A indicação de André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal, para a vaga de Marco Aurélio Mello, que se aposenta, conclui um dos processos mais vergonhosos da história política brasileira recente. E olha que não é por falta de episódios constrangedores. A cadeira na Suprema Corte tem sido exibida como um troféu para o mais submisso, ambicioso e inescrupuloso candidato. E não faltam nomes para exibir esse currículo nefasto, de Sergio Moro a André Mendonça, passando por Augusto Aras e outros menos cotados
Há uma espécie de corrida em que os competidores sabem que não merecem ganhar, mas que por uma conjunção única e desastrosa podem chegar ao pódio furando a fila do mérito, desde que se submetam ao espetáculo constrangedor de oferecer sua respeitabilidade em holocausto. Vale tudo para ostentar a toga nos ombros, mesmo por meio de uma escolha viciada e viciosa, com a crença de que o tempo irá apagar a desonra da campanha e do serviço prometido para chegar ao cargo.
O presidente Bolsonaro, que entende bem da natureza humana dos sem caráter, usa o STF como uma cenoura à frente do burro. Mas não se trata apenas de atrair nomes de pessoas incapazes para a função, como também de desmoralizar e enfraquecer a corte, dando como certa a obediência de seu indicado em casos de interesse do Executivo e, mais especificamente, do próprio umbigo, familiares e acólitos. Conhecedor de seus crimes, o genocida prepara seus julgadores.
Até chegar à gincana da disputa da indicação para substituir os ministros que se aposentam, Bolsonaro passou por fases. A primeira inclinação foi açular as bases, gado, soldados e cabos, para fechar o tribunal. Foram manifestações, atos antidemocráticos, falas conspiratórias que ganharam eco entre estúpidos, como o deputado Daniel Silveira, que foi boi de piranha do ex-capitão, acostumado a deixar seus recrutas agonizando no campo de batalha.
Em seguida, aventou a possibilidade de criação de novas vagas, de modo a indicar ministros suficientes para formar maioria. Na verdade, em sua limitada compreensão dos poderes da República, o presidente é incapaz de aceitar o papel de contrapeso das instituições e o equilíbrio de poderes autônomos. O que o desagrada não é a atual composição do STF, mas o fato de existir uma instância legítima de contenção de seus desvarios autoritários.
Sem perder o estilo destrutivo em relação ao Judiciário, Bolsonaro entendeu que jogar pelas regras, quando não há outra saída, pode garantir algumas casas à frente no tabuleiro. Sua primeira indicação, de Kássio Marques, foi um teste. Nome que corria por fora, ou que sequer se batia às claras, deu ao presidente a chance de apresentar um tutorial de subserviência para futuros candidatos. Com pouco tempo de corte, Kássio já votou 20 vezes de acordo com a vontade do chefe. Está lá para isso.
Mas há um efeito paradoxal em ministros que assumem um lugar no STF: com o tempo se voltam contra quem os indicou, numa espécie de efeito Frankenstein, quando o monstro se revolta contra o criador. O peso da toga suprema na vida do juiz é tão grande que ele parece tentado a mostrar sua independência para justificar-se a si e ao meio jurídico. Em primeiro lugar, porque quase sempre vão além do governo de plantão. Em seguida, por ser cargo vitalício, o que dá outro horizonte temporal à função.
E, por fim, em terceiro plano, pela acentuada subjetividade do alto escalão do Judiciário brasileiro. Ministro do Supremo, na maioria dos casos, se acha no direito de falar sobre tudo, inclusive política e economia. Com isso, fazem de tudo para se livrar de possível contaminação com a conjuntura de sua indicação. Querem se validar como nomes autorreferidos, capazes de emitir opiniões sobre tudo, dar palestras como luminares e entrevistas ao Bial.
Não se pode dizer que há colegialidade ou espírito de corpo no STF, o que seria desejável mesmo com diferenças de fundo entre seus integrantes, mas um compósito de vaidades reunidas atirando cada hora para um lado. Não se reconhece qualquer alinhamento, seja ele ideológico ou jurídico. Não é possível, como em cortes supremas de outros países, definir a linha dos nossos ministros ou a tendência de segmentos do colegiado. Por isso tanta decisão monocrática a tumultuar o cenário. Bolsonaro parece, para o mal, estar a mudar essa história.
Bastou dizer que indicaria alguém “terrivelmente evangélico” para que a fila de compungidos cristãos de todos os matizes se formasse em Brasília. Não precisou sequer sugerir que queria obediência explícita para os candidatos mostrarem serviço antes mesmo da posse. O que era um aceno para parte de seus apoiadores, como promessa de campanha para dar destaque à chamada pauta de costumes, se tornou um instrumento de seleção para o topo do Judiciário. Mas a sabujice não parou na religião.
Aras fez da PGR a guardiã da paz do presidente e dos seus. Ao se tornar um vassalo desmoralizando sua instituição de origem, deixou claro o que faria se chegasse ao STF. André Mendonça, como Ministro da Justiça, lançou mão da Lei de Segurança Nacional contra opositores. Como advogado-geral da União, defendeu a realização de cultos durante fase crítica da pandemia, em oratória evangélica que citou a Bíblia oito vezes e nenhuma a Constituição Federal. Antes dos dois, Moro já havia sido rendido pela mesma promessa com o mesmo comportamento leniente frente a projetos ilegais, como a corrida armamentista defendida pelo chefe.
Mendonça, ao lado de Kássio, vai formar uma dupla disciplinada na corte. Não é muito, em meio a 11, mas pode ser significativo em alguns momentos sensíveis. Em primeiro lugar, a conta dos julgamentos começará sempre com dois votos garantidos. Além disso, no sorteio das relatorias, há uma chance em cinco de que o caso caia nas mãos dos ministros indicados pelo presidente, o que pode ser a garantia de morosidade em questões que incomodam o governo, sem contar com os outros apoios que vêm sendo costurados.
Muita gente teme que André Mendonça, que é pastor presbiteriano de uma pequena igreja de Brasília, queira justificar sua atuação seguindo rigidamente valores evangélicos, antes dos princípios constitucionais do Estado laico, ao qual ele deveria servir. Há um temor da inspiração teocrática conservadora, que não é irrelevante, como o próprio advogado-geral já demonstrou. Mas o perigo maior não está no céu. O novo ministro, a se confirmar a indicação, pode até vir a servir a Deus. Mas é investido no cargo como vassalo do diabo.
Por isso é fundamental que o Senado dê provas de sua responsabilidade e missão constitucional, arguindo o candidato a ministro em sua sabatina com tenacidade, rigor e embasamento técnico. Não se trata de julgar os compromissos do presidente ou a personalidade do candidato a ministro do STF, mas a saúde das instituições da República.
O reverendo André Mendonça já demonstrou que não está preparado para o cargo: não julga pela lei, mas pela fé; não segue o direito, mas as conveniências; não exibe independência, mas submissão; não respeita a democracia, antes se alimenta de regras de exceção do período da ditadura militar. E, o mais grave, é terrivelmente bolsonarista.
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