Por Eliara Santana, no site Viomundo:
Após uma edição contundente do Jornal Nacional, que mostrou o absoluto caos em Manaus, no Amazonas, onde não há mais oxigênio para tratar dos pacientes do Covid – ou seja, as pessoas estão morrendo sem conseguir respirar –, o jornalista e apresentador do JN, William Bonner, chamou para a apresentação da média móvel, os números compilados pelo Consórcio de Veículos de Imprensa sobre a Covid-19 no Brasil.
E se pronunciou, em forma de um apelo à nação:
“Aí chega aquele momento em que eu, ou Renata Vasconcelos, hoje seria a Ana Luiza, nós aparecemos aqui ao lado do Alan Severiano, que está em São Paulo, e você já sabe o que vai acontecer agora. Mas eu queria só lembrar que, se nós fazemos isso todo dia, nós estamos cumprindo um dever profissional. Nós aqui e todos os jornalistas do Planeta Terra.
Neste momento, infelizmente, além de dar as notícias, de trazer as informações corretas, nós estamos esgrimando com loucos, com irresponsáveis, com gente que é capaz de entrar num WhatsApp da vida e sair espalhando mentira, a bel prazer, mas as mentiras mais absurdas, as mais absurdas, crendices.
Tem gente que faz isso investido de cargo público. Tem gente que faz isso sistematicamente. Mas a gente aqui, nós, jornalistas profissionais, nós não vamos desistir porque esse é o nosso dever profissional.
A gente está defendendo aqui a nossa profissão, mas a gente está defendendo aqui a sociedade, a nossa, aqui no Brasil, e a de cada colega nosso, jornalista, em cada país desse planeta”.
Bonner, em seu discurso, marca a indignação crescente e dá os recados necessários ao poder público que espalha fake news, apesar de não nomear os tais investidos de cargo público.
Ele também projeta o ethos, a imagem do jornalismo como aquela prática defensora da sociedade, a serviço da população, a serviço da informação, essa categoria tão pouco compreendida em toda sua dimensão e em todas as suas nuances.
Portanto, ele projeta a imagem de um jornalismo que não faz jogos de poder nem está defendendo interesses que não sejam os da sociedade (o que quer que isso signifique).
E ele, sobretudo, marca o distanciamento – bastante providencial – em relação aos grupos, ou grupo, de “irresponsáveis”, que espalham mentiras absurdas e que agora dominam o Brasil.
No discurso, Bonner sinaliza os limites entre civilização e não civilização. E Jair continua a ser silenciado no JN, sem direito nem a imagem. Sistematicamente negligenciado.
Em seguida, Bonner pede que os telespectadores prestem atenção às informações que Alan Severiano estava trazendo, pois “elas foram colhidas por um consórcio de veículos de imprensa. Empresas independentes da imprensa se juntaram para oferecer pra você, em diversos meios, diversos veículos, números e informações confiáveis, como essas que o Alan vai trazer agora. E o Alan tem uma notícia péssima pra trazer pra você: a média de casos da pandemia no Brasil também bateu um recorde. Alan, boa noite”.
De novo, a imagem projetada de um jornalismo a serviço apenas da sociedade, preocupado em mostrar números e informações confiáveis.
Alan Severiano entra então para mostrar a média móvel, que bateu recorde pela primeira vez desde o começo da pandemia no Brasil – o país registrou, nesta semana, uma média de mil mortes por dia.
A fala geral de Bonner foi bastante emotiva, denotando indignação, certa raiva e perplexidade – parecia retratar a constatação, pelo jornalista e editor do JN, que o país mergulhou de cabeça na barbárie.
Além de ressaltar esse papel de um jornalismo sempre preocupado com a sociedade, com “informações confiáveis”.
Pode estar sendo assim na pandemia – de fato, os veículos de imprensa, em meio ao caos, têm feito um esforço para mostrar um cenário mais real da pandemia.
Mas não foi sempre assim, e sabemos que a imprensa corporativa teve um papel vital na eleição do ogro genocida.
Sinais sempre foram evidentes
A imprensa corporativa brasileira foi essencial para fundamentar o golpe contra Dilma Rousseff, dando ao evento deflagrado pela fala de Aécio Neves (“perdi a eleição para uma organização criminosa”) a narrativa necessária para convencer a patuleia.
A imprensa, acreditando que Jair era “tutelável”, controlável e podia ser dominado, apostou nele suas fichas para excluir o PT da vida política brasileira.
Por isso, fez vistas mais que grossas quando a disputa se consolidou em torno dos nomes de Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, tapou o nariz e apoiou Jair, ainda que sem entusiasmo.
A imprensa também construiu um herói salvador e o ajudou a ser amado pela opinião pública, mesmo cometendo injustiças e levando à prisão pessoas inocentes.
Agora, quando vivemos um caos inimaginável, cabe novamente alguns questionamentos para pensarmos ações futuras.
Em nenhum momento da campanha eleitoral de 2018 a imprensa brasileira percebeu quem de fato era Jair Bolsonaro?
Não perceberam que estavam já, desde aquela época, esgrimando com loucos?
Tratava-se mesmo de uma “escolha difícil” decidir entre um professor e um misógino e homofóbico, abertamente declarado?
Há outras perguntas que também merecem ser repetidas:
1) Por que ninguém na imprensa tratou, com seriedade, as denúncias feitas pela Folha de S. Paulo do uso de WhatsApp pela campanha de Bolsonaro? O que poderia mudar o rumo das eleições…
2) Por que minimizaram a fala Bolsonaro no julgamento do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, quando ressaltou ostensivamente a memória de um torturador?
3) Por que a Folha de São Paulo proibiu que Bolsonaro fosse referenciado como candidato de extrema-direita, mesmo quando os jornais estrangeiros assim o faziam?
4) Por que o Jornal Nacional colocou em pauta um processo de humanização do candidato, silenciando sobre seu passado misógino, homofóbico e racista?
5) Por que nunca se dedicaram a investigar as ligações perigosas dele e dos filhos, àquela época? Indícios sempre houve…
6)Por que parte da imprensa tratou com certo menosprezo o movimento #elenão?
7)Por que a imprensa tratou as duas candidaturas – Haddad e Bolsonaro – como representantes de dois polos num mesmo campo democrático? Uma vez que as diferenças entre elas eram gritantes…
8) Por que nunca cobraram as suas propostas efetivas para o país ao longo da campanha?
9) Por que aceitaram prontamente as desculpas esfarrapadas para o não comparecimento aos debates?
10) Por que aceitaram vender Bolsonaro, deputado há 30 anos sem aprovar um único projeto, como alguém de fora da política, alguém “novo”?
No Jornal Nacional, nas entrevistas com candidatos, Bolsonaro falou ao vivo sobre o kit gay, atribuindo a aberração a uma ação de Fernando Haddad, o candidato do PT, quando ainda era ministro. William Bonner não retrucou.
O tal kit gay foi, desde sempre, um dos alimentos dos loucos com os quais o apresentador agora está esgrimando.
No dia 29 de setembro de 2018, no Jornal Nacional, Bolsonaro deu uma entrevista exclusiva, de dentro do avião, indo para casa, depois de ter alta do hospital Albert Einstein, onde se recuperava de uma cirurgia em virtude da facada de que foi vítima.
Criticou abertamente o processo eleitoral brasileiro, acusou de fraude se ele não fosse o vencedor. A resposta da bancada foi pífia.
Enfim, chegamos até aqui. O Brasil está sucumbindo, implodindo, derretendo.
E se o jornalismo brasileiro, pela voz de Bonner, descobriu que estamos todos “esgrimando com loucos”, talvez seja o momento ideal para dar um basta, com belas e destruidoras reportagens, e ajudar a apear do poder quem nunca deveria ter estado lá. Fica a dica.
* Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística pela PUC/MG.
0 comentários:
Postar um comentário