Ilustração: Omar Bdoor |
Ao constatar a implacável perseguição que o jornalista Breno Altman vem sofrendo por iniciativa das principais organizações sionistas em nosso país, uma coisa fica evidente: os sionistas estão dispostos a não abrirem mão de seus interesses de classe e a usarem de todos e quaisquer recursos para preservá-los.
A ferocidade com a qual se lançaram contra esse conhecido e respeitado jornalista com o objetivo de enquadrá-lo como antissemita está embasada numa lógica fria e cruel. É que o fato de o próprio Breno Altman ser de origem judaica e não renegar isto põe em cheque toda a estratégia que o sionismo desenvolveu para fazer prevalecer os interesses de classe da grande burguesia judaica e seus associados.
Para garantir impunidade para os crimes do Estado de Israel em sua ocupação colonialista da Palestina, é imprescindível que a ideologia sionista (uma ideologia da burguesia judaica, de cunho supremacista, racista e essencialmente colonialista) seja confundida com o próprio judaísmo. E como Breno Altman é judeu, ao se declarar contrário ao sionismo, ele joga água no chop dos sionistas. Por isso toda essa bronca!
Os SIONISTAS estão trucidando CRIANÇAS e MULHERES com seus bombardeios impiedosos na Faixa de Gaza, os SIONISTAS estão destruindo com bombas todos os hospitais e escolas daquele lugar, os SIONISTAS estão demolindo as moradias de seus habitantes, os SIONISTAS praticam por ali um apartheid ainda mais cruel em seu racismo do que o que existia na África do Sul (para os que duvidam disto, basta consultar o relatório elaborado por Amnesty International a este respeito) e, apesar de tudo isto, acusam de antissemitas aos que denunciam estes crimes.
Mas, será que existem mesmo justificativas para alardear uma ameaça de rebrote do antissemitismo por aqui neste momento? Creio que isto não corresponde para nada às evidências existentes! No Brasil, de hoje e de sempre, o cerne do racismo está direcionado contra os descendentes da população trazida para cá na condição de escravos, e não aos judeus. Nem mesmo nossos indígenas, fora das regiões onde eles ainda têm certa significância numérica, servem para exercer o indispensável papel de inimigo comum a ser combatido no intuito de defender o capitalismo em seus momentos de violentas crises. E isto não se deve a que nossas classes dominantes tenham alguma consideração e respeito especiais por nossos povos aborígenes. Muito longe disto. O fato é que, lamentavelmente, o grosso da população originária de nossas terras foi amplamente dizimado e, com exceção de algumas poucas áreas, sua presença já não se faz sentir com peso relevante.
No Brasil, em vista de nunca ter alcançado uma expressão numérica significativa entre nós, o antissemitismo (em sua versão que o equipara ao antijudaísmo) nunca chegou a alcançar a mesma envergadura daquele que ganhou corpo na Europa até a II Guerra Mundial.
Porém, é importante ressaltar, nos dias de hoje, nem mesmo na maioria dos países europeus continuam presentes aquelas condições que possibilitaram o surgimento dos fortes sentimentos antissemitas que deram à luz o nazismo e sua fobia contra os judeus. É que na atualidade já não há mais um número relevante de judeus compartilhando os espaços com os demais habitantes. A ampla maioria dos judeus presentes na Europa por então era gente que vivia do trabalho assalariado. Muitos deles haviam aderido e se destacado na luta pelos ideais de emancipação da classe trabalhadora contra a exploração capitalista. Não por acaso, boa parte dos líderes populares e trabalhistas europeus do início do século passado tinha ascendência judaica.
Naquelas circunstâncias, para preservar os interesses das classes dominantes europeias, os ideólogos do grande capital trataram de fazer aquilo que sempre buscam fazer quando assim consideram oportuno: encontrar algum grupo social que sirva de bode expiatório contra o qual se possa direcionar toda a ira e a frustração que a espoliação capitalista estava causando ao conjunto da população. Ou seja, procurar sedimentar a crença de que todas as mazelas sofridas pelo conjunto da nação eram devidas, única e exclusivamente, àquele grupo de pessoas que o grande capital tinha selecionado para desempenhar o papel de inimigo comum.
É evidente que as campanhas de disseminação de ódio contra os judeus só puderam ganhar corpo porque havia uma comunidade judaica numericamente expressiva por ali. Não teria sido possível trabalhar e moldar a mente da maioria dos demais cidadãos para que viessem a sentir que os judeus constituíam o cerne do problema se, ali junto a eles, sua presença não pudesse ser facilmente detectada. Logicamente, nos dias de hoje, na Europa, essa realidade já não está vigente.
Muito embora não haja riscos visíveis iminentes de um ressurgimento da perseguição aos judeus na Europa, nunca podemos compactuar com a prática da discriminação com base em preconceitos raciais ou religiosos. Precisamos levar em conta que o chamado holocausto nazista atingiu também a comunistas de todas as variantes, aos ciganos, aos homossexuais e, como não podia deixar de ser, os líderes de movimentos operários em geral. Foi, na verdade, uma demonstração de que não há limites para as atrocidades que o grande capital está disposto a praticar para garantir a continuidade de seus lucros através da exploração máxima da força de trabalho humana.
Contudo, ainda que não pareça haver uma ameaça direta aos judeus na Europa neste momento, há outras etnias e outros grupos sociais que correm o risco de sofrer desgraças semelhantes àquelas provocadas pelo grande capital em sua fase nazifascista. Para eliminar de vez a possibilidade de ressurgimento do antissemitismo e de qualquer outro tipo de discriminação de cunho racial é de fundamental importância que todos os humanistas de verdade se empenhem em combater aquilo que, de fato, desponta como as grandes agressões racistas do momento.
No entanto, longe de cessar, a busca pelo bode expiatório até ganhou mais ênfase. Só que agora, em razão das novas condições imperantes, já não são os judeus os candidatos a assumir tal função.
Na Europa de agora, as principais vítimas da discriminação racial e cultural, com os consequentes atos de perseguição, são os enormes contingentes de imigrantes oriundos das nações arrasadas pelo colonialismo e pelo neocolonialismo pelo mundo afora. Os odiados do presente, os vilões da atualidade, os que devem ser combatidos, expulsos ou eliminados, são as massas de trabalhadores muçulmanos, os imigrantes negros que fugiram da África devido à fome, os latino-americanos que saíram de suas terras em razão da falta de perspectivas e de esperança para uma vida digna. Estes “novos judeus” não têm quase nenhuma associação direta com os antigos "inimigos mortais" da extrema direita nazifascista europeia da primeira parte do século passado, mas estão plenamente aptos a exercer o papel de bodes expiatórios do momento.
Convém enfatizar também que, em nosso país, o sentimento de aversão aos judeus nunca pôde se alastrar ao conjunto de nosso povo. No século passado, o antissemitismo só chegou a contagiar um número relativamente reduzido de integrantes de nossas classes média e alta. E, ainda assim, muito mais em função do viralatismo umbilical que une essas camadas sociais a seus congêneres europeus do que por motivações endógenas. Para a amplíssima maioria de nosso povo, a questão do antissemitismo nunca esteve presente. Provavelmente, isto se deve a que nunca tivemos grandes massas de pessoas de origem judaica entre nossa população e, portanto, este tema jamais chegou a sensibilizar muita gente entre nós.
E se o antissemitismo nunca tinha sido capaz de mobilizar grandes contingentes por aqui ao longo da história, neste momento específico, sua relevância de modo algum pode ser sentida como estando em realce. O que vemos e sentimos, cada dia com mais intensidade, é o crescimento da barbárie praticada contra nossas maiorias de origem afrodescendente.
Os meios de comunicação corporativos, no Brasil e no mundo ocidental, têm se esmerado em difundir o entendimento de que todos os judeus estão indissoluvelmente associados ao Estado de Israel e ao sionismo. Em outras palavras, tem-se procurado consolidar o entendimento de que qualquer condenação às políticas do sionismo do Estado de Israel deve ser identificada como um ataque ao povo judeu como um todo, ou seja, como prática de antissemitismo.
Em vista disto, nem mesmo os nazistas brasileiros de hoje consideram o Estado de Israel como seu inimigo visceral. Muito pelo contrário, a estrutura estatal do colonialismo israelense representa na atualidade o modelo exemplar a ser seguido por todos os governantes que desejam aniquilar a resistência dos grupos marginalizados da sociedade. Quase que todos nossos nazistas tupiniquins consideram o Estado de Israel como o protótipo do estado de seus sonhos, aquele em condições de enfrentar e reduzir qualquer tentativa de rebelião por parte dos que são vistos como supérfluos, ou que só tenham o direito de existir para servir como objeto da mais brutal exploração e espoliação.
Não é difícil, portanto, compreender porquê, no Brasil de hoje, o Estado de Israel, seu exército e sua maneira de lidar com os palestinos se tornaram símbolos de admiração para grande parte dos expoentes de nossa extrema direita de características nazifascistas-bolsonaristas. Isto pode ser constatado entre os donos das maiores igrejas neopentecostais, que tratam de inculcar entre seus seguidores o sentimento de que é um dever de todos os cristãos defender a limpeza da Palestina de todos os povos que lá estavam antes da chegada dos colonos europeus; ou mesmo entre líderes de quadrilhas de traficantes de drogas, que chegam a alçar a bandeira de Israel para demarcar os territórios sob seu controle; assim como em boa parte dos bolsonaristas ideológicos. Claro que também entre a chamada elite do dinheiro o prestígio do Estado de Israel não fica atrás.
Mas, além disso, existem certos personagens que se apresentam como sionistas de esquerda, os quais costumam ser os que mais apelam para o antissemtismo na defesa de suas argumentações. Se partirmos do princípio de que estamos nos referindo a pessoas que agem de boa fé e que, de verdade, se preocupam por encontrar saídas humanitárias e dignas para todos os envolvidos no problema, o mínimo que poderíamos dizer sobre eles é que conformam uma tragédia da incompreensão. Se aliam ao racismo e supremacismo mais criminoso de nosso tempo com a crença (ou pretexto) de estarem defendendo causas humanistas.
Devo admitir que tenho dificuldades para entender o que vem a ser um judeu que não seja seguidor da religião judaica. Será que o judaísmo se tornou uma característica racial eterna e imutável? Todos os judeus seriam, portanto, parte de uma mesma e única raça, independentemente de ter ou não religião, da cor de sua pele, de sua cultura, da língua falada, etc.
Entretanto, como o historiador Benedict Anderson já nos explicou, toda nação é sempre uma comunidade imaginada. Por isso, não vejo como essencialmente negativa que certas pessoas se identifiquem com certas tradições históricas que elas consideram integrantes do judaísmo.
Não obstante, o que decididamente não estou disposto a aceitar é que existam aqueles que se apresentem como “sionistas de esquerda” e que, embora não sigam a religião judaica, demonstrem sentir-se moralmente comprometidos com a expropriação e a expulsão do povo palestino de suas terras e defendam o Estado de Israel da forma como ele foi criado.
Pois essas pessoas não estão tão somente engajadas na defesa de um estado nacional comum, mas de um Estado exclusivamente judeu. Sim, um estado única e exclusivamente para os judeus, que é assim como está estruturado o Estado de Israel desde sua formação pelos colonos europeus que para lá foram ocupar a terra e expulsar os palestinos que já habitavam a região há milênios. Vamos recordar que muitos desses colonizadores tinham acabado de ser vítimas de severas perseguições e matanças na Alemanha e em vários outros países da Europa. E eles tinham sido vitimados por forças a mando das classes dominantes EUROPEIAS, e não pelos povos da Palestina.
Fica mais do que evidente que todo democrata humanista, mesmo quando se considere um judeu, pode e deve fazer ao Estado de Israel várias críticas que não têm absolutamente nada a ver com a questão de preconceito antissemita. Defender a existência do Estado de Israel da maneira como ele foi constituído e vem sendo mantido até hoje é defender um Estado racista, discriminador dos povos que não pertencem a “etnia” judaica, seja lá o que isso for. Combater as características exclusivistas existentes no Estado de Israel desde sua fundação é também um passo relevante para lutar contra o antissemitismo.
Portanto, mesmo alguém que se considere judeu pode e deve tecer críticas às políticas discriminatórias do Estado de Israel. É assim que vejo o valoroso posicionamento de Breno Altman. O objetivo real de todos os humanistas, mesmo os judeus, deve ser sempre contribuir com a paz, com a justiça social, com a solidariedade e com a defesa dos direitos de todos os seres humanos. Sua obrigação é estar na linha de frente pela exigência de que o Estado de Israel deixe de ser uma entidade exclusivamente judaica e passe a ser um ESTADO DE TODOS OS SEUS CIDADÃOS, independentemente de sua origem étnica ou religião.
Felizmente, quanto a isto, além de nosso Breno Altman, não nos faltam exemplos de grandeza entre a comunidade judaica. Há muitos outros, até mesmo dentro do próprio Estado de Israel. São vários os nomes que podem ser citados para demonstrar a solidariedade e a dignidade provenientes de pessoas que se consideram judias. Os grandes historiadores israelenses Ilan Pappe e Shlomo Sand, o renomado linguista Noam Chomsky, o combativo Miko Peled, entre tantos outros, estão aí para deixar claro este ponto.
Deveria ser um orgulho para qualquer judeu humanista saber que eles estão entre aqueles que não concordam com disposições do tipo das que permitem que qualquer um tido como de origem judaica possa imigrar a qualquer momento para Israel e passar a ter todos os direitos de um cidadão pleno, enquanto que os descendentes dos palestinos que foram expulsos de suas terras pelos colonos ocupantes não podem retornar.
Em sintonia com o que predica Breno Altman, reitero meu desejo e minha aspiração de que naquela terra onde hoje estão instalados o Estado de Israel e os parcos territórios onde os palestinos restantes foram amontoados, que ali seja edificado um Estado para todos os seus habitantes, sem nenhuma discriminação baseada em origem racial ou religiosa. Um Estado que não compactue com o colonialismo e o imperialismo e que sirva para aprofundar a busca da paz a nível mundial.
Estarei sendo muito antissemita ao pedir isto?
* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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