Por Eric Nepomuceno, de Buenos Aires, no sítio Carta Maior:
Na verdade, desta vez foi diferente, bem diferente: não eram apenas algumas centenas de granfinóides protestando em esquinas elegantes de Buenos Aires. Não: na manifestação de quinta à noite havia, em Buenos Aires, vários milhares de pessoas, que se concentraram em diferentes pontos da capital mas principalmente na Plaza de Mayo, diante da Casa Rosada, a sede da presidência. Também houve manifestações em Córdoba, Rosário, Mar del Plata, Mendoza, as cidades mais importantes do país. É algo a ser levado em consideração, sem dúvida. Mostra um grau de polarização que começa a se tornar cada vez mais nítido, e do endurecimento das classes médias e altas.
Outra diferença notável, se comparada aos panelaços portenhos de maio e junho: foi uma mobilização muito bem organizada, convocada ao longo de mais de uma semana pelas redes sociais, que na Argentina são muito utilizadas. E outra: assim que as pessoas começaram a se concentrar na Plaza de Mayo, o canal TN, do grupo Clarin, passou a transmitir tudo ao vivo. Os comentaristas se esmeravam em destacar o caráter multitudinário da manifestação, ressaltando que “o mal estar finalmente chegou às ruas”, título, aliás, do editorial do jornal impresso que circulou no dia seguinte.
Lendo o jornal, tem-se a impressão que o povo decidiu sair às ruas para manifestar sua discordância implacável com um governo de absurdos. Inevitável, surgiu na emissora do grupo Clarín a comparação com as gigantescas mobilizações populares que, em dezembro de 2001, culminaram com a renúncia de Fernando de la Rúa, um presidente amorfo, inepto, sem apoio popular algum, que acabou indo embora de helicóptero pelo telhado da Casa Rosada. Tão forçada e sem base era a comparação, que foi deixada de lado.
Aliás, vendo as imagens transmitidas pelo canal aberto do mesmo grupo que detém, e quer manter, o monopólio da informação no país, saltava aos olhos uma contradição: a esmagadora maioria dos manifestantes distava milhas náuticas do que normalmente é chamado de popular. Eram senhoras e senhores bem vestidos, jovens em roupas de estirpe, moçoilas maquiadas como se fossem para algum lugar da moda.
Os gritos de reivindicação também chamaram a atenção, porque normalmente na Argentina – um país extremamente politizado – as mobilizações populares são bastante precisas em suas reivindicações. Desta vez, não: protestava-se contra um pouco de tudo. A questão da segurança pública, a suposta reforma constitucional que permita que Cristina Kirchner se candidate à presidência pela terceira vez, o controle sobre o câmbio, que impede aos mais abastados que continuem poupando e especulando com o dólar, a censura à imprensa (que tanto não existe que tudo isso saiu nos jornais do dia seguinte), os impostos, a inflação (que efetivamente é altíssima no país, enquanto o governo teima em difundir índices nos quais ninguém, nem no próprio governo, acredita), o desemprego (que há décadas não é tão baixo), a intromissão do Estado nos currículos escolares, e contra várias coisas mais.
O próprio governo confessou não ter conseguido saber contra o quê, exatamente, protestavam aqueles senhores circunspectos e aquelas senhoras bem vestidas. Nenhum líder político da oposição apareceu, embora vários deles deitassem falação nos dias seguintes, advertindo sobre a falta de diálogo com um governo que ignora os anseios populares. A propósito: na mesma quinta-feira a presidente havia anunciado um aumento de 26% no valor da bolsa família local.
Um ponto que impressionou, e muito, é revelador da índole da manifestação. Nas palavras de ordem ouvia-se frases extremamente agressivas, gritadas a todo pulmão. Algumas ressoavam pelos alto-falantes dos carros de som. “Morra, sua égua”, “Cai fora, sua puta ladra e terrorista” ou “Vai para Cuba, sua putona” são as mais suaves e publicáveis.
Essa espécie de furor descabelado, esse ódio de classe contra os peronistas, não é nenhuma novidade no país, e especialmente em Buenos Aires. Poucas vezes, porém, foi tão ferozmente exibido em público.
O antagonismo definitivamente explícito entre governo e o maior grupo de comunicação do país, o Clarín, também chegou ao nível máximo de exacerbação. Cristina Kirchner não tem limites ou pudores na hora de criticar o grupo, que por sua vez não tem o mais tênue verniz de escrúpulos na hora de distorcer, de forma quase bizarra, seu noticiário.
Esse enfrentamento vai além, bastante além, das descargas elétricas entre governo e um monopólio de comunicação. Por trás do grupo Clarín há interesses de todos os calibres e parâmetros. Chego a pensar que não seria por acaso que aconteçam, daqui para a frente, panelaços como o de quinta-feira. E que suas dimensões e repercussões, embora suficientes para dar ao governo o quê pensar, serão infinitamente infladas pelos grandes meios de comunicação, para gáudio de uma classe média furiosamente inconformada com tudo (‘não nos deixam comprar dólares, não nos deixam poupar, não nos deixam viajar, não nos deixam nada, o que é isso, outra ditadura?’, esbravejava na televisão uma senhora elegante, que já teve dias melhores mas não perdeu a pompa e a soberba). Afinal, convém não esquecer que, em dezembro, entra em vigor a nova lei de meios de comunicação no país, e que, se aplicada, será o golpe mortal no maior conglomerado da Argentina – exatamente o grupo Clarín.
Outra diferença notável, se comparada aos panelaços portenhos de maio e junho: foi uma mobilização muito bem organizada, convocada ao longo de mais de uma semana pelas redes sociais, que na Argentina são muito utilizadas. E outra: assim que as pessoas começaram a se concentrar na Plaza de Mayo, o canal TN, do grupo Clarin, passou a transmitir tudo ao vivo. Os comentaristas se esmeravam em destacar o caráter multitudinário da manifestação, ressaltando que “o mal estar finalmente chegou às ruas”, título, aliás, do editorial do jornal impresso que circulou no dia seguinte.
Lendo o jornal, tem-se a impressão que o povo decidiu sair às ruas para manifestar sua discordância implacável com um governo de absurdos. Inevitável, surgiu na emissora do grupo Clarín a comparação com as gigantescas mobilizações populares que, em dezembro de 2001, culminaram com a renúncia de Fernando de la Rúa, um presidente amorfo, inepto, sem apoio popular algum, que acabou indo embora de helicóptero pelo telhado da Casa Rosada. Tão forçada e sem base era a comparação, que foi deixada de lado.
Aliás, vendo as imagens transmitidas pelo canal aberto do mesmo grupo que detém, e quer manter, o monopólio da informação no país, saltava aos olhos uma contradição: a esmagadora maioria dos manifestantes distava milhas náuticas do que normalmente é chamado de popular. Eram senhoras e senhores bem vestidos, jovens em roupas de estirpe, moçoilas maquiadas como se fossem para algum lugar da moda.
Os gritos de reivindicação também chamaram a atenção, porque normalmente na Argentina – um país extremamente politizado – as mobilizações populares são bastante precisas em suas reivindicações. Desta vez, não: protestava-se contra um pouco de tudo. A questão da segurança pública, a suposta reforma constitucional que permita que Cristina Kirchner se candidate à presidência pela terceira vez, o controle sobre o câmbio, que impede aos mais abastados que continuem poupando e especulando com o dólar, a censura à imprensa (que tanto não existe que tudo isso saiu nos jornais do dia seguinte), os impostos, a inflação (que efetivamente é altíssima no país, enquanto o governo teima em difundir índices nos quais ninguém, nem no próprio governo, acredita), o desemprego (que há décadas não é tão baixo), a intromissão do Estado nos currículos escolares, e contra várias coisas mais.
O próprio governo confessou não ter conseguido saber contra o quê, exatamente, protestavam aqueles senhores circunspectos e aquelas senhoras bem vestidas. Nenhum líder político da oposição apareceu, embora vários deles deitassem falação nos dias seguintes, advertindo sobre a falta de diálogo com um governo que ignora os anseios populares. A propósito: na mesma quinta-feira a presidente havia anunciado um aumento de 26% no valor da bolsa família local.
Um ponto que impressionou, e muito, é revelador da índole da manifestação. Nas palavras de ordem ouvia-se frases extremamente agressivas, gritadas a todo pulmão. Algumas ressoavam pelos alto-falantes dos carros de som. “Morra, sua égua”, “Cai fora, sua puta ladra e terrorista” ou “Vai para Cuba, sua putona” são as mais suaves e publicáveis.
Essa espécie de furor descabelado, esse ódio de classe contra os peronistas, não é nenhuma novidade no país, e especialmente em Buenos Aires. Poucas vezes, porém, foi tão ferozmente exibido em público.
O antagonismo definitivamente explícito entre governo e o maior grupo de comunicação do país, o Clarín, também chegou ao nível máximo de exacerbação. Cristina Kirchner não tem limites ou pudores na hora de criticar o grupo, que por sua vez não tem o mais tênue verniz de escrúpulos na hora de distorcer, de forma quase bizarra, seu noticiário.
Esse enfrentamento vai além, bastante além, das descargas elétricas entre governo e um monopólio de comunicação. Por trás do grupo Clarín há interesses de todos os calibres e parâmetros. Chego a pensar que não seria por acaso que aconteçam, daqui para a frente, panelaços como o de quinta-feira. E que suas dimensões e repercussões, embora suficientes para dar ao governo o quê pensar, serão infinitamente infladas pelos grandes meios de comunicação, para gáudio de uma classe média furiosamente inconformada com tudo (‘não nos deixam comprar dólares, não nos deixam poupar, não nos deixam viajar, não nos deixam nada, o que é isso, outra ditadura?’, esbravejava na televisão uma senhora elegante, que já teve dias melhores mas não perdeu a pompa e a soberba). Afinal, convém não esquecer que, em dezembro, entra em vigor a nova lei de meios de comunicação no país, e que, se aplicada, será o golpe mortal no maior conglomerado da Argentina – exatamente o grupo Clarín.
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