quinta-feira, 30 de julho de 2020

A quem interessa a liberação das armas?

Por Clara Assunção, na Rede Brasil Atual:

O aumento na circulação de armas e munições no país – e suas consequências – está diretamente relacionado à liberação por decretos e portarias assinados pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início de seu mandato. É o que afirmam especialistas diante do registro de quase 140 mil novas armas de fogo apenas nos primeiros meses de 2020.

Os dados, divulgados em reportagem do programa Fantástico, da TV Globo, a partir de informações da Polícia Federal e do Exército, apontam para um crescimento no número de armas nas mãos dos brasileiros desde 2016. Mas que nesses primeiros meses do ano já ultrapassou o total de 2018, quando pouco mais de 138 mil armamentos foram registrados.

A pergunta que fica é “se a gente tem reiteradamente pesquisas que mostram que 70% dos brasileiros são contra facilitar o acesso a arma de fogo, então a liberação é uma política pública feita para quem?”. A provocação da advogada Isabel Figueiredo, consultora do Fórum Brasileira de Segurança Pública (FBSP), centralizou debate on-line promovido, nesta terça-feira (28), nas redes sociais da liderança da Minoria da Câmara dos Deputados.

Para a consultora do FBSP, a resposta começa a ser desenhada desde que o presidente da Taurus, Salesio Nuhs, anunciou um aumento de 52% nas vendas nacionais neste ano. A maior fabricante de armamento do Brasil confirmou que o lucro cresce à medida que há cada vez mais facilidade de compra. Um “momento mágico”, como definiu o CEO da empresa. Mas que para a população, no geral, é na verdade “um momento trágico”, rebate Isabel.

Indústria bélica lucra

“Há um conjunto de evidências científicas que vão mostrar o impacto disso na segurança pública. Quer dizer, estamos falando de medidas que são tomadas baseadas unicamente na vontade presidencial. Uma questão puramente ideológica. E que não tem lastro técnico ou evidências científicas que comprovam essas medidas de liberação das armas como eficientes, seja do ponto de vista da segurança, como da auto-defesa”, explica a advogada e consultora.

De um lado as armas, do outro as munições. De janeiro a maio, houve um crescimento de 98% nas unidades comercializadas em relação ao mesmo período de 2019. Segundo reportagem do jornal O Globo, apenas em maio 1.541.780 cartuchos foram vendidos no varejo do país. O que equivale a mais de duas mil unidades vendidas por hora.

O aumento coincide com a publicação da Portaria 62, que revogou, em 17 de abril, as normas que regulamentavam o monitoramento e rastreamento desses artefatos. Assim como a Portaria Interministerial 1.634, assinada dois dias depois pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.

A medida alterou, por exemplo, o acesso às munições. Uma pessoa com arma de fogo registrada antes podia adquirir até o limite de 200 unidades por ano. Agora, no entanto, ela pode comprar de 50 a 300 munições por mês, a depender do calibre. Em maio, quando as compras bateram recorde, 1,5 milhão de unidades, entre balas, cartuchos e projéteis, foram vendidas para a sociedade civil. A reportagem mostra que o total ultrapassa a quantidade comprada por todas as polícias do país (1,3 milhão). 

Crise gravíssima

Nas palavras do deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), o momento é “gravíssimo”. “Isso quebra o monopólio da força do Estado. É gravíssimo. Não é uma crise de segurança pública, isso é uma crise da democracia, é muito mais amplo”, alertou o deputado durante o debate.

As portarias já são alvo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 681, apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, conforme reportado pela RBA, desde junho, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu vistas da ADFP, travando o andamento da ação.

De acordo com Freixo, a situação fica ainda mais grave quando observadas as mudanças sobre os chamados CACs, colecionadores, atiradores e caçadores. “Se ele tiver várias armas, ele pode comprar seis mil munições por ano, uma única pessoa. Isso significa que ele pode dar 16 tiros por dia, todos os dias, durante um ano. Essa é a ideia de segurança pública que a gente está vivendo no governo Bolsonaro”, criticou o deputado.

Milícia interessada

Em paralelo à liberação das armas, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e o portal G1, indicam crescimento de 7% nos homicídios no país nos cinco primeiros meses do ano, puxado principalmente pelos estados do Nordeste.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que, historicamente, para cada aumento de 1% no número de armas em circulação, é provocado um crescimento de 2% nos homicídios. Para o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), “o que tem de ser feito é revogar esses decretos. E os governos iniciarem uma campanha de desarmamento, retomar os propósitos do Estatuto”, propôs, durante a live.

O deputado avalia que os decretos e o aumento da violência vêm alimentando uma estratégia explícita em reunião ministerial de abril, que veio à público pelo STF em maio. Na ocasião, Bolsonaro confessou aos seus ministros que gostaria de “armar a população para evitar uma ditadura”.

“Essa agenda de Bolsonaro, acompanhada por outras lideranças políticas é indutora da violência. E essa estratégia de armar ainda mais essa população corresponde a esse viés autoritário e violento que dá identidade ao bolsonarismo. É assim que ele se move, como nas velhas organizações fascistas que se organizavam em estruturas paraestatais para sustentar a posição do líder autoritário”, observou o também deputado Orlando Silva (PCdoB-SP).

Taurus

Orlando Silva lembra que essa associação também é responsável pelo aumento da letalidade policial que, em São Paulo, bateu recorde em plena pandemia. “Porque a palavra de um líder político tem poder”, destaca, concordando com o deputado do PT sobre o papel do Legislativo diante dessa escalada autoritária, a partir da liberação das armas por Bolsonaro. “O Congresso foi leniente com essa atitude do presidente da República. Isso não nos ajuda a criar um ambiente de cultura de paz e tolerância. São dois fundamentos importantes para a experiência democrática”, lamentou o parlamentar.

A advogada Isabel Figueiredo ressaltou, ao final do debate, que não há uma fronteira clara que separa a arma legal da arma que é usada no crime. “É a mesma coisa”, garante.

“A arma do tal ‘cidadão de bem’, que num determinado momento será roubada, extraviada, ou furtada. Que será utilizada na ponta de um homicídio. É o médico que comprou uma arma achando que iria se defender, não conseguiu e essa arma foi parar na mão do crime que matou alguém lá na ponta. Tirando o Rio de Janeiro, que tem um cenário particular, no Brasil de hoje o que se apreende ainda são revólveres e pistolas da Taurus, vendidas legalmente”, finalizou.

Assista a íntegra do debate "Brasil em pandemia: a quem interessa a liberação das armas" [aqui].

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