Tentação de Cristo”, do Porta dos Fundos, em uso arbitrário e anômalo da ponderação de direitos. Na ponderação entre direito à liberdade de expressão e direitos da personalidade, entendeu que deveriam prevalecer os direitos da personalidade, esvaziando a Constituição pela mobilização de princípios constitucionais. Em seu entendimento, houve o “apossamento” da bíblia, “obra de domínio público milenar”, deixando claro que a obra audiovisual sequer poderia ser titulada como “produção artística”. E todo esse ódio e fundamentalismo sob o verniz do direito.

Mas nem tudo foi cinzas nessa virada de ano…

Um importante respiro contra o autoritarismo na mobilização do direito se dá com a aparição da figura do juiz garantidor, a partir de críticas ao modelo kafkaniano jurídico-processual penal brasileiro, inquisitório e primitivo, que mistura as figuras do juiz investigador com as do juiz da instrução.

Como o deus romano Jano, que possuía duas faces, uma olhando para a frente e outra para trás, o pacote anticrime reserva profundas ambiguidades. De um lado, vários retrocessos e o fortalecimento do punitivismo, com o aumento da pena máxima de 30 para 40 anos, o favorecimento do encarceramento em massa e a dificultação da ressocialização do apenado, com os óbices às progressões de regime e às saídas temporárias. De outro, avanços importantes contra a mobilização política do direito, tal como na figura do juiz garantidor, que alcançou a fúria de lava-jatistas justamente por dificultar o cometimento de abusos escorados na “luta contra a corrupção”.

O juiz garantidor – execrado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, que inclusive sugeriu o veto desse trecho à presidência – aperfeiçoa o dispositivo da imparcialidade e evita que o discurso que motivou a denúncia contamine o processo penal, impossibilitando o juiz que atuou durante a instrução de ser o mesmo a proferir a sentença.

Como Jano – a figura mitológica das duas cabeças que remete a janeiro – o mês que olha para o passado ao mesmo tempo em que vislumbra o ano vindouro – o pacote anticrime entra em vigor em janeiro de 2020, olhando para direções completamente opostas e contraditórias, fornecendo instrumentos contra a instrumentalização política do direito ao mesmo tempo em que infla o estado penal, que é simultaneamente classista, racista e genocida.

Como irá se portar essa lei que se encontra entranhada na origem em um completo confronto dissociativo?

A fúria do judiciarismo

O crescimento do poder dos magistrados se deu, no Brasil, pela mobilização daquilo que Stengers chamou de “alternativas infernais”, como no chavão bolsonarista “menos direitos e mais empregos ou mais direitos e menos empregos”. No caso do judiciarismo, isso se deu pelo argumento de que, se queremos um judiciário de qualidade, isso terá um alto custo, inclusive em termos de reserva de poder.

O importante avanço civilizacional e garantista que representa a figura do juiz garantidor despertou a fúria do judiciarismo, da mesma forma como ocorreu com alguns congressistas, que criticaram a figura, chamando maliciosamente esse avançado instituto de “juiz da impunidade”. Tais ruídos deixam patente a sua potência!

Houve manifestação pública por meio da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros, que alega questões de “custos” – ímpeto parcimonioso de restrição financeira que nunca motivou suas ações, já que, em se tratando de custos, esta Associação advogou no STF pela manutenção do auxílio-moradia para os magistrados.

Do mesmo modo, a Ajufe – Associação dos Juízes Federais do Brasil, manifestou-se contra o juiz garantidor, informando que se trata de instituto de “difícil operacionalização” e que onerará em demasia o orçamento do Poder Judiciário, classificando o instituto como “desnecessário e inadequado”. Tal ânimo poupador não acometeu a Ajufe em outra ocasião, quando emitiu notas em favor do auxílio-moradia, inclusive acionando manobras jurídicas e engodos argumentativos ao dizer que a tratativa para retirar o auxílio se dava como repreenda em relação à atividade “imparcial e combativa contra a corrupção” perfazida pelos juízes federais. Publicou um artigo cheio de artifícios argumentativos, argumentando que o nível salarial da magistratura não tem atraído candidatos tecnicamente capacitados, o que ocasionou um “declínio do nível intelectual” da magistratura.

A mobilização de alternativas infernais é o modo de gestão próprio do capitalismo, que precariza a vida em função da sua reprodução. O judiciarismo, como um veneno letal, mobiliza tais alternativas de forma altamente seletiva, discursivamente dissimuladas sob a ideia de “inviabilidade de custos”. São mesmos olhos de Capitu, que massacram e trituram o direito. É preciso ver com clareza, não se deixar levar nesses olhos de ressaca.

0 comentários: