segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

EUA, China e os balões de ensaio

Imagem do site RT
Por Marcelo Zero, no blog Viomundo:


Não há limites para o ridículo. Pelo menos, não no reino de fértil imaginação da nova Guerra Fria, povoado de insondáveis paranoias.

Antes, no já findo século XX, se procurava comunistas embaixo da cama ou dentro das cozinhas, onde esses seres malignos cozinhavam criancinhas à carbonara.

Agora, porém, mira-se mais alto. Bem mais alto.

Mais especificamente na estratosfera.

Essa inocente camada da nossa atmosfera, tão diáfana e estável, livre das turbulências da troposfera, estaria coalhada de solertes balões espiões vindos da China.

Pelos menos, é o que se deduz das notícias oriundas dos EUA e do Canadá.

Tudo começou quando um balão chinês ousou penetrar os límpidos e patrióticos céus de Montana.

Sem qualquer tipo de investigação, o balão foi logo acusado de espião. E Blinken suspendeu sua viagem a Beijing. Um escândalo internacional

Com pompa e circunstância, o perigoso balão foi abatido por um caça de última geração, na costa da Carolina do Sul.

Não consta que o balão tenha reagido ao ataque.

Na esteira desse episódio risível, três outros objetos voadores não identificados foram derrubados, em diferentes pontos do território dos EUA.

Criou-se pânico. As autoridades norte-americanas tiveram até mesmo de desmentir que os balões eram de origem extraterrestre. Que Marte não estava nos atacando, como no famoso episódio da transmissão radiofônica de Orson Welles.

Nossa mídia e seus “especialistas” difundiram acriticamente a história.

Bom, qualquer pessoa medianamente informada sabe bem que a estratosfera é coalhada de balões. Somente o Serviço Nacional de Meteorologia dos EUA lança ao redor 75.000 balões por ano.

Mas não são apenas balões meteorológicos. Há também balões para pesquisas diversas, como pesquisas climáticas, de poluição atmosférica, de astronomia, etc. Até mesmo rádio amadores usam balões para aferir sinais de rádio.

Os usos são múltiplos. Contudo, o uso de balões para espionagem ou para objetivos militares não é muito eficiente. E não é por uma razão muito simples: os balões não são controláveis.

À exceção dos dirigíveis, eles se deslocam conforme os ventos predominantes. Na melhor das hipóteses, percorrem trajetórias grosseiramente aproximadas. Além disso, eles podem ser abatidos com muita facilidade, como se viu nesses episódios recentes.

Na Segunda Guerra Mundial, os japoneses, em desespero com os avanços dos EUA no Pacífico, tentaram utilizar balões baratos para atacar esse país. Foram fabricados balões que carregavam uma pequena bomba de fragmentação de cerca de 12 quilos.

Esses balões eram lançados aproveitando-se da predominância dos ventos de altitude de oeste para leste, seguindo as correntes de jet stream. A ideia era causar pânico entre a população dos EUA.

Pois bem, dos mais de 9.000 balões lançados, apenas 285 foram chegaram aos céus dos EUA e somente 1 explodiu.

Fracasso retumbante. Ou estratosférico.

No caso do grande balão abatido na Carolina do Sul, os próprios serviços de inteligência dos EUA indicam que o engenho adentrou os céus dos EUA porque que havia um anormal sistema de baixa pressão no oeste do Canadá, o qual fez o artefato deslocar-se para o sul. Caso contrário, teria seguido o rumo oeste.

No que tange aos outros três, John Kirby, coordenador de comunicações estratégicas do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, afirmou que “não descarta a possibilidade” de que se tratem de balões que pertençam a firmas comerciais ou a entidades de pesquisa. É mesmo?

Para espionar, é bem mais eficiente fazer o que os EUA fazem. Eles usam satélites de última geração, algoritmos sofisticados, toda a imensa parafernália eletrônica da NSA e até mesmo (pasmem!) agentes em solo para compor um sistema de espionagem único no mundo.

As chocantes denúncias de Edward Snowden revelaram ao planeta que as grandes companhias que controlam o fluxo de informações da internet, como Google, Microsoft, Apple, Facebook (Meta), Yahoo, Whatsapp (Meta) etc. contribuem ativamente, através do sistema de espionagem PRISM, controlado pela NSA norte-americana, para transformar a internet numa gigantesca plataforma de espionagem e controle político.

Nenhum cidadão do mundo que esteja conectado à rede ou que use uma linha telefônica está livre desse sistema ubíquo e bastante invasivo de espionagem, que devassa e-mails, ligações telefônicas, mensagens de texto, toda a navegação da internet, arquivos pessoais e postagens nas redes sociais. Angela Merkel e Dilma Rousseff que o digam.

Tudo isso é feito sem nenhum balão, mas com muita “cara-de-pau”.

É risível, por conseguinte que, agora, o mundo ocidental esteja mais preocupado com supostos balões espiões chineses do que com a ubíqua a altamente eficiente espionagem dos EUA.

Não por acaso, os EUA anunciaram, logo após o episódio, que existiriam balões espiões chineses que estariam sobrevoando a América Latina. Uma informação sem dúvida destinada a provocar rejeição à China na região.

E Kiev aproveitou a onda estratosférica para acusar Moscou de enviar balões para a Ucrânia. O mesmo fez Taiwan, em relação a Beijing.

É muito pouco provável que esse balão abatido seja espião. E, mesmo que fosse espião, seria pouco provável que tivesse funcionado bem para seus supostos fins.

Em contrapartida, o balão de ensaio comunicacional que os EUA lançaram a seu respeito funcionou bem.

Espionados cotidianamente pelos EUA, ficamos olhando para a estratosfera de fake news.

Olhem para cima!

* Marcelo Zero é sociológo e especialista em Relações Internacionais.

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