Por Marcelo Semer, no blog Sem Juízo:
Se as escaramuças públicas entre os ministros permitirem, o STF começa hoje a votação de outra importante questão de cidadania: a constitucionalidade das cotas raciais.
O DEM ajuizou ação no Supremo (ADPF 186) buscando derrubar o sistema de cotas introduzido em 2009 na Universidade de Brasília.
Segundo o partido, a regra representaria um abalo ao princípio da igualdade, além de estimular o crescimento do conflito racial.
Mas será razoável atribuir o conflito justamente a quem busca minorar suas consequências?
A segregação racial no país pode não ter sido inscrita em leis como nos Estados Unidos ou no apartheid sul-africano. Mas isso nem de longe nos absolve dos séculos de discriminação.
O fato de que, entre os onze ministros a decidirem a questão, exista apenas um negro, é um claro indicativo das sequelas deste processo, em um país com uma população tão expressiva de afrodescendentes.
A participação mínima dos negros, todavia, não se restringe ao plenário de nossa Corte Suprema. No Judiciário como um todo sua presença é irrisória. Como o é nas firmas de engenharia, nos consultórios médicos ou nas redações dos jornais –reflexo direto da insignificante presença de afrodescendentes nos bancos universitários, justamente o que a norma da UnB busca combater.
Não é a toa que isso acontece. Existem séculos de opressão por trás dessa desigualdade.
O Brasil foi um dos últimos países do continente a abolir a escravatura, com a qual conviveu por mais de trezentos anos.
Curiosamente, um dos obstáculos mais fortes à abolição também repousava numa interpretação jurídica, por via da intransigente defesa do direito adquirido. Direito a uma mão-de-obra que até então era considerada coisa.
É certamente uma pena que naqueles tempos ainda não gozássemos de uma Constituição Federal que declarasse de forma tão contundente a defesa da igualdade.
A questão é de saber se agora que temos essa norma, devemos usá-la para manter intacta a desigualdade que a sua ausência criou ao longo do tempo.
A ação afirmativa, de natureza compensatória, não é nenhuma jabuticaba –não existe apenas no Brasil.
E tampouco se refere só aos negros. A cota para deficientes físicos em postos de serviços ou mulheres em candidaturas são esforços para reequilibrar situações concretas de desigualdade.
Elas não visam o imaginário ou o abstrato, mas a correção de desvios que dominações longevas e discriminações perenes provocaram na sociedade.
No caso das cotas na Universidade nem mesmo eliminam o fator de mérito –só os mais capazes poderão usufrui-las.
Ninguém pode dizer com precisão qual será o resultado de uma política de ação afirmativa. Mas a omissão no caso tende a ser ainda mais custosa, pela reprodução das desigualdades.
De pouco adiantará ter uma Constituição com tantos predicados humanistas (inclusive o que afiança a repulsa ao racismo) se a sua interpretação sufoca as injustiças que ela nasceu para desatar.
O Supremo Tribunal Federal vem amadurecendo uma interpretação mais moderna e cidadã das normas constitucionais.
Já afirmou a incompatibilidade da Lei da Imprensa com a liberdade de expressão, garantiu o direito à manifestação mesmo em defesa do que é proibido pela lei, assegurou a amplitude da família para alcançar relações homoafetivas.
A seguir esta jurisprudência humanista que vem construindo, as ações afirmativas, que dão sentido ao princípio da igualdade, não devem ser consideradas discriminatórias.
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