Bolsonaro é sujeito ativo no desastre sanitário que vivemos.
Propagandeou medicamentos sem eficácia, disseminou mentiras, atacou medidas de isolamento social e, no bojo das inverdades, manipulava as decisões do Supremo Tribunal Federal que garantiam a prefeitos e governadores a adoção de tais medidas.
Mas Bolsonaro não fez isso sozinho. Ao lado dele, marchavam os generais e coronéis, cientes do próprio papel e ecoando o obscurantismo que no governo desconhece distinção entre fardados e paisanos.
Há poucos dias de seu encerramento, a CPI da Covid impõe ritmo acelerado aos seus trabalhos para divulgar o seu relatório final.
Desde abril de 2020, o colegiado vem avançando nas investigações, e acumulou provas contundentes da condução desastrosa da pandemia pelo governo federal, cujo ápice se expressa nos relatos de eugenia envolvendo o incentivo de “tratamento precoce” e sua aplicação na rede de hospitais Prevent Senior, em práticas tão rasteiras que justificam as comparações com o nazismo.
Empresários, médicos, funcionários do Ministério da Saúde e da Economia, enfim, negacionistas e oportunistas de todo o tipo, foram expostos pelos trabalhos do colegiado. Entretanto, parece que os senadores esqueceram dos militares.
A militarização do Ministério da Saúde colocou luz sobre a participação de membros das forças armadas na gestão da pandemia.
O envolvimento de coronéis em esquemas obscuros de negociação de vacina e na produção e distribuição de cloroquina pelo Exército, inclusive a territórios indígenas, deixam ainda mais evidente este envolvimento.
A separação entre instituição e membros do governo caiu por terra em episódios como a nota-ameaça assinada pelo atual ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e os comandantes das forças singulares em resposta à manifestação do presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM).
Com efeito, o caso de Braga Netto é emblemático.
Quando ministro da Casa Civil, o militar assumiu a coordenação do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19, instituído em março de 2020 por Jair Bolsonaro, sendo responsável direto por uma série de medidas adotadas pelo governo no marco da crise sanitária.
Documentos em posse da CPI analisados em reportagem do Intercept Brasil reforçam esta afirmação.
Neles, o general de quatro estrelas é apontado como peça-chave na crise de oxigênio em Manaus, em tratativas para importação de cloroquina, dentre outros.
Foi também o responsável pelas negociações para adesão brasileira ao consórcio Covax Facility – afirmação esta feita pelo próprio Eduardo Pazuello, em depoimento à comissão. O Brasil, é importante mencionar, não solicitou a totalidade de vacinas a que teria direito ao consórcio.
Nesse contexto, a convocação do general seria mais que justificada.
Seria, ademais, um indicativo de que a CPI estaria disposta a responsabilizar os militares que, eventualmente, tivessem seu envolvimento comprovado nos esquemas, ações e inações investigados pela comissão. E é justamente por isso que sua não ocorrência chama atenção.
Nas redes sociais, o fato não passou incólume.
Neste que foi instrumento por excelência de participação e pressão social junto à CPI, foram vários os questionamentos de internautas quanto ao sumiço dos militares do radar dos senadores.
Para citar apenas um exemplo, vale mencionar o esforço realizado pelo psicólogo e analista de dados, além de membro da Rede Análise Covid-19, Ananias Oliveira.
Em sua conta do Twitter, Oliveira tem realizado interessante trabalho de coleta e sistematização de dados acerca dos militares na gestão da pandemia, apontando suas articulações no governo.
Dando ênfase aos casos que os envolvem no escopo da CPI da Covid, questiona-se o porquê da não convocação de Braga Netto.
O relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL), já havia demonstrado interesse na convocatória do general. Assim, a tese do racha no grupo majoritário da CPI se confirmaria.
Resta, de todo modo, saber o porquê da resistência entre parlamentares.
A resposta segue no campo da especulação. Ao que parece, prevalece entre alguns senadores um receio de que a intimação do ministro seja percebida como uma afronta às forças armadas.
Em se confirmando esta hipótese, é preciso aceitar não termos mais democracia.
Se senadores da República se acovardam perante agentes armados do Estado é porque não cumprem sua função e o mandato que lhes foi outorgado pelo povo persiste meramente como rito formal.
Seja como for, o silêncio dos senadores é indicativo da crescente leniência com os militares, notadamente os alto-oficiais, envolvidos na crise de saúde pública e no caos social hoje instaurado no Brasil.
Os generais permanecem incólumes.
Mesmo Pazuello, aparente boi de piranha, segue no governo em cargo junto à Presidência. A questão que se coloca, entretanto, ultrapassa os limites da Comissão Parlamentar de Inquérito.
Se já é suficientemente preocupante que senadores da República rejeitem a convocação de um general-ministro, por receio de uma eventual reação das forças armadas, é ainda mais alarmante o fato de que este parece ser o comportamento dos demais atores do sistema político brasileiro face às ingerências políticas de membros das forças armadas.
Tal comportamento, em última instância, soa como um aval aos processos de politização das forças armadas e, ainda mais grave, de militarização da sociedade e da política.
Enquanto voltávamos ao mapa da fome, esbanjavam-se em picanha e uísque 12 anos. Em suas articulações, garantem para si fatias robustas do orçamento público e privilégios que vão de uma previdência especial a salários exorbitantes à frente de estatais.
O ônus por seus crimes e ações – passados e presentes – pouco conhecem. A impunidade é a regra, como se expõe no paradoxo que é a Justiça Militar ou no silêncio quanto à responsabilidade do almirante Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, pela crise energética que enfrentamos. Tripudiaram, mentiram e ameaçaram a CPI, enquanto participavam de manifestações golpistas ao lado do presidente da República.
Nesse cenário, a condescendência do sistema político com os arroubos acende um alerta ao campo e popular. Não há República, e tampouco democracia, enquanto vivemos sob constante ameaça de uma instituição armada que se arvora dona da Nação, atuando como poder moderador.
É fundamental acusar e resistir aos crimes e ao autoritarismo de Bolsonaro e seus apoiadores mais aguerridos. Mas é irresponsável ignorar os mesmos crimes e o mesmo autoritarismo quando são cometidos por agentes fardados.
A construção de projeto de país democrático e popular perpassa, necessariamente, pela consolidação da autoridade civil sobre os militares e seu distanciamento da atividade político-partidário. Que tenhamos a coragem que não demonstram hoje nossos representantes políticos para construção deste futuro.
* Jorge M. Oliveira Rodrigues é pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Propagandeou medicamentos sem eficácia, disseminou mentiras, atacou medidas de isolamento social e, no bojo das inverdades, manipulava as decisões do Supremo Tribunal Federal que garantiam a prefeitos e governadores a adoção de tais medidas.
Mas Bolsonaro não fez isso sozinho. Ao lado dele, marchavam os generais e coronéis, cientes do próprio papel e ecoando o obscurantismo que no governo desconhece distinção entre fardados e paisanos.
Há poucos dias de seu encerramento, a CPI da Covid impõe ritmo acelerado aos seus trabalhos para divulgar o seu relatório final.
Desde abril de 2020, o colegiado vem avançando nas investigações, e acumulou provas contundentes da condução desastrosa da pandemia pelo governo federal, cujo ápice se expressa nos relatos de eugenia envolvendo o incentivo de “tratamento precoce” e sua aplicação na rede de hospitais Prevent Senior, em práticas tão rasteiras que justificam as comparações com o nazismo.
Empresários, médicos, funcionários do Ministério da Saúde e da Economia, enfim, negacionistas e oportunistas de todo o tipo, foram expostos pelos trabalhos do colegiado. Entretanto, parece que os senadores esqueceram dos militares.
A militarização do Ministério da Saúde colocou luz sobre a participação de membros das forças armadas na gestão da pandemia.
O envolvimento de coronéis em esquemas obscuros de negociação de vacina e na produção e distribuição de cloroquina pelo Exército, inclusive a territórios indígenas, deixam ainda mais evidente este envolvimento.
A separação entre instituição e membros do governo caiu por terra em episódios como a nota-ameaça assinada pelo atual ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e os comandantes das forças singulares em resposta à manifestação do presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM).
Com efeito, o caso de Braga Netto é emblemático.
Quando ministro da Casa Civil, o militar assumiu a coordenação do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19, instituído em março de 2020 por Jair Bolsonaro, sendo responsável direto por uma série de medidas adotadas pelo governo no marco da crise sanitária.
Documentos em posse da CPI analisados em reportagem do Intercept Brasil reforçam esta afirmação.
Neles, o general de quatro estrelas é apontado como peça-chave na crise de oxigênio em Manaus, em tratativas para importação de cloroquina, dentre outros.
Foi também o responsável pelas negociações para adesão brasileira ao consórcio Covax Facility – afirmação esta feita pelo próprio Eduardo Pazuello, em depoimento à comissão. O Brasil, é importante mencionar, não solicitou a totalidade de vacinas a que teria direito ao consórcio.
Nesse contexto, a convocação do general seria mais que justificada.
Seria, ademais, um indicativo de que a CPI estaria disposta a responsabilizar os militares que, eventualmente, tivessem seu envolvimento comprovado nos esquemas, ações e inações investigados pela comissão. E é justamente por isso que sua não ocorrência chama atenção.
Nas redes sociais, o fato não passou incólume.
Neste que foi instrumento por excelência de participação e pressão social junto à CPI, foram vários os questionamentos de internautas quanto ao sumiço dos militares do radar dos senadores.
Para citar apenas um exemplo, vale mencionar o esforço realizado pelo psicólogo e analista de dados, além de membro da Rede Análise Covid-19, Ananias Oliveira.
Em sua conta do Twitter, Oliveira tem realizado interessante trabalho de coleta e sistematização de dados acerca dos militares na gestão da pandemia, apontando suas articulações no governo.
Dando ênfase aos casos que os envolvem no escopo da CPI da Covid, questiona-se o porquê da não convocação de Braga Netto.
O relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL), já havia demonstrado interesse na convocatória do general. Assim, a tese do racha no grupo majoritário da CPI se confirmaria.
Resta, de todo modo, saber o porquê da resistência entre parlamentares.
A resposta segue no campo da especulação. Ao que parece, prevalece entre alguns senadores um receio de que a intimação do ministro seja percebida como uma afronta às forças armadas.
Em se confirmando esta hipótese, é preciso aceitar não termos mais democracia.
Se senadores da República se acovardam perante agentes armados do Estado é porque não cumprem sua função e o mandato que lhes foi outorgado pelo povo persiste meramente como rito formal.
Seja como for, o silêncio dos senadores é indicativo da crescente leniência com os militares, notadamente os alto-oficiais, envolvidos na crise de saúde pública e no caos social hoje instaurado no Brasil.
Os generais permanecem incólumes.
Mesmo Pazuello, aparente boi de piranha, segue no governo em cargo junto à Presidência. A questão que se coloca, entretanto, ultrapassa os limites da Comissão Parlamentar de Inquérito.
Se já é suficientemente preocupante que senadores da República rejeitem a convocação de um general-ministro, por receio de uma eventual reação das forças armadas, é ainda mais alarmante o fato de que este parece ser o comportamento dos demais atores do sistema político brasileiro face às ingerências políticas de membros das forças armadas.
Tal comportamento, em última instância, soa como um aval aos processos de politização das forças armadas e, ainda mais grave, de militarização da sociedade e da política.
Enquanto voltávamos ao mapa da fome, esbanjavam-se em picanha e uísque 12 anos. Em suas articulações, garantem para si fatias robustas do orçamento público e privilégios que vão de uma previdência especial a salários exorbitantes à frente de estatais.
O ônus por seus crimes e ações – passados e presentes – pouco conhecem. A impunidade é a regra, como se expõe no paradoxo que é a Justiça Militar ou no silêncio quanto à responsabilidade do almirante Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, pela crise energética que enfrentamos. Tripudiaram, mentiram e ameaçaram a CPI, enquanto participavam de manifestações golpistas ao lado do presidente da República.
Nesse cenário, a condescendência do sistema político com os arroubos acende um alerta ao campo e popular. Não há República, e tampouco democracia, enquanto vivemos sob constante ameaça de uma instituição armada que se arvora dona da Nação, atuando como poder moderador.
É fundamental acusar e resistir aos crimes e ao autoritarismo de Bolsonaro e seus apoiadores mais aguerridos. Mas é irresponsável ignorar os mesmos crimes e o mesmo autoritarismo quando são cometidos por agentes fardados.
A construção de projeto de país democrático e popular perpassa, necessariamente, pela consolidação da autoridade civil sobre os militares e seu distanciamento da atividade político-partidário. Que tenhamos a coragem que não demonstram hoje nossos representantes políticos para construção deste futuro.
* Jorge M. Oliveira Rodrigues é pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
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