Por Léa Maria Aarão Reis, no site Carta Maior:
Ou o planeta que parou de girar no falso documentário 'Morte a 2020'
Já houve um ano, o de 1968, que não conseguiu, na sua época, desaparecer para ser esquecido.
O ano do famigerado A-I5 no Brasil é histórico e acabou eternizado num livro clássico que o consagrou para sempre. Agora, 2020 segue na mesma direção: estrebucha, e também por motivos funestos se perpetua.
Registrado num pequeno filme de 70 minutos, Death to 2020, traduzido como 2020 Nunca Mais é uma das produções da Netflix mais acessadas neste mês de janeiro - provavelmente pela necessidade de distensão das platéias, de rir ou pelo menos de sorrir um pouco, assaltados que estamos por eventos sombrios, por dois vírus - corona e política federal - há um/ dois anos.
O pequeno filme, um falso documentário com tonalidade de comédia poderia ter se reportado à tragédia sanitária que avançou ano passado e se prolonga em 2021 (sem alívio no horizonte) como uma excelente sátira.
Material dramático transmutado em comédia não faltou a esse filme inglês que trata com respeito, indignação e mordacidade os resultados funéreos ocasionados pela pandemia que assola o planeta.
Mas a dupla de diretores ingleses Charlie Brooker, apresentador de TV, humorista e colunista do jornal The Guardian, e a produtora de televisão Annabel Jones desperdiçaram vários dos comentários irônicos e ácidos ao estilo britânico, semelhantes ao tom da antológica série inglesa, também de sua autoria, Black mirror, de 2011.
Mas derraparam na pressa de concluir o trabalho e em muitas das suas gags faz sorrir; o que nos tempos agônicos de hoje não é de se desprezar.
Os trunfos de Death to 2020 são os atores e as estrelas do elenco que interpretam os entrevistados do falso doc com destaque para Hugh Grant fazendo o professor de história ( o intelectual) afeito a um bom negroni e que superpõe a narrativa da realidade (?) com Guerra nas estrelas e com as lutas de gladiadores de Games of thrones.
Todos e todas entrevistadas e entrevistados encarnam personagens embalados no período da pandemia. O jornalista (Samuel L. Jackson) que pontifica, incansável, em Davos. A dona de casa viciada em internet, radicalizada.
O bilionário que compra uma montanha e nela instala seu bunker para sobreviver ao fim de mundo próximo. Trump. De vez em quando o historiador pergunta para a câmera: ''Trump pirou de vez?''
Debates entre Biden, Sanders (o ''avô anarquista'') e, depois, entre Trump e Joe Biden: uma disputa ''geriátrica''.
A psicóloga que ''detesta gente'' acha que os ''dois lados'' (conservadores, progressistas) ''estão muito infelizes.''
A mulher ''mais comum do mundo'' aprende a fazer todos os movimentos do cotidiano com os cotovelos para não se contaminar. Assistiu a toda a grade de filmes de plataformas de streaming na primeira quarentena. E agora, nesta segunda?
Um DJ coach de... ''vida'' que faz fortuna com seus ensinamentos pela internet.
A porta voz carreirista (Lisa Kurdow) do governo Trump no seu momento de despedida da Casa Branca e da máquina de mentiras que ajudou a montar. Tracey Ullman faz uma rainha Elizabeth II entediada recomendando cuidado para a câmera não esbarrar no lustre do seu salão.
Em resumo: quando o câmera (sempre fora de campo) admoesta o historiador delirante e diz que não está de acordo com suas observações, o professor perde a paciência: ''Vá se ferrar. Cala a boca e siga com a entrevista.''
Samuel L. Jackson, o repórter negro, sobre o assassinato de George Floyd em Mineapolis: ''Prefiro o vírus à polícia''.
A ''mulher solitária'' declara que treinou para manter dois metros de distância de si mesma porque precisou desenvolver várias personalidade para ter companhia.
Vale assistir Morte a 2020 e aceitar que o mundo ''parou de girar'', como pontifica o professor de história Hugh Grant.
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