A distinção entre “negro da casa” e “negro do campo” ficou famosa com Malcolm X. O primeiro se identificava com o senhor de escravos — e colocava-se contra a luta antiescravagista — dadas as suas condições de vida e trabalho um pouco menos brutais na casa grande do que a situação em que viviam os escravizados nas plantations. Malcolm X falava da cooptação e da servidão ao poder instituído numa sociedade escravagista pouco complexa. A ordem burguesa criou várias possibilidades de cooptação e servidão ao poder impossíveis de se imaginar no escravagismo. Se no exemplo de Malcolm eram transparentes as posições políticas e compromissos de cada sujeito, o capitalismo torna a questão bem mais intrincada.
O capitalismo e sua complexa rede de aparelhos ideológicos concebeu a possibilidade de servir aos senhores do capital apresentando-se como neutro, como um pesquisador desinteressado na política que faz ciência, preocupando-se apenas com o bem-estar de sua instituição acadêmica. Uma espécie de ciência que existe num vácuo do espaço-tempo sem tocar ou olhar as misérias do mundo. Em outras épocas, o mesmo espaço acadêmico que hoje propicia essa ilusão ideológica também condicionava futuros tecnocratas da burguesia a se apresentarem como intelectuais marxistas, que falavam de luta de classes, de socialismo, de revolução.
Com a derrubada da União Soviética, as experiências de transição socialista e os projetos de nacionalismo popular, conjugados com o fim de diversos partidos comunistas, na longa noite neoliberal e neocolonial, vários desses intelectuais puderam afirmar tranquilos: esqueçam o que eu escrevi! Aquele era o momento de reforçar o mito do intelectual neutro, “não ideológico” e moderno, que significava aceitar que os “valores universais” da democracia burguesa (pouco democrática e muito burguesa), a economia de mercado (na verdade, um punhado de monopólios globais) e, claro, a “paz perpétua” das canhoneiras da OTAN tinham vencido. Adeus não só a Lênin, como também a Marx, Rousseau, Hegel e, por que não, Platão.
Alguns intelectuais, porém, negaram-se a aceitar a onda do pensamento único reacionário. Não só continuaram marxistas, acreditando que sua tarefa no mundo era produzir uma teoria revolucionária para criar a prática revolucionária, como aceitaram de forma corajosa e honrada a derrota simbolizada pelo fim da URSS e se puseram, sem qualquer subalternidade ideológica, a repensar por completo o marxismo, a reconstruir o materialismo histórico, a abordar com profundidade todos os problemas da luta revolucionária no final do século XX e no século XXI.
Na lista dos homens e mulheres que aceitaram o desafio de dizer não ao espírito reacionário do tempo, em lugar de destaque, está Domenico Losurdo. O italiano não foi apenas um intelectual que aceitou o desafio de refletir com profundo sentido histórico-concreto, rica densidade filosófica e agudo senso político sobre a defesa e a reconstrução do marxismo. Ele, não satisfeito com o tamanho do seu desafio, ou justamente para cumpri-lo melhor, buscou estudar com rigor científico ímpar e dedicação militante toda a tradição democrático-radical da modernidade burguesa: a Revolução Francesa e Haitiana, o jacobinismo, o pensamento de Hegel, as lutas abolicionistas etc. A obra losurdiana é, também, uma ousada e incrível história a contrapelo da modernidade no geral e do século XX em particular (com destaque para os aportes de um novo balanço da história do movimento comunista sem autofobia).
Sua morte prematura, em 2018, interrompeu o andamento de um dos mais ousados e refinados projetos teórico-políticos das últimas décadas. Mas todo grande pensador morre e deixa suas ideias vivendo na terra para sempre. Cabe aos que ficam continuar seu legado e superar seus possíveis erros e falhas. A primeira iniciativa no Brasil de balanço e avaliação do legado losurdiano é da editora Anita Garibaldi, com seu livro Losurdo: presença e permanência, organizado por João Quartim de Moraes.
O livro contém um rico e qualificado escrito de Stefano Azzarà, que faz um balanço da obra do comunista italiano, demonstrando a fortuna literária da produção losurdiana e da diversidade de temas abordados pelo pensador nas várias décadas de ação teórica e política. Em seguida, temos o artigo de João Quartim de Morares, “Estudo introdutório”, que faz um balanço do conjunto da obra losurdiana e ajuda a localizar a evolução teórica e temática na produção do autor.
Sobre a contribuição de Domenico Losurdo a respeito do marxismo e da questão nacional, os professores Diego Pautasso, Marcelo Fernandes e Gaio Doria realizam uma excelente reflexão. A questão nacional é uma problemática que perpassa o conjunto da obra desse autor, que, ao dar continuidade aos fundamentais aportes de Antonio Gramsci, consegue desenvolver uma dialética entre o nacional e o internacional que se mostra indispensável para os combates anti-imperialistas e anticoloniais do nosso tempo.
Por fim, o livro nos brinda com dois artigos do próprio Losurdo: “Marx, Cristóvão Colombo e a Revolução de Outubro – materialismo histórico e análise das revoluções” e “Gramsci e a Rússia soviética: o materialismo histórico e a crítica do populismo”. Os dois artigos oferecem ao leitor um belíssimo exemplo da erudição histórica, da complexidade filosófica e do realismo político revolucionário tão característicos da forma losurdiana de fazer ciência e política — com vistas, friso, à (re)construção da teoria revolucionária. Esses dois artigos também são ótimos exemplos de como o nosso autor não tinha medo de nadar na contracorrente, questionar e desmontar com fina ousadia argumentativa os consensos, à esquerda e à direita, sobre vários problemas filosóficos e políticos.
Esse livro deve cumprir a tarefa de iniciar uma série de publicações sobre as muitas dimensões da obra losurdiana. As barreiras e estigmas, como acusar o grande pensador de “justificacionista de repressão” ou — a mais ridícula de todas — “neostalinista”, não vão impedir que os lutadores e as lutadoras sociais do Brasil conheçam o legado de Domenico, essa arma da crítica tão necessária em nosso tempo.
Cedo demais ele partiu, mas seu compromisso com os condenados da terra deixou frutos que vão crescer e produzir muitas árvores de emancipação. O brilho da ousadia, da coragem, do rigor científico e do compromisso com os que sofrem e sangram que marcam cada página escrita por Domenico Losurdo vão ecoar por muitos anos.
O capitalismo e sua complexa rede de aparelhos ideológicos concebeu a possibilidade de servir aos senhores do capital apresentando-se como neutro, como um pesquisador desinteressado na política que faz ciência, preocupando-se apenas com o bem-estar de sua instituição acadêmica. Uma espécie de ciência que existe num vácuo do espaço-tempo sem tocar ou olhar as misérias do mundo. Em outras épocas, o mesmo espaço acadêmico que hoje propicia essa ilusão ideológica também condicionava futuros tecnocratas da burguesia a se apresentarem como intelectuais marxistas, que falavam de luta de classes, de socialismo, de revolução.
Com a derrubada da União Soviética, as experiências de transição socialista e os projetos de nacionalismo popular, conjugados com o fim de diversos partidos comunistas, na longa noite neoliberal e neocolonial, vários desses intelectuais puderam afirmar tranquilos: esqueçam o que eu escrevi! Aquele era o momento de reforçar o mito do intelectual neutro, “não ideológico” e moderno, que significava aceitar que os “valores universais” da democracia burguesa (pouco democrática e muito burguesa), a economia de mercado (na verdade, um punhado de monopólios globais) e, claro, a “paz perpétua” das canhoneiras da OTAN tinham vencido. Adeus não só a Lênin, como também a Marx, Rousseau, Hegel e, por que não, Platão.
Alguns intelectuais, porém, negaram-se a aceitar a onda do pensamento único reacionário. Não só continuaram marxistas, acreditando que sua tarefa no mundo era produzir uma teoria revolucionária para criar a prática revolucionária, como aceitaram de forma corajosa e honrada a derrota simbolizada pelo fim da URSS e se puseram, sem qualquer subalternidade ideológica, a repensar por completo o marxismo, a reconstruir o materialismo histórico, a abordar com profundidade todos os problemas da luta revolucionária no final do século XX e no século XXI.
Na lista dos homens e mulheres que aceitaram o desafio de dizer não ao espírito reacionário do tempo, em lugar de destaque, está Domenico Losurdo. O italiano não foi apenas um intelectual que aceitou o desafio de refletir com profundo sentido histórico-concreto, rica densidade filosófica e agudo senso político sobre a defesa e a reconstrução do marxismo. Ele, não satisfeito com o tamanho do seu desafio, ou justamente para cumpri-lo melhor, buscou estudar com rigor científico ímpar e dedicação militante toda a tradição democrático-radical da modernidade burguesa: a Revolução Francesa e Haitiana, o jacobinismo, o pensamento de Hegel, as lutas abolicionistas etc. A obra losurdiana é, também, uma ousada e incrível história a contrapelo da modernidade no geral e do século XX em particular (com destaque para os aportes de um novo balanço da história do movimento comunista sem autofobia).
Sua morte prematura, em 2018, interrompeu o andamento de um dos mais ousados e refinados projetos teórico-políticos das últimas décadas. Mas todo grande pensador morre e deixa suas ideias vivendo na terra para sempre. Cabe aos que ficam continuar seu legado e superar seus possíveis erros e falhas. A primeira iniciativa no Brasil de balanço e avaliação do legado losurdiano é da editora Anita Garibaldi, com seu livro Losurdo: presença e permanência, organizado por João Quartim de Moraes.
O livro contém um rico e qualificado escrito de Stefano Azzarà, que faz um balanço da obra do comunista italiano, demonstrando a fortuna literária da produção losurdiana e da diversidade de temas abordados pelo pensador nas várias décadas de ação teórica e política. Em seguida, temos o artigo de João Quartim de Morares, “Estudo introdutório”, que faz um balanço do conjunto da obra losurdiana e ajuda a localizar a evolução teórica e temática na produção do autor.
Sobre a contribuição de Domenico Losurdo a respeito do marxismo e da questão nacional, os professores Diego Pautasso, Marcelo Fernandes e Gaio Doria realizam uma excelente reflexão. A questão nacional é uma problemática que perpassa o conjunto da obra desse autor, que, ao dar continuidade aos fundamentais aportes de Antonio Gramsci, consegue desenvolver uma dialética entre o nacional e o internacional que se mostra indispensável para os combates anti-imperialistas e anticoloniais do nosso tempo.
Por fim, o livro nos brinda com dois artigos do próprio Losurdo: “Marx, Cristóvão Colombo e a Revolução de Outubro – materialismo histórico e análise das revoluções” e “Gramsci e a Rússia soviética: o materialismo histórico e a crítica do populismo”. Os dois artigos oferecem ao leitor um belíssimo exemplo da erudição histórica, da complexidade filosófica e do realismo político revolucionário tão característicos da forma losurdiana de fazer ciência e política — com vistas, friso, à (re)construção da teoria revolucionária. Esses dois artigos também são ótimos exemplos de como o nosso autor não tinha medo de nadar na contracorrente, questionar e desmontar com fina ousadia argumentativa os consensos, à esquerda e à direita, sobre vários problemas filosóficos e políticos.
Esse livro deve cumprir a tarefa de iniciar uma série de publicações sobre as muitas dimensões da obra losurdiana. As barreiras e estigmas, como acusar o grande pensador de “justificacionista de repressão” ou — a mais ridícula de todas — “neostalinista”, não vão impedir que os lutadores e as lutadoras sociais do Brasil conheçam o legado de Domenico, essa arma da crítica tão necessária em nosso tempo.
Cedo demais ele partiu, mas seu compromisso com os condenados da terra deixou frutos que vão crescer e produzir muitas árvores de emancipação. O brilho da ousadia, da coragem, do rigor científico e do compromisso com os que sofrem e sangram que marcam cada página escrita por Domenico Losurdo vão ecoar por muitos anos.
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