Reproduzo artigo enviado por Beto Almeida, membro da Junta Diretiva da Telesur:
A imensa comoção nacional do povo argentino diante da morte de Nestor Kirchner, manifestando dor e compromisso de luta a um só tempo, oferece a todos nós latino-americanos mais uma oportunidade, agora dolorosa, para entender e valorizar, a um só tempo e cada vez mais o significado histórico do nacionalismo revolucionário na América Latina.
O papel indispensável de Nestor em sua pátria foi o de religar os fios da história que estavam rompidos, desconectados. Ao religar novamente o presente argentino com aquele seu passado que nunca foi enterrado, por ser uma necessidade da nação argentina, o peronismo, Kirchner conseguiu sintonizar o povo do país irmão com o ponto mais elevado do projeto de nação que os platenses conseguiram desenhar um dia.
Renascimento do nacionalismo revolucionário
A comoção argentina, que alcança a toda América Latina, é o reconhecimento das grandes massas trabalhadoras com o papel de Kirchner ao conseguir trazer novamente, e de modo atualizado para os temas da contemporaneidade, a experiência peronista que, num governo de 11 anos, de 1944 a 1955, transformou aquele país num dos mais prósperos do mundo.
Por meio da estatização dos setores chaves da economia, seja energia, mineração, comércio exterior, transportes e telecomunicações, além de fortíssima expansão na educação, saúde, cultura e radiodifusão públicas, a Argentina elevou de modo impactante o nível de vida de seu povo. O analfabetismo foi praticamente erradicado. O país de um salto.
Mas, a sanha imperialista que rondava o mundo naquela quadra e sabotou outros processos nacionalistas transformadores que estavam em curso - entre 1953 e 1955 houve golpes de estado no Irã, no Brasil, Guatemala - alcançou também a pátria argentina. Perón foi deposto por um golpe que causou centenas de mortos, num bombardeio praticado pela Aeronáutica, maior bolsão oligárquico então, mas organizado pelo imperialismo anglo-saxão, que mais tarde se repetiu no bombardeio ao Palácio de La Moneda, no Chile, em 1973.
Com Perón, Vargas e Ocampo, estava em curso o projeto ABC, pelo o qual Argentina, Brasil e Chile desenvolveriam um amplo trabalho de integração econômica, comercial, política e cultural. A intervenção estrangeira desestabilizadora contra Vargas o impediu de cumprir com a parte brasileira naquele processo de integração que, mais tarde, foi parcialmente recuperado pela criação do Mercosul e agora expandido pela criação da Unasur , da qual Nestor Kirchner era o secretário-geral.
Fim da ditadura do FMI
Tanto no plano internacional, como no plano interno, Nestor Kirchner teve um governo marcado pela recuperação da soberania de seu país, meta que vem sendo aplicada pela atual presidente, Cristina Kirchner. Emblemática foi a renegociação soberana da dívida externa argentina, sobretudo quando Kirchner estabeleceu, de modo unilateral, os limites claros e soberanos do montante que estaria em negociação e o aceitava pagar.
Com isto, a Argentina terminou com a ditadura do FMI que, desde a sanguinária ditadura militar rapinava o país, levando-o a ficar de joelhos e sob a marca das relações carnais com os EUA, na Era Menem, que dilapidou todo o patrimônio público construído no período do peronismo dos anos 50. Com a ditadura militar e a oligarquia de volta ao poder a Argentina voltava a conhecer o analfabetismo, a fome, a miséria, o afavelamento em massa já que tinha superado décadas atrás. E, por fim, o neoliberalismo leva a Argentina à terrível crise do governo de Fernando De La Rua, obrigado a renunciar diante do desastre político e econômico para todo o povo argentino.
Kirchner surgiu como a síntese capaz de retomar o passado, capaz de superar o presente e capaz de projetar um futuro para um povo que estava, naquela altura, sem um rumo que o levasse à condição promissora que pode ter, diante das imensas riquezas e potencialidades que a Argentina inequivocamente possui.
A retomada do protagonismo de estado
Nestor retoma o protagonismo de estado, insere novamente a participação dos trabalhadores e de seus sindicatos nas políticas salariais e nas demais políticas públicas. Além disso, revogou as leis que obstruíam a plena atuação dos sindicatos nas políticas laborais, salariais e previdenciárias.
Nestor recria empresa estatal de energia, de aviação, recupera o salário mínimo, expande o mercado de trabalho, revigora o raquítico mercado interno, multiplica investimentos públicas na habitação. Mas, na área de Direitos Humanos, vai muito mais além: simplesmente revoga duas monstruosas leis impostas pela ditadura mesmo depois de seu fim a dois governos vassalos, o de Alfonsin e de Menem: a Lei de Ponto Final e a Lei de Obediência Devida.
Mais que isso, transforma a Escola Superior da Armada, a ESMA, centro de tortura e de execução de sindicalistas, militantes, intelectuais e artistas, em um Centro Cultural para Homenagear os Desaparecidos, os direitos democráticos e condenar para todo o sempre os carniceiros da Junta Militar de Jorge Rafael Videla e companhia. O mundo inteiro viu a retirada dos retratos destes carniceiros da parede da ESMA para serem jogados no lixo da história, ao passo que estes assassinos encontram-se na prisão.
Democratização da mídia
Kirchner faz o enfrentamento necessário com o oligopólio da mídia, fortalece e expande a TV Pública Argentina, criada no primeiro governo de Perón. Com isto criou as bases necessárias para a conscientização política popular necessária para que fosse aprovada, já no governo de Cristina Kirchner, a nova Lei de Meios de Comunicação Argentina, reduzindo drasticamente o poder das oligarquias midiáticas, criando um canal infantil, um canal cultural de alto nível, demolindo a reserva de mercado de algumas emissoras privadas sobre a transmissão do futebol, que agora também é transmitido pelos canais públicos, e, sobretudo, determinando que o espaço eletromagnético seja divido em três segmentos: o estatal, o privado e o público, pelo qual até a CGT e a Universidade Nacional, poderão ter canais e televisão. Sem esquecer que foi criado também um operador nacional de TV a cabo e um operador estatal para a TV digital, dois modelos sobre os quais os brasileiros deveriam meditar com muita atenção.
Kirchner é isto e muito mais. A recuperação do significado histórico do nacionalismo revolucionário, derrotando a oligarquia e as falanges mais recalcitrantes e marrons no interior do próprio peronismo, é algo que o transformou num dirigente político com esmerada capacidade de organização e de aplicação de táticas adequadas, sempre dominadas pela busca da maior unidade política possível das forças populares e progressistas argentinas.
É este nacionalismo transformador, também aplicado na história do México pelo General Lázaro Cárdenas, aqui no Brasil por Getúlio Vargas, e agora na Venezuela por Hugo Chávez, ou por Daniel Ortega na Nicarágua, recuperando o antiimperialismo de Augusto César Sandino, que deve ser reconhecido com a qualidade fundamental de Nestor Kirchner.
Ritmos e prazos na integração latino-americana
Presente no velório, Lula destacou a importância de Kirchner como construtor e organizador da unidade latino-americana. E sublinhou que, com ele, as relações entre Brasil e Argentina deram um grande salto de qualidade. Este é um elemento decisivo, pois quanto mais unidos estiverem Brasil e Argentina, pelo peso específico de cada país, pelo grau de desenvolvimento industrial alcançado por ambos, os ritmos e prazos da integração latino-americana poderão ser drasticamente reduzidos, em benefício da elevação do padrão de vida de todos os latino-americanos.
Em razão disso, é justo e correto observar em várias medidas e políticas aplicadas também por Lula, uma certa recuperação de políticas da Era Vargas. Sim, no antagonismo entre o governo Lula e o Governo FHC, tão debatido durante a campanha eleitoral, é preciso acrescentar que o objetivo declarado de FHC, como seria o de Serra, é o de extirpar com o que resta da Era Vargas. Assim também tentou Menem, mas, não conseguiu sequer disputar o segundo turno das eleições presidenciais de 2003 contra Kirchner.
É que Nestor já havia religado os fios da história despertando novamente o grande potencial revolucionário do nacionalismo, aquele que incorpora o povo nas políticas públicas, os sindicatos nas políticas de previdência, de trabalho e salarial, a intelectualidade na formulação de uma comunicação inteligente e humanizadora.
Este foi Kirchner. Temos muito a aprender com ele, para América Latina seguir mudando, para o Brasil seguir mudando e para recuperar a sintonia com o melhor de nossa própria história em termos de formulação de políticas públicas. Aliás, como está ocorrendo hoje.
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