Belíssimo artigo de Roberto Amaral.
Um artigo que nos aproxima da história, esta delicada moça de olhar irônico que caminha tranquilamente sobre montanhas de cadáveres.
O conhecimento da história nos proporciona uma experiência quase apavorante diante do cenário de crise, como assistir, consciente, a própria cirurgia cardíaca.
Há algo que pode servir para nos acalmar, o único fator constante em meio às turbulências políticas: a nossa consciência.
Uma consciência guiada apenas pela história, assim como Dante, na famosa pintura de Delacroix, amparava-se apenas em Virgílio.
Enquanto singra o rio infernal, em meio à tempestade medonha, assediado pelos espíritos condenados que tentam virar o barco, um assustado Dante apoia-se no glorioso poeta romano, assim como nós, angustiados diante de nossas tormentas políticas, nos agarramos às lições da história.
Há um barqueiro, Caronte, conduzindo o barco em silêncio. Quem seria o Caronte de hoje? A presidenta?
Igualmente silenciosa, ela nos conduz às portas do inferno?
Os espíritos condenados são os marchadeiros do impeachment e seus asseclas nas redes sociais, meros zumbis de uma poderosa máquina de manipulação da opinião pública.
É sempre um pouco triste pensar que o nosso país, quando parecia finalmente avistar, não muito longe, a terra firme de uma longeva e sólida prosperidade, é tragado pela tempestade de crises políticas um tanto artificiais (e tanto mais furiosas quanto mais artificiais o são), provocadas por grupos de interesse opostos ao nosso sonho de liberdade e soberania.
Jamais deveríamos ter pensado que seria fácil.
Cometemos tantos erros!
No entanto, não adianta nos deixarmos esmagar pelo pessimismo.
O povo brasileiro vencerá essas batalhas. Pode demorar um pouco mais do que o planejado, mas vencerá.
Será uma vitória mais madura, mais consciente de si mesma,
Quando vencermos essas batalhas, tanto contra os interesses externos, quanto contra o egoísmo doméstico, ambos representados pela mídia corporativa, emergiremos como uma sociedade mais experiente e mais forte.
O Brasil de hoje se tornou grande e complexo demais para sucumbir por muito tempo aos desmandos de uma imprensa decadente, afeita a golpes e a conspirações espúrias.
O suicídio de Vargas, assim como a vitória de Lula, apenas tem postergado o enfrentamento inevitável entre dois Brasis, aquele dos privilégios, dos opressores, dos barões da mídia, e o Brasil dos trabalhadores.
A vitória final será dos trabalhadores, mas achávamos que ela estava logo ali, ao alcance da mão, quando a presidenta Dilma terminasse de inaugurar as grandes obras de infra-estrutura.
Não imaginaríamos que os barões da mídia e seus tentáculos dentro do Estado fossem capazes de covardia tão grotesca: interromper as grandes obras, atrasar o nosso desenvolvimento, tentar desmantelar a empresa que lidera todo esse processo, a Petrobrás.
Com seus bilhões depositados em bancos no exterior, eles não têm nada a perder com a crise no Brasil. Ao contrário, ganham com a desvalorização da moeda nacional. Não se desesperam com a crise, e tem a seu dispor o aparato midiático mais concentrado e mais poderoso do mundo.
A história nos ensina, todavia, que é nos momentos de crise que a consciência política se aprofunda, não no mesmo ritmo para toda sociedade, mas em camadas crescentes.
A nossa mídia, ao fazer uma aposta tão pesada, tão arriscada, pode estar apenas abreviando a sua morte inevitável.
Vamos ao artigo de Amaral.
*****
O que Vargas ensina para a política atual
Por Roberto Amaral, ex-presidente do PSB (derrubado pela Globo).
Todo príncipe tem inimigos, porque, em regra, governar é tomar partido, por A ou por B, por isso ou por aquilo e atrás de tudo há, sempre, um interesse. Governar, é, pois, administrar interesses. Os inimigos são inevitavelmente nomeados quando o Príncipe escolhe com quem e para quem governar, ou, escolhendo não escolher, caminha indeciso entre os extremos da sociedade de classes e os interesses conflitados dos diversos grupos econômicos e seus tentáculos políticos.
Getúlio fez-se defensor dos pobres e assim despertou a desconfiança da classe média e o mau-humor dos ricos; Miguel Arraes, governador de Pernambuco, atraiu o desagrado dos usineiros e donos da terra, porque assumiu como seus os interesses dos camponeses; pêndulo político, Jânio Quadros decidiu-se pelos empresários e adotou uma política externa independente, com o que ganhou a desconfiança dos trabalhadores e perdeu o apoio dos conservadores.
Casos há em que o prestígio do governante se desgasta na divisão interclasses, pois não é raro o conflito revelar-se entre os setores produtivos e o sistema financeiro. Outras vezes, ao tentar atender igualmente aos interesses de gregos e de troianos (digamos assim: dos operários, da classe média e do grande capital), o Príncipe, pouco cioso na defesa da coisa pública, termina perdendo a confiança de todos e por todos é desamado. Collor, sem clara base social ou econômica de apoio, sem partidos, terminou seu mandato como sabemos.
Nesses casos, quando mais carecia de apoio, o Príncipe não encontrou seus defensores naturais.
O inimigo do príncipe é sempre um grupo de interesse, organizado ou não em torno de um partido. Pode ser uma das várias frações do grande capital, ou os grandes proprietários. O inimigo pode estar dentro ou fora dos muros da cidade. Pode ser um adversário externo, o que, em regra, leva à unidade dos súditos em torno do seu líder, adiando disputas domésticas. Assim, Vargas, que acalentara a expectativa de apoiar o Eixo, unificaria a nação em 1942 com a declaração de guerra à Alemanha, e, mais recentemente, a última ditadura argentina prorrogou sua própria agonia com o massacre de seus praças nas Malvinas. Terminadas as guerras, Vargas é deposto e a Argentina, redemocratizada.
Muitas vezes, esse inimigo – interno ou externo – precisa ser inventado para poder garantir a coesão doméstica, quando o soberano percebe a existência de crise em suas bases. Como justificativa do golpe de Estado que implantou a ditadura do “Estado Novo”, os militares brasileiros inventaram em 1937 a iminência de um levante comunista, brandindo estudo elaborado pelo próprio serviço secreto do Exército (refiro-me ao “Plano Cohen” redigido pelo naquela altura capitão Mourão, por ordem de seu comandante, gal. Goes Monteiro). Em 1954 os mesmos adversários, agora para derrubar o presidente constitucional, alegaram a existência de um ‘mar de lama’ inundando os porões do Palácio do Catete, com o que a oposição levantara a classe-média contra Vargas.
Juscelino Kubitschek reencontrou-se com as bases populares que o haviam elegido em 1955 quando seu ministro da Fazenda, conservador, se indispôs com o FMI. Fidel Castro, porém, não precisou inventar a invasão da Baía dos Porcos e o bloqueio econômico-político dos EUA para unificar o povo cubano. Praticamente derrotado, o Bush filho conquistou uma reeleição consagradora beneficiando-se do ataque às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001.
O pior adversário, no entanto, é sempre o que está dentro de casa, faz parte do governo, frequenta os palácios ou integra as fileiras do exército. Dezessete anos passados da instalação do ‘Estado novo’, Vargas lamentaria o concurso dos inimigos íntimos para sua tragédia pessoal, ao presidir, na madrugada de 23 para 24 de agosto a última reunião de seu ministério. Sun Tzu, muitos séculos antes de Mazarini, Pombal e Maquiavel, ensinou que, sem harmonia no Estado, não adianta ter exército; sem harmonia no exército não pode haver formação de batalha. Harmonia não é apenas a paz aparente da ordem interna, mas é também a disciplinada eleição do objetivo comum, aquele que torna secundários todos os demais projetos. As tropas, formando um corpo unido, impedem que os bravos avancem sozinhos (e sejam aniquilados) e que os covardes abandonem a luta, como fizeram os soldados de Ricardo III, deixando-o à mercê de sua má sorte. O Rei Lear foi condenado à tragédia quando, embriagado pelos elogios falsos das filhas cínicas, dividiu o reino da Bretanha.
O que é, porém, harmonia interna? Ora não se trata de conceito de aplicação universal e pacificada.
Getúlio Vargas afagou as classes empresariais e com elas também terçou armas; afagou os trabalhadores e por eles foi amado, afagou amigos e inimigos, foi amado e odiado. Governou sem grandes pesadelos de 1930 a 1945. Mas quando a fortuna se voltou contra si, não lhe foi possível enfrentar a adversidade, pois emergira a dissensão em sua retaguarda: traído dentro do Palácio do Catete (presidência conquistada legitimamente em processo eleitoral democrático), sem controle sobre ações criminosas supostamente praticadas em seu nome e no seu entorno, sob o fogo de uma imprensa vituperina e de uma oposição reacionária clamando junto aos quartéis indisciplinados pelo golpe de Estado, descobriu que não contava com seus ministros: estavam muitos deles entre os conspiradores, negociando sua renúncia. Inclusive o vice-presidente Café Filho. Tardiamente, Vargas compreendeu o significado do isolamento a que fora condenado: sua solidão político-afetiva era uma metáfora de seu distanciamento da sociedade.
Os militares, aliados umas vezes e outras muitas conduzidos pelos líderes da oposição biliar e pela campanha dos grandes meios de comunicação, ao invés de defenderem o mandato de seu comandante, imperativo constitucional, conspiravam contra o Presidente, cujo partido não foi capaz de protegê-lo contra os ataques inimigos, sem limites na injúria, na calúnia e na difamação. Quedou-se acuado como o tatu-bola, enroscado em si mesmo. Ator, sujeito da História desde pelo menos 1930, líder dos trabalhadores, Vargas escolheu entregar-se ao império das circunstâncias. De nada lhe valera a base trabalhista – construída meticulosamente durante o período ditatorial – que não acorreu em defesa de seu mandato. Já havendo perdido o apoio da classe-média, desde sempre incomodada com seus namoros com os ‘marmiteiros’, via agora as massas populares – seu último esteio – também influenciadas pela onda moralista que percorria todos os escaninhos da sociedade, assustada pela campanha de imprensa com ecos no Congresso. Seus fiéis adversários ideológicos de direita encontraram-se nas ruas com o oportunismo e a incompreensão histórica da esquerda comunista, que também decidira fazer-lhe oposição.
Após campanha eleitoral marcada pelo nacionalismo e um sem número de teses comuns à esquerda de então – defesa da Petrobras e do monopólio estatal do petróleo, controle das remessas de lucros ao exterior, aumento real do salário mínimo, participação dos trabalhadores nos lucros das empresas etc. –, Vargas assumira a Presidência (1951) abraçando projetos progressistas e montara, para executá-los, um ministério de direita.
Seria, porém, traído pelo varguismo e a História, agora ingrata, não lhe deu tempo para a auto-crítica.
O anúncio do suicídio inesperado (embora reiteradamente anunciado em sua biografia), levantou como um sopro mágico as massas adormecidas que, como formigueiro atacado, ocuparam as ruas, em desespero, anárquicas, sem rumo, sem alvo, sem perspectivas. Sem azimute político, sem liderança, avançaram ao mesmo tempo sobre os jornais da imprensa golpista e da esquerda comunista, identificada com o golpismo. O despertar da consciência coletiva chegara muito tarde, e agora a mobilização era só uma catarse coletiva inaproveitada, que logo levaria de volta as massas ensandecidas para o sossego medíocre.
Outro príncipe, na História do mesmo país, ele também amado pelos trabalhadores e pelos pobres, viu-se igualmente sob o foco de terríveis ataques orquestrados entre a oposição partidária e os meios de comunicação de massa, agora poderosíssimos. Não lhe acorreu o socorro dos partidos de sua base de apoio, e mesmo o partido que fundara mostrava-se abatido em face das acusações que pesavam sobre seus membros. Ao contrário de muitos de seus antecessores, porém, o príncipe lembrou-se do Marquês de Pombal e decidiu romper com os áulicos, e trocou a solidão do poder pelo contato com as massas. Simplesmente optou pela Política, decidindo exercê-la na plenitude possível. Foi ouvido pelo país e emergiu vitorioso, nas eleições que se seguiram.
Um artigo que nos aproxima da história, esta delicada moça de olhar irônico que caminha tranquilamente sobre montanhas de cadáveres.
O conhecimento da história nos proporciona uma experiência quase apavorante diante do cenário de crise, como assistir, consciente, a própria cirurgia cardíaca.
Há algo que pode servir para nos acalmar, o único fator constante em meio às turbulências políticas: a nossa consciência.
Uma consciência guiada apenas pela história, assim como Dante, na famosa pintura de Delacroix, amparava-se apenas em Virgílio.
Enquanto singra o rio infernal, em meio à tempestade medonha, assediado pelos espíritos condenados que tentam virar o barco, um assustado Dante apoia-se no glorioso poeta romano, assim como nós, angustiados diante de nossas tormentas políticas, nos agarramos às lições da história.
Há um barqueiro, Caronte, conduzindo o barco em silêncio. Quem seria o Caronte de hoje? A presidenta?
Igualmente silenciosa, ela nos conduz às portas do inferno?
Os espíritos condenados são os marchadeiros do impeachment e seus asseclas nas redes sociais, meros zumbis de uma poderosa máquina de manipulação da opinião pública.
É sempre um pouco triste pensar que o nosso país, quando parecia finalmente avistar, não muito longe, a terra firme de uma longeva e sólida prosperidade, é tragado pela tempestade de crises políticas um tanto artificiais (e tanto mais furiosas quanto mais artificiais o são), provocadas por grupos de interesse opostos ao nosso sonho de liberdade e soberania.
Jamais deveríamos ter pensado que seria fácil.
Cometemos tantos erros!
No entanto, não adianta nos deixarmos esmagar pelo pessimismo.
O povo brasileiro vencerá essas batalhas. Pode demorar um pouco mais do que o planejado, mas vencerá.
Será uma vitória mais madura, mais consciente de si mesma,
Quando vencermos essas batalhas, tanto contra os interesses externos, quanto contra o egoísmo doméstico, ambos representados pela mídia corporativa, emergiremos como uma sociedade mais experiente e mais forte.
O Brasil de hoje se tornou grande e complexo demais para sucumbir por muito tempo aos desmandos de uma imprensa decadente, afeita a golpes e a conspirações espúrias.
O suicídio de Vargas, assim como a vitória de Lula, apenas tem postergado o enfrentamento inevitável entre dois Brasis, aquele dos privilégios, dos opressores, dos barões da mídia, e o Brasil dos trabalhadores.
A vitória final será dos trabalhadores, mas achávamos que ela estava logo ali, ao alcance da mão, quando a presidenta Dilma terminasse de inaugurar as grandes obras de infra-estrutura.
Não imaginaríamos que os barões da mídia e seus tentáculos dentro do Estado fossem capazes de covardia tão grotesca: interromper as grandes obras, atrasar o nosso desenvolvimento, tentar desmantelar a empresa que lidera todo esse processo, a Petrobrás.
Com seus bilhões depositados em bancos no exterior, eles não têm nada a perder com a crise no Brasil. Ao contrário, ganham com a desvalorização da moeda nacional. Não se desesperam com a crise, e tem a seu dispor o aparato midiático mais concentrado e mais poderoso do mundo.
A história nos ensina, todavia, que é nos momentos de crise que a consciência política se aprofunda, não no mesmo ritmo para toda sociedade, mas em camadas crescentes.
A nossa mídia, ao fazer uma aposta tão pesada, tão arriscada, pode estar apenas abreviando a sua morte inevitável.
Vamos ao artigo de Amaral.
*****
O que Vargas ensina para a política atual
Por Roberto Amaral, ex-presidente do PSB (derrubado pela Globo).
Todo príncipe tem inimigos, porque, em regra, governar é tomar partido, por A ou por B, por isso ou por aquilo e atrás de tudo há, sempre, um interesse. Governar, é, pois, administrar interesses. Os inimigos são inevitavelmente nomeados quando o Príncipe escolhe com quem e para quem governar, ou, escolhendo não escolher, caminha indeciso entre os extremos da sociedade de classes e os interesses conflitados dos diversos grupos econômicos e seus tentáculos políticos.
Getúlio fez-se defensor dos pobres e assim despertou a desconfiança da classe média e o mau-humor dos ricos; Miguel Arraes, governador de Pernambuco, atraiu o desagrado dos usineiros e donos da terra, porque assumiu como seus os interesses dos camponeses; pêndulo político, Jânio Quadros decidiu-se pelos empresários e adotou uma política externa independente, com o que ganhou a desconfiança dos trabalhadores e perdeu o apoio dos conservadores.
Casos há em que o prestígio do governante se desgasta na divisão interclasses, pois não é raro o conflito revelar-se entre os setores produtivos e o sistema financeiro. Outras vezes, ao tentar atender igualmente aos interesses de gregos e de troianos (digamos assim: dos operários, da classe média e do grande capital), o Príncipe, pouco cioso na defesa da coisa pública, termina perdendo a confiança de todos e por todos é desamado. Collor, sem clara base social ou econômica de apoio, sem partidos, terminou seu mandato como sabemos.
Nesses casos, quando mais carecia de apoio, o Príncipe não encontrou seus defensores naturais.
O inimigo do príncipe é sempre um grupo de interesse, organizado ou não em torno de um partido. Pode ser uma das várias frações do grande capital, ou os grandes proprietários. O inimigo pode estar dentro ou fora dos muros da cidade. Pode ser um adversário externo, o que, em regra, leva à unidade dos súditos em torno do seu líder, adiando disputas domésticas. Assim, Vargas, que acalentara a expectativa de apoiar o Eixo, unificaria a nação em 1942 com a declaração de guerra à Alemanha, e, mais recentemente, a última ditadura argentina prorrogou sua própria agonia com o massacre de seus praças nas Malvinas. Terminadas as guerras, Vargas é deposto e a Argentina, redemocratizada.
Muitas vezes, esse inimigo – interno ou externo – precisa ser inventado para poder garantir a coesão doméstica, quando o soberano percebe a existência de crise em suas bases. Como justificativa do golpe de Estado que implantou a ditadura do “Estado Novo”, os militares brasileiros inventaram em 1937 a iminência de um levante comunista, brandindo estudo elaborado pelo próprio serviço secreto do Exército (refiro-me ao “Plano Cohen” redigido pelo naquela altura capitão Mourão, por ordem de seu comandante, gal. Goes Monteiro). Em 1954 os mesmos adversários, agora para derrubar o presidente constitucional, alegaram a existência de um ‘mar de lama’ inundando os porões do Palácio do Catete, com o que a oposição levantara a classe-média contra Vargas.
Juscelino Kubitschek reencontrou-se com as bases populares que o haviam elegido em 1955 quando seu ministro da Fazenda, conservador, se indispôs com o FMI. Fidel Castro, porém, não precisou inventar a invasão da Baía dos Porcos e o bloqueio econômico-político dos EUA para unificar o povo cubano. Praticamente derrotado, o Bush filho conquistou uma reeleição consagradora beneficiando-se do ataque às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001.
O pior adversário, no entanto, é sempre o que está dentro de casa, faz parte do governo, frequenta os palácios ou integra as fileiras do exército. Dezessete anos passados da instalação do ‘Estado novo’, Vargas lamentaria o concurso dos inimigos íntimos para sua tragédia pessoal, ao presidir, na madrugada de 23 para 24 de agosto a última reunião de seu ministério. Sun Tzu, muitos séculos antes de Mazarini, Pombal e Maquiavel, ensinou que, sem harmonia no Estado, não adianta ter exército; sem harmonia no exército não pode haver formação de batalha. Harmonia não é apenas a paz aparente da ordem interna, mas é também a disciplinada eleição do objetivo comum, aquele que torna secundários todos os demais projetos. As tropas, formando um corpo unido, impedem que os bravos avancem sozinhos (e sejam aniquilados) e que os covardes abandonem a luta, como fizeram os soldados de Ricardo III, deixando-o à mercê de sua má sorte. O Rei Lear foi condenado à tragédia quando, embriagado pelos elogios falsos das filhas cínicas, dividiu o reino da Bretanha.
O que é, porém, harmonia interna? Ora não se trata de conceito de aplicação universal e pacificada.
Getúlio Vargas afagou as classes empresariais e com elas também terçou armas; afagou os trabalhadores e por eles foi amado, afagou amigos e inimigos, foi amado e odiado. Governou sem grandes pesadelos de 1930 a 1945. Mas quando a fortuna se voltou contra si, não lhe foi possível enfrentar a adversidade, pois emergira a dissensão em sua retaguarda: traído dentro do Palácio do Catete (presidência conquistada legitimamente em processo eleitoral democrático), sem controle sobre ações criminosas supostamente praticadas em seu nome e no seu entorno, sob o fogo de uma imprensa vituperina e de uma oposição reacionária clamando junto aos quartéis indisciplinados pelo golpe de Estado, descobriu que não contava com seus ministros: estavam muitos deles entre os conspiradores, negociando sua renúncia. Inclusive o vice-presidente Café Filho. Tardiamente, Vargas compreendeu o significado do isolamento a que fora condenado: sua solidão político-afetiva era uma metáfora de seu distanciamento da sociedade.
Os militares, aliados umas vezes e outras muitas conduzidos pelos líderes da oposição biliar e pela campanha dos grandes meios de comunicação, ao invés de defenderem o mandato de seu comandante, imperativo constitucional, conspiravam contra o Presidente, cujo partido não foi capaz de protegê-lo contra os ataques inimigos, sem limites na injúria, na calúnia e na difamação. Quedou-se acuado como o tatu-bola, enroscado em si mesmo. Ator, sujeito da História desde pelo menos 1930, líder dos trabalhadores, Vargas escolheu entregar-se ao império das circunstâncias. De nada lhe valera a base trabalhista – construída meticulosamente durante o período ditatorial – que não acorreu em defesa de seu mandato. Já havendo perdido o apoio da classe-média, desde sempre incomodada com seus namoros com os ‘marmiteiros’, via agora as massas populares – seu último esteio – também influenciadas pela onda moralista que percorria todos os escaninhos da sociedade, assustada pela campanha de imprensa com ecos no Congresso. Seus fiéis adversários ideológicos de direita encontraram-se nas ruas com o oportunismo e a incompreensão histórica da esquerda comunista, que também decidira fazer-lhe oposição.
Após campanha eleitoral marcada pelo nacionalismo e um sem número de teses comuns à esquerda de então – defesa da Petrobras e do monopólio estatal do petróleo, controle das remessas de lucros ao exterior, aumento real do salário mínimo, participação dos trabalhadores nos lucros das empresas etc. –, Vargas assumira a Presidência (1951) abraçando projetos progressistas e montara, para executá-los, um ministério de direita.
Seria, porém, traído pelo varguismo e a História, agora ingrata, não lhe deu tempo para a auto-crítica.
O anúncio do suicídio inesperado (embora reiteradamente anunciado em sua biografia), levantou como um sopro mágico as massas adormecidas que, como formigueiro atacado, ocuparam as ruas, em desespero, anárquicas, sem rumo, sem alvo, sem perspectivas. Sem azimute político, sem liderança, avançaram ao mesmo tempo sobre os jornais da imprensa golpista e da esquerda comunista, identificada com o golpismo. O despertar da consciência coletiva chegara muito tarde, e agora a mobilização era só uma catarse coletiva inaproveitada, que logo levaria de volta as massas ensandecidas para o sossego medíocre.
Outro príncipe, na História do mesmo país, ele também amado pelos trabalhadores e pelos pobres, viu-se igualmente sob o foco de terríveis ataques orquestrados entre a oposição partidária e os meios de comunicação de massa, agora poderosíssimos. Não lhe acorreu o socorro dos partidos de sua base de apoio, e mesmo o partido que fundara mostrava-se abatido em face das acusações que pesavam sobre seus membros. Ao contrário de muitos de seus antecessores, porém, o príncipe lembrou-se do Marquês de Pombal e decidiu romper com os áulicos, e trocou a solidão do poder pelo contato com as massas. Simplesmente optou pela Política, decidindo exercê-la na plenitude possível. Foi ouvido pelo país e emergiu vitorioso, nas eleições que se seguiram.
0 comentários:
Postar um comentário