segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Quem deve pagar a conta do caos bolsonarista?

Charge: Gilmar
Por Jair de Souza

De uma coisa precisamos ter clareza: Caso Lula consume sua tão esperada vitória e volte a ser nosso presidente, o estado de terra arrasada com o qual seu governo vai se deparar deve representar um tremendo entrave para a consecução das mudanças requeridas para devolver a nosso povo uma vida com certa dignidade.

No afã de atrair os votos necessários para sua reeleição, Bolsonaro não está escatimando recursos do erário público. O governo bolsonarista demonstrou não ter nenhum pudor em usá-los como instrumento aberto para a compra de votos.

A lógica imperante no raciocínio do grupo miliciano-fascista é a seguinte: Para permanecer no comando do aparelho estatal vale a pena fazer o que tiver de ser feito, ainda que isso venha a implicar na destruição das bases econômicas da nação. O domínio avassalador sobre todas as instituições que um novo mandato presidencial lhe proporcionaria seria uma garantia de que os ônus dessa atuação temerária poderiam ser posteriormente transferidos às vítimas mais vulneráveis, ou seja, as maiorias trabalhadoras.

Contudo, ainda que a extrema direita não consiga evitar sua derrota eleitoral, será o novo governo quem terá de arcar com o peso da erosão orçamentária e com os efeitos que a devastação das estruturas de amparo social está causando. A equipe administrativa de Lula vai precisar encontrar maneiras de obter os recursos indispensáveis para mitigar de modo imediato os terríveis problemas que foram criados, ou acentuados, durante a gestão destrutiva do bolsonarismo.

Não devemos permitir que a parte mais significativa deste custo social seja impingido às massas trabalhadoras e à classe média. Para que um reerguimento de nossa nação seja factível, é vital que esses recursos sejam extraídos dos integrantes da numericamente pequena parcela de nossa população que compõe o grupo dos ricos mais abastados.

Esta decisão não deve ser entendida meramente como uma punição moral por terem sido eles quem, através de sua mídia corporativa, patrocinaram as furibundas campanhas de ódio social contra o movimento popular e a esquerda em geral, as quais geraram o caldo de cultivo que fez emergir das catacumbas o monstro do nazibolsonarismo que andava latente em nossa sociedade. Na verdade, para definir sobre quais grupos sociais deve recair a conta da reconstrução nacional, existem outras razões que se situam muito além da moralidade.

Como é sabido, mesmo antes de que a pandemia da covid-19 aparecesse no cenário, a situação econômica do Brasil já se mostrava angustiante. Os indicadores estatísticos apontavam para um crescimento pífio de nosso PIB, nossa moeda tinha sido fortemente desvalorizada e milhões e milhões de trabalhadores haviam passado a sentir na própria pele o flagelo do desemprego.

Apesar de terem sido constantemente apresentadas na programação da rede Globo e em toda a mídia corporativa como medidas milagrosas que iriam nos salvar do desastre, as reformas implementadas após a derrubada do governo do PT acabaram por acentuar ainda mais as perspectivas de estagnação de nossa economia.

Diferentemente do que propagandeavam os analistas econômicos a serviço das classes dominantes na grande mídia comercial, com a flexibilização da CLT e a eliminação das leis de proteção ao trabalhador, o empresariado não foi motivado a contratar mais gente para tocar seus negócios e, com isso, fazer a economia crescer e reduzir substancialmente o desemprego. O que sucedeu de fato foi justamente o oposto.

Por sua vez, embora fosse divulgada como algo indispensável para estimular os investimentos privados e alavancar uma nova onda de crescimento econômico, a redução dos gastos públicos em educação, saúde, previdência e outras atividades sociais acabou acarretando um resultado totalmente diferente do que tinha sido apregoado.

Não dá para acreditar que os responsáveis pela política econômica do bolsonarismo não soubessem que seria isso o que ocorreria se fossem tomadas medidas drásticas de contenção de gastos públicos e retirada de direitos sociais. É certo que Bolsonaro é admitidamente um completo ignorante em termos de ciência econômica, mas seus auxiliares nesta área dispõem, ou deveriam dispor, de capacitação técnica mínima para entender como a economia real funciona.

O próprio Bolsonaro foi capaz de concluir que a concessão de um auxílio emergencial de R$ 600,00 no auge da pandemia serviria para desarmar a bomba social de tempo que estava prestes a explodir em razão das condições desesperadoras das massas humanas numa situação de paralisia econômica. Não à toa, a partir dessa experiência, ele tomou certo gostinho pela coisa e começou a tratar de emplacar algumas outras medidas de caráter semelhante.

Porém, como de praxe, sempre que são feitas sugestões que resultam em alguma transferência de renda para as maiorias populares, aparecem as restrições colocadas pelos economistas a serviço do “mercado”. Entram em cena coisas como “a ameaça de furar o teto de gastos”, “o perigo de gerar uma situação de desequilíbrio fiscal”, “o risco de provocar uma perda de confiança generalizada”, etc., etc.

É improvável que, mesmo sendo um economista de limitado cabedal teórico, Paulo Guedes não conheça alguns dos principais exemplos clássicos que explicam o funcionamento da economia ao longo da história e o papel desempenhado pelos gastos públicos em tais situações. Vamos dar uma repassada em um dos casos mais conhecidos para refrescar nossa memória.

O que possibilitou que os habitantes da Europa Ocidental viessem a usufruir de um elevado padrão de vida por várias décadas logo após o fim da Segunda Guerra Mundial? Qualquer estudante dos primeiros anos de economia sabe que esse foi o período da história em que o padrão de vida dos trabalhadores europeus alcançou seu patamar mais elevado. Foi a época dos estados de bem-estar social (ou welfare states, em inglês).

Mas, também é mister mencionar que não foram apenas os trabalhadores que tiveram suas condições de vida melhoradas. É importante esclarecer como evoluiu a situação com relação aos empresários europeus. Como todos devem estar cientes, foi nesta fase histórica que a classe capitalista europeia em conjunto mais se enriqueceu em toda a existência do capitalismo naquele continente.

Para deixar o fenômeno mais inteligível, temos de dizer que o que levou os capitalistas da Europa Ocidental a se mostrarem “mais compreensíveis” com as reivindicações de seus trabalhadores foi o pavor que sentiam ao observar que as forças do socialismo haviam assumido o poder, ali ao lado deles, na Europa Oriental. Eles percebiam que, se não fizessem algumas concessões, poderiam aguçar o descontentamento da classe operária e desencadear uma rebelião que tenderia a pôr em risco a propriedade das empresas que serviam para garantir seus rendimentos e sua boa vida.

Foi essa a principal motivação que impulsou os capitalistas a atender algumas das reivindicações das massas trabalhadoras. Com isso, o que se buscava era evitar o que eles consideravam um mal maior, em outras palavras, a chegada do socialismo.

Como não podia deixar de ser, para manter os trabalhadores europeus apaziguados, os capitalistas teriam de meter a mão no bolso. Em consequência, a burguesia foi submetida a uma tributação muito mais severa do que estava habituada a tolerar. Seus integrantes passaram a pagar muito mais imposto de renda; não conseguiam mais se esquivar facilmente do cumprimento das leis que amparavam os trabalhadores; eram obrigados a arcar com pesados tributos na transferência de heranças; etc.

Não obstante, foi nesse contexto de elevada tributação direta, que os capitalistas europeus atingiram o ponto mais alto de sua rentabilidade. Foi um tempo glorioso, em que eles lucraram como nunca antes tinham podido fazer. Tudo o que desembolsavam a mais devido à maior tributação que estavam sofrendo voltava com cresces para os próprios empresários na forma de lucro em razão do substancial aumento na venda de seus produtos.

Curiosamente, essa nova característica do capitalismo na Europa Ocidental acabou por gerar um fenômeno de sentido oposto ao que a burguesia europeia antes temia. Quando os trabalhadores dos países socialistas do lado oriental começaram a constatar que, mesmo sem que fossem os donos das empresas em que trabalhavam, seus colegas da parte ocidental estavam desfrutando de um padrão de vida mais elevado do que o deles, a força de atração mudou o sentido de sua orientação.

Bastou que o receio da chegada do socialismo desaparecesse para os capitalistas da Europa Ocidental voltarem a suas práticas anteriores. Tão logo a União Soviética se decompôs e os países da Europa Oriental retornaram ao sistema capitalista, o empresariado euro-ocidental deu início ao frenético processo de desmonte de todo o arcabouço de bem-estar social que tinha propiciado condições de vida mais dignas para as maiorias trabalhadoras, assim como rendimentos muito maiores para os próprios capitalistas.

O que fica evidente deste exemplo europeu e de outros similares em várias regiões do globo ao longo do tempo é que a tributação dos rendimentos dos setores mais opulentos da população não vai implicar necessariamente na retração do conjunto das atividades econômicas. Em realidade, costuma acontecer exatamente o contrário disto. Quando a taxação incide sobre aquela parcela da renda que não iria ser destinada ao consumo ou ao investimento produtivo, o redirecionamento dos recursos tributados a camadas da população que de fato os empregarão na aquisição de bens e serviços para a satisfação de suas necessidades imediatas vai significar efetivamente um estímulo à produção social e um crescimento da economia em seu conjunto.

Por isso, com uma taxação mais acentuada aos donos de grandes fortunas, toda a sociedade tende a se beneficiar, inclusive os próprios ricos que estão sendo mais tributados.

Entretanto, ao analisar o comportamento dos executores da política econômica do bolsonarismo e o dos acadêmicos mais alinhados com os interesses de nossas classes dominantes e confrontá-los com os acontecimentos da Europa Ocidental relatados mais acima, aquela conhecida fábula do escorpião e do sapo nos vem à mente.

Não parece haver muitas dúvidas de que os grandes capitalistas e seus representantes estão cientes de que a sobrevivência do próprio sistema que eles encarnam depende da elevação do nível básico de vida das massas trabalhadoras. No entanto, um instinto que habita seu interior se faz sentir e os instiga a querer manter os trabalhadores em condições análogas à escravidão. Só isto pode explicar a fúria com que eles reagem ante a simples menção da possibilidade de taxação das grandes fortunas.

* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

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