Por Miguel do Rosário, no blog O Cafezinho:
A vitória da democracia argentina, com a aprovação da Ley dos Medios pela suprema corte, se reflete em todo o continente, onde grupos privados de mídia, fortalecidos à sombra de ditaduras e com apoio do imperialismo, tornaram-se a principal força política de oposição aos governos progressistas da região.
Não é o caso de dizer que estes grupos não tem direito de ser oposição. Nem que os governos são perfeitos e não merecem ser criticados. Ao contrário. É salutar que haja oposição midiática aos governos. E todo governo tem de ser duramente supervisionado ou mesmo criticado pela imprensa de seu país.
O problema é que todos esses grupos consolidaram-se em períodos de totalitarismo, quando as vozes dissidentes foram silenciadas pela força bruta ou pelo asfixiamento financeiro. Quando a democracia renasce na América Latina, eles são os únicos sobreviventes num ambiente devastado. Esses gigantes poderosos, ainda apoiados por agências norte-americanas, abusaram de sua força para influenciar o processo de redemocratização, impondo leis e elegendo seus candidatos. Assim que a década negra do neoliberalismo, quando a pobreza e a desigualdade de renda atingem seus pontos culminantes, foram também a década de ouro da grande mídia sul-americana, alinhada ao rentismo bilionário que sugava o sangue dos trabalhadores do continente.
Quando o jogo se inverte, e os povos aprendem a usar o voto para derrubar governantes que não exerciam políticas em seu benefício, esses grupos aderem à oposição.
Entretanto, repito, o problema não é seu oposicionismo, e sim o ambiente de monopólio, sem leis, em que esses gigantes operam.
A Argentina, porém, mostrou ao continente que é possível reagir à truculência da mídia. A aprovação da Ley dos Medios, em 2009, e sua validação total, esta semana, ajudam a trazer prestígio à política partidária e parlamentar.
Na decisão em que avalizaram a constitucionalidade da Ley dos Medios, inclusive os pontos contestados pelo Clarín, os juízes enfatizaram alguns pontos fundamentais nessa questão:
“Os meios de comunicação tem um papel relevante na formação do discurso público, motivo pelo qual o direito do Estado de regular o setor é inquestionável”.
Uma passagem, citando o direito internacional sobre o tema, atrapalhará a tentativa do Clarín de levar a decisão aos tribunais internacionais. Diz o trecho, citando a Declaração sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: “os meios de comunicação têm um poder inegável na formação cultural, política, religiosa, de todos os habitantes. Se estes meios são controlados por um reduzido número de indivíduos, ou por um só, cria-se uma sociedade onde um reduzido número de pessoas exercem o controle sobre a informação e, direta ou indiretamente, a opinião que recebe o resto da população. Esta carência de pluralidade na informação é um sério obstáculo ao fundamento da democracia”.
Por minha conta, acrescento outro trecho do mesmo documento:
“Os monopólios ou oligopólios na propriedade e controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis anti-monopólio, uma vez que conspiram contra a democracia ao restringirem a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à informação.”
Raúl Zaffaroni, um dos juízes que votaram em favor da lei, em entrevista ao Página 12, observa que na Alemanha há regras bem mais duras contra o monopólio midiático.
“A regulação desta lei é muito mais tranquila que, por exemplo, a alemã. Não te impede de possuir um jornal e um canal de tv ao mesmo tempo. Há outras que o proíbem. E não se mete com a imprensa escrita, restringindo-se aos meios audiovisuais”.
Zaffaroni explica que a decisão representa um avanço “transcendental para nossa cultura, em matéria de mídia e monopólios, se se quer conservar a individualidade cultural. Nossa cultura é plural, com origem pluriétnica, onde convivem subculturas muito diferentes, sobre uma base de relativa tolerância. Os meios condicionam tudo, não são apenas capazes de condicionar uma eleição, como constroem realidades e determinam condutas. A decisão tem um valor culturalmente histórico”.
Indagado pelo jornal se achava, junto com seus colegas, que a agência federal encarregada de regular os meios de comunicação do país, deveria ser independente, tendo como referência a “norte-americana”, Zaffaroni saiu-se com uma resposta que deveria servir de lição para todos os juízes do mundo que acreditam na democracia:
“Bem, a lei foi votada pelo Congresso, se um dia eu for deputado, pensarei sobre isso, agora não é nossa função.”
Esta declaração de Zaffaroni é uma crítica velada e inteligente a alguns trechos da decisão de ontem, onde a corte suprema faz uma “média” com o Clarin através de críticas genéricas ao governo. Em editorial do Página 12, Mario Wainfeld, observou que esses trechos constituem o que se chama, no jargão jurídico, “obiter dictum”, enunciados gerais sem relação necessária lógica com a decisão final.
Zaffaroni deixou claro o seguinte: não é função do Judiciário avaliar se a lei é boa ou ruim (isso é função do Congresso), ou se o governo é bom ou ruim (isso é função do eleitor), mas simplesmente analisar a constitucionalidade da lei.
Zaffaroni também informou que a lei pode e deve ser aplicada imediatamente, já que o tribunal descartou o pedido do Clarin sobre a necessidade de mais prazos.
Alguns articulistas do Página 12 consideram que o Clarín, tendo perdido a guerra, apelará agora para uma espécie de guerra de guerrilhas, tentando ganhar o máximo de tempo.
Na festa armada na Praça do Congresso, os discursos falavam em vitória na “mãe de todas as batalhas”, e comemoravam o fim de um dos últimos entulhos da ditadura.
Martin Sabbatella, deputado kircherista, também presente ao festejo, disse que a lei é fundamental para que “um grupo não queira manipular a opinião pública para condicionar os poderes públicos”.
Alguns jovens entrevistados pelo Página 12 diziam que aquele era “o dia mais feliz de suas vidas”. A praça do Congresso encheu-se de gente com bandeiras, cantarolando marchas divertidas contra o Clarin e canções clássicas do peronismo, bebendo cerveja, vinho, e comendo choripáns (sanduíche de linguiça).
No Brasil, o jornal O Globo noticiou a derrota do Clarín numa matéria curta e mau humorada. Os platinados certamente estão perplexos com o surgimento de uma jurisprudência antimonopólica na América do Sul.
Os movimentos que lutam pela democratização da mídia, no entanto, ganham um novo ânimo, porque a validação da Ley dos Medios promove uma discreta, mas relevante, mudança na correlação de forças num debate até agora travado pelo Clarín brasileiro, as Organizações Globo. Que tem, diga-se de passagem, uma presença na cultura brasileira e no processo político bem mais perniciosa que o Clarín.
O núcleo Barão de Itararé do Rio de Janeiro e o blog Cafezinho estão estudando a organização de uma grande festa em homenagem à vitória da Ley dos Medios. Haverá rock contemporâneo argentino, muito Carlos Gardel, cervejas Quilmes e churrasco. Se rolar, avisarei por aqui!
A vitória da democracia argentina, com a aprovação da Ley dos Medios pela suprema corte, se reflete em todo o continente, onde grupos privados de mídia, fortalecidos à sombra de ditaduras e com apoio do imperialismo, tornaram-se a principal força política de oposição aos governos progressistas da região.
Não é o caso de dizer que estes grupos não tem direito de ser oposição. Nem que os governos são perfeitos e não merecem ser criticados. Ao contrário. É salutar que haja oposição midiática aos governos. E todo governo tem de ser duramente supervisionado ou mesmo criticado pela imprensa de seu país.
O problema é que todos esses grupos consolidaram-se em períodos de totalitarismo, quando as vozes dissidentes foram silenciadas pela força bruta ou pelo asfixiamento financeiro. Quando a democracia renasce na América Latina, eles são os únicos sobreviventes num ambiente devastado. Esses gigantes poderosos, ainda apoiados por agências norte-americanas, abusaram de sua força para influenciar o processo de redemocratização, impondo leis e elegendo seus candidatos. Assim que a década negra do neoliberalismo, quando a pobreza e a desigualdade de renda atingem seus pontos culminantes, foram também a década de ouro da grande mídia sul-americana, alinhada ao rentismo bilionário que sugava o sangue dos trabalhadores do continente.
Quando o jogo se inverte, e os povos aprendem a usar o voto para derrubar governantes que não exerciam políticas em seu benefício, esses grupos aderem à oposição.
Entretanto, repito, o problema não é seu oposicionismo, e sim o ambiente de monopólio, sem leis, em que esses gigantes operam.
A Argentina, porém, mostrou ao continente que é possível reagir à truculência da mídia. A aprovação da Ley dos Medios, em 2009, e sua validação total, esta semana, ajudam a trazer prestígio à política partidária e parlamentar.
Na decisão em que avalizaram a constitucionalidade da Ley dos Medios, inclusive os pontos contestados pelo Clarín, os juízes enfatizaram alguns pontos fundamentais nessa questão:
“Os meios de comunicação tem um papel relevante na formação do discurso público, motivo pelo qual o direito do Estado de regular o setor é inquestionável”.
Uma passagem, citando o direito internacional sobre o tema, atrapalhará a tentativa do Clarín de levar a decisão aos tribunais internacionais. Diz o trecho, citando a Declaração sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: “os meios de comunicação têm um poder inegável na formação cultural, política, religiosa, de todos os habitantes. Se estes meios são controlados por um reduzido número de indivíduos, ou por um só, cria-se uma sociedade onde um reduzido número de pessoas exercem o controle sobre a informação e, direta ou indiretamente, a opinião que recebe o resto da população. Esta carência de pluralidade na informação é um sério obstáculo ao fundamento da democracia”.
Por minha conta, acrescento outro trecho do mesmo documento:
“Os monopólios ou oligopólios na propriedade e controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis anti-monopólio, uma vez que conspiram contra a democracia ao restringirem a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à informação.”
Raúl Zaffaroni, um dos juízes que votaram em favor da lei, em entrevista ao Página 12, observa que na Alemanha há regras bem mais duras contra o monopólio midiático.
“A regulação desta lei é muito mais tranquila que, por exemplo, a alemã. Não te impede de possuir um jornal e um canal de tv ao mesmo tempo. Há outras que o proíbem. E não se mete com a imprensa escrita, restringindo-se aos meios audiovisuais”.
Zaffaroni explica que a decisão representa um avanço “transcendental para nossa cultura, em matéria de mídia e monopólios, se se quer conservar a individualidade cultural. Nossa cultura é plural, com origem pluriétnica, onde convivem subculturas muito diferentes, sobre uma base de relativa tolerância. Os meios condicionam tudo, não são apenas capazes de condicionar uma eleição, como constroem realidades e determinam condutas. A decisão tem um valor culturalmente histórico”.
Indagado pelo jornal se achava, junto com seus colegas, que a agência federal encarregada de regular os meios de comunicação do país, deveria ser independente, tendo como referência a “norte-americana”, Zaffaroni saiu-se com uma resposta que deveria servir de lição para todos os juízes do mundo que acreditam na democracia:
“Bem, a lei foi votada pelo Congresso, se um dia eu for deputado, pensarei sobre isso, agora não é nossa função.”
Esta declaração de Zaffaroni é uma crítica velada e inteligente a alguns trechos da decisão de ontem, onde a corte suprema faz uma “média” com o Clarin através de críticas genéricas ao governo. Em editorial do Página 12, Mario Wainfeld, observou que esses trechos constituem o que se chama, no jargão jurídico, “obiter dictum”, enunciados gerais sem relação necessária lógica com a decisão final.
Zaffaroni deixou claro o seguinte: não é função do Judiciário avaliar se a lei é boa ou ruim (isso é função do Congresso), ou se o governo é bom ou ruim (isso é função do eleitor), mas simplesmente analisar a constitucionalidade da lei.
Zaffaroni também informou que a lei pode e deve ser aplicada imediatamente, já que o tribunal descartou o pedido do Clarin sobre a necessidade de mais prazos.
Alguns articulistas do Página 12 consideram que o Clarín, tendo perdido a guerra, apelará agora para uma espécie de guerra de guerrilhas, tentando ganhar o máximo de tempo.
Na festa armada na Praça do Congresso, os discursos falavam em vitória na “mãe de todas as batalhas”, e comemoravam o fim de um dos últimos entulhos da ditadura.
Martin Sabbatella, deputado kircherista, também presente ao festejo, disse que a lei é fundamental para que “um grupo não queira manipular a opinião pública para condicionar os poderes públicos”.
Alguns jovens entrevistados pelo Página 12 diziam que aquele era “o dia mais feliz de suas vidas”. A praça do Congresso encheu-se de gente com bandeiras, cantarolando marchas divertidas contra o Clarin e canções clássicas do peronismo, bebendo cerveja, vinho, e comendo choripáns (sanduíche de linguiça).
No Brasil, o jornal O Globo noticiou a derrota do Clarín numa matéria curta e mau humorada. Os platinados certamente estão perplexos com o surgimento de uma jurisprudência antimonopólica na América do Sul.
Os movimentos que lutam pela democratização da mídia, no entanto, ganham um novo ânimo, porque a validação da Ley dos Medios promove uma discreta, mas relevante, mudança na correlação de forças num debate até agora travado pelo Clarín brasileiro, as Organizações Globo. Que tem, diga-se de passagem, uma presença na cultura brasileira e no processo político bem mais perniciosa que o Clarín.
O núcleo Barão de Itararé do Rio de Janeiro e o blog Cafezinho estão estudando a organização de uma grande festa em homenagem à vitória da Ley dos Medios. Haverá rock contemporâneo argentino, muito Carlos Gardel, cervejas Quilmes e churrasco. Se rolar, avisarei por aqui!
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