Por Sérgio Storch, no site Outras Palavras:
A nomeação de um novo embaixador israelense para o Brasil tornou-se queda de braço entre os dois governos, nos bastidores e na mídia, e passou a envolver outros atores. O caso escapa à sua trivialidade aparente. A velha mídia não vem mostrando as conexões do episódio com outros, semelhantes e concomitantes. De forma quase absoluta, os colunistas têm tratado cada caso isoladamente, e assim sacrificam o poder explicativo que só emerge quando eles são vistos em conjunto.
A diplomacia israelense tem sofrido severamente sob os governos de Benjamin Netanyahu (1), que neste seu terceiro mandato acumula o cargo de ministro das Relações Exteriores. Desde 2009, ele aproveita de todas as oportunidades para substituir diplomatas de carreira por figuras de direita e extrema direita. Seus movimentos para fora atendem também objetivos domésticos, pois permitem-lhe livrar-se de lideranças que o incomodam nas pequenas disputas da politicagem interna do seu próprio partido, o Likud, e na distribuição de poder com outros partidos de sua coalizão.
Em 5 de agosto, o embaixador de Israel no Brasil, Reda Mansour, da minoria étnica drusa, que é diplomata de carreira com trânsito em todos os setores, comunicou pelas redes sociais que só permaneceria mais alguns meses, alegando razões familiares. Dias antes fora divulgada a nomeação de Dani Dayan, o principal líder dos 500 mil moradores das colônias israelenses montadas nos territórios palestinos ocupados, na Cisjordânia. Seu pensamento, expresso em artigo do New York Times (2) em 2014, propõe explicitamente a anexação do que a novilíngua criada pela direita israelense chama de Judeia e Samaria, em vez de Cisjordânia.
Detalhe que escapou à maior parte dos analistas: na mesma semana Netanyahu designou o falcão Danny Danon para a representação na ONU, e também, para desagrado da comunidade judaica italiana, designou Fiamma Nirenstein, ex-parlamentar italiana aliada a Berlusconi, para a embaixada na Itália. Esses três fatos concomitantes não devem ser vistos de forma isolada. Manifestam a óbvia determinação de Netanyahu em colocar a pá de cal na solução Dois Estados, pois esses três defendem a anexação da Cisjordânia, que é a região onde, por acordos internacionais, deverá ser instalado o Estado Palestino, que já existe sob a forma provisória de Autoridade Nacional Palestina desde os acordos de Oslo, em 1993.
No caso do Brasil, a nomeação, sem consulta prévia protocolar ao governo brasileiro, deparou-se com uma linha de resistência, com reação nos bastidores do Itamaraty e de setores da comunidade judaica brasileira, em articulação com lideranças da oposição israelense. O motivo é forte: um embaixador que inevitavelmente será visto pela sociedade brasileira como identificado com uma política de ocupação que o Brasil repudia poderá até aumentar as pressões sociais sobre o governo, no sentido de reduzir a intensidade das relações com Israel. Além disso, fortalecerá aqui o movimento internacional por boicote e sanções a Israel (BDS), além de constranger os muitos membros da comunidade que são plenamente integrados na sociedade brasileira.
Alguns ex-diplomatas israelenses que atuam na oposição, que é forte (no Parlamento a oposição tem 59 dos 120 assentos), decidiram apelar ao governo brasileiro para que não aceite o embaixador. É forte na sociedade israelense a crítica à ocupação ilegal de territórios palestinos, e parte expressiva dos formadores de opinião defende uma paz com justiça como único caminho para a reconciliação entre os dois povos, e para o fortalecimento de ambos em meio às intempéries do Oriente Médio. Esses ex-diplomatas vêm sendo massacrados na mídia desde a semana passada, inclusive por algumas lideranças dos partidos de centro Avodá e Yesh Atid. Uma colunista do Jerusalem Postacusa-os de subversão da democracia israelense (3). A apelação de tipo macartista vem crescendo, dividindo o país, e continua nesta semana. Numa sociedade que a História tornou muito sensível ao chamamento por unidade para a autoproteção, essas acusações são gravíssimas.
Entretanto, o que os colunistas da grande mídia deixam de observar é que esses ex-diplomatas são apenas a ponta de um iceberg que deita raízes profundas na sociedade israelense. Nos últimos cinco anos, o contralobby JStreet, da comunidade judaica norte-americana, vem levando aos Estados Unidos militares de altas patentes e oficiais dos serviços de segurança de Israel para exporem a congressistas e ao governo Obama os perigos que veem ao futuro de Israel com as políticas de Netanyahu. Trata-se de uma luta dura entre setores que são ambos fortes em Israel, e que extravasa para as comunidades judaicas, especialmente para a sociedade norte-americana, onde o lobby pró-Netanyahu é fortemente alinhado aos interesses dos neocons do Partido Republicano e com a indústria bélica.
A visão das lideranças intelectuais da metade da sociedade israelense que se opõe a esse governo é que Israel corre perigo de resvalar definitivamente para um regime não-democrático, pois vêm se tornando mais frequentes e mais graves os incidentes de violência política e racial. E o sentimento em Israel contra a colonização nos territórios ocupados não é recente – vide o artigo sobre a opinião de Itzhak Rabin, já em 1976 (4).
Prossegue, nos bastidores, o braço de ferro nos bastidores com o Brasil, e os detalhes na matéria no Jerusalem Post evidenciam que o jogo interno em Israel é muito mais complexo, havendo resistência à escalada da direita também no Judiciário e no Ministério Público. Nada estranho para nós, pois a complexidade dessa dinâmica pode ser assemelhada ao que temos observado no Brasil, com o protagonismo político de facções no Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal em articulação com a mídia e os partidos políticos.
A “subversão” dessa democracia na qual crescem o racismo e a exclusão do povo palestino (veja-se notícia recente sobre a decisão de importar dezenas de milhares de trabalhadores chineses, em vez de empregar trabalhadores palestinos), pode ser vista também num contexto internacional mais amplo: o da governança de Israel pela sua direita e extrema direita, em parceria com seus parceiros neocons e da indústria bélica norte-americana, sendo o meio de campo desempenhado pelo forte lobby AIPAC (American Israel Public Affairs Committee). Ao contrário do que se costuma supor nas esquerdas, de que Israel tem poder enorme na política norte-americana, cabe considerar a hipótese inversa: a de que Israel é que tem sido usado como joguete do complexo industrial militar norte-americano através dessa coalizão de direita e extrema direita, cujo controle eleitoral tem se mostrado consistentemente eficaz através da exploração da paranoia. Sem a força dos neocons no Congresso americano, Netanyahu não teria tido a petulância de ir lá discursar contra o acordo com o Irã, em confrontação aberta com o presidente Obama. Essa hipótese é bem mais razoável: cachorros abanam rabos, e rabos não abanam os seus cachorros.
Enfim, não se trata de disputa miúda, apenas por um embaixador. Dani Dayan é um peão nesse tabuleiro. É tido como pessoa inteligente, habilidosa, respeitada por todos os setores em Israel, mas o xadrez é maior que ele. Por representar inquestionavelmente (2) a política de ocupação e defender explicitamente a anexação definitiva da Cisjordânia, mesmo que alegadamente com o fim do muro e dos checkpoints e a igualdade de direitos civis, sua aceitação no Brasil é um alto risco.
E deixo para o final a observação de que a derrota de Netanyahu nesse país, o Brasil, que um seu funcionário chamou de “anão” há apenas um ano, pode ser humilhante, por estar numa linha de continuidade da grande derrota que sofreu no Congresso americano há algumas semanas, quando a maior parte dos deputados – entre eles a maioria dos deputados judeus – jogou em favor de Obama, e contra a AIPAC e Netanyahu. Talvez tenha sido o começo do fim daquilo que aparentava ser um posicionamento monolítico dos judeus norte-americanos em relação à evolução de Israel rumo a um Estado não-democrático.
Os ventos talvez estejam mudando de direção e o Brasil pode, delicadamente, velejar a favor do vento. Nem por isso o novo embaixador que vier a ser nomeado e aceito será muito diferente, mas, como vimos, há vários motivos para não fulanizar essa questão.
Notas:
(1) “Contra mundum”: Israel’s new government is running out of friends abroad – The Economist, 23/5/15 – econ.st/1KLaK9n
(2) 'Peaceful Nonreconciliation Now”, Dani Dayan, New York Times, 8/6/14 – http://www.nytimes.com/2014/06/09/opinion/peaceful-nonreconciliation-now.html?_r=0
(3) “Column One: Israel´s democratic crisis”, Caroline Glick, Jerusalem Post, 24/9/15 http://www.jpost.com/Opinion/Column-one-Israels-democratic-crisis-419042
(4) “In 1976 interview, Rabin likens settlements to ‘cancer,’ warns of ‘apartheid’ | The Times of Israel , 25/9/15- http://bit.ly/1MP62OC
* Sérgio Storch é consultor em Planejamento, ativista de diversas causas ligadas à transformação social. Escreve, em Outras Palavras, a coluna Outro Israel.
A nomeação de um novo embaixador israelense para o Brasil tornou-se queda de braço entre os dois governos, nos bastidores e na mídia, e passou a envolver outros atores. O caso escapa à sua trivialidade aparente. A velha mídia não vem mostrando as conexões do episódio com outros, semelhantes e concomitantes. De forma quase absoluta, os colunistas têm tratado cada caso isoladamente, e assim sacrificam o poder explicativo que só emerge quando eles são vistos em conjunto.
A diplomacia israelense tem sofrido severamente sob os governos de Benjamin Netanyahu (1), que neste seu terceiro mandato acumula o cargo de ministro das Relações Exteriores. Desde 2009, ele aproveita de todas as oportunidades para substituir diplomatas de carreira por figuras de direita e extrema direita. Seus movimentos para fora atendem também objetivos domésticos, pois permitem-lhe livrar-se de lideranças que o incomodam nas pequenas disputas da politicagem interna do seu próprio partido, o Likud, e na distribuição de poder com outros partidos de sua coalizão.
Em 5 de agosto, o embaixador de Israel no Brasil, Reda Mansour, da minoria étnica drusa, que é diplomata de carreira com trânsito em todos os setores, comunicou pelas redes sociais que só permaneceria mais alguns meses, alegando razões familiares. Dias antes fora divulgada a nomeação de Dani Dayan, o principal líder dos 500 mil moradores das colônias israelenses montadas nos territórios palestinos ocupados, na Cisjordânia. Seu pensamento, expresso em artigo do New York Times (2) em 2014, propõe explicitamente a anexação do que a novilíngua criada pela direita israelense chama de Judeia e Samaria, em vez de Cisjordânia.
Detalhe que escapou à maior parte dos analistas: na mesma semana Netanyahu designou o falcão Danny Danon para a representação na ONU, e também, para desagrado da comunidade judaica italiana, designou Fiamma Nirenstein, ex-parlamentar italiana aliada a Berlusconi, para a embaixada na Itália. Esses três fatos concomitantes não devem ser vistos de forma isolada. Manifestam a óbvia determinação de Netanyahu em colocar a pá de cal na solução Dois Estados, pois esses três defendem a anexação da Cisjordânia, que é a região onde, por acordos internacionais, deverá ser instalado o Estado Palestino, que já existe sob a forma provisória de Autoridade Nacional Palestina desde os acordos de Oslo, em 1993.
No caso do Brasil, a nomeação, sem consulta prévia protocolar ao governo brasileiro, deparou-se com uma linha de resistência, com reação nos bastidores do Itamaraty e de setores da comunidade judaica brasileira, em articulação com lideranças da oposição israelense. O motivo é forte: um embaixador que inevitavelmente será visto pela sociedade brasileira como identificado com uma política de ocupação que o Brasil repudia poderá até aumentar as pressões sociais sobre o governo, no sentido de reduzir a intensidade das relações com Israel. Além disso, fortalecerá aqui o movimento internacional por boicote e sanções a Israel (BDS), além de constranger os muitos membros da comunidade que são plenamente integrados na sociedade brasileira.
Alguns ex-diplomatas israelenses que atuam na oposição, que é forte (no Parlamento a oposição tem 59 dos 120 assentos), decidiram apelar ao governo brasileiro para que não aceite o embaixador. É forte na sociedade israelense a crítica à ocupação ilegal de territórios palestinos, e parte expressiva dos formadores de opinião defende uma paz com justiça como único caminho para a reconciliação entre os dois povos, e para o fortalecimento de ambos em meio às intempéries do Oriente Médio. Esses ex-diplomatas vêm sendo massacrados na mídia desde a semana passada, inclusive por algumas lideranças dos partidos de centro Avodá e Yesh Atid. Uma colunista do Jerusalem Postacusa-os de subversão da democracia israelense (3). A apelação de tipo macartista vem crescendo, dividindo o país, e continua nesta semana. Numa sociedade que a História tornou muito sensível ao chamamento por unidade para a autoproteção, essas acusações são gravíssimas.
Entretanto, o que os colunistas da grande mídia deixam de observar é que esses ex-diplomatas são apenas a ponta de um iceberg que deita raízes profundas na sociedade israelense. Nos últimos cinco anos, o contralobby JStreet, da comunidade judaica norte-americana, vem levando aos Estados Unidos militares de altas patentes e oficiais dos serviços de segurança de Israel para exporem a congressistas e ao governo Obama os perigos que veem ao futuro de Israel com as políticas de Netanyahu. Trata-se de uma luta dura entre setores que são ambos fortes em Israel, e que extravasa para as comunidades judaicas, especialmente para a sociedade norte-americana, onde o lobby pró-Netanyahu é fortemente alinhado aos interesses dos neocons do Partido Republicano e com a indústria bélica.
A visão das lideranças intelectuais da metade da sociedade israelense que se opõe a esse governo é que Israel corre perigo de resvalar definitivamente para um regime não-democrático, pois vêm se tornando mais frequentes e mais graves os incidentes de violência política e racial. E o sentimento em Israel contra a colonização nos territórios ocupados não é recente – vide o artigo sobre a opinião de Itzhak Rabin, já em 1976 (4).
Prossegue, nos bastidores, o braço de ferro nos bastidores com o Brasil, e os detalhes na matéria no Jerusalem Post evidenciam que o jogo interno em Israel é muito mais complexo, havendo resistência à escalada da direita também no Judiciário e no Ministério Público. Nada estranho para nós, pois a complexidade dessa dinâmica pode ser assemelhada ao que temos observado no Brasil, com o protagonismo político de facções no Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal em articulação com a mídia e os partidos políticos.
A “subversão” dessa democracia na qual crescem o racismo e a exclusão do povo palestino (veja-se notícia recente sobre a decisão de importar dezenas de milhares de trabalhadores chineses, em vez de empregar trabalhadores palestinos), pode ser vista também num contexto internacional mais amplo: o da governança de Israel pela sua direita e extrema direita, em parceria com seus parceiros neocons e da indústria bélica norte-americana, sendo o meio de campo desempenhado pelo forte lobby AIPAC (American Israel Public Affairs Committee). Ao contrário do que se costuma supor nas esquerdas, de que Israel tem poder enorme na política norte-americana, cabe considerar a hipótese inversa: a de que Israel é que tem sido usado como joguete do complexo industrial militar norte-americano através dessa coalizão de direita e extrema direita, cujo controle eleitoral tem se mostrado consistentemente eficaz através da exploração da paranoia. Sem a força dos neocons no Congresso americano, Netanyahu não teria tido a petulância de ir lá discursar contra o acordo com o Irã, em confrontação aberta com o presidente Obama. Essa hipótese é bem mais razoável: cachorros abanam rabos, e rabos não abanam os seus cachorros.
Enfim, não se trata de disputa miúda, apenas por um embaixador. Dani Dayan é um peão nesse tabuleiro. É tido como pessoa inteligente, habilidosa, respeitada por todos os setores em Israel, mas o xadrez é maior que ele. Por representar inquestionavelmente (2) a política de ocupação e defender explicitamente a anexação definitiva da Cisjordânia, mesmo que alegadamente com o fim do muro e dos checkpoints e a igualdade de direitos civis, sua aceitação no Brasil é um alto risco.
E deixo para o final a observação de que a derrota de Netanyahu nesse país, o Brasil, que um seu funcionário chamou de “anão” há apenas um ano, pode ser humilhante, por estar numa linha de continuidade da grande derrota que sofreu no Congresso americano há algumas semanas, quando a maior parte dos deputados – entre eles a maioria dos deputados judeus – jogou em favor de Obama, e contra a AIPAC e Netanyahu. Talvez tenha sido o começo do fim daquilo que aparentava ser um posicionamento monolítico dos judeus norte-americanos em relação à evolução de Israel rumo a um Estado não-democrático.
Os ventos talvez estejam mudando de direção e o Brasil pode, delicadamente, velejar a favor do vento. Nem por isso o novo embaixador que vier a ser nomeado e aceito será muito diferente, mas, como vimos, há vários motivos para não fulanizar essa questão.
Notas:
(1) “Contra mundum”: Israel’s new government is running out of friends abroad – The Economist, 23/5/15 – econ.st/1KLaK9n
(2) 'Peaceful Nonreconciliation Now”, Dani Dayan, New York Times, 8/6/14 – http://www.nytimes.com/2014/06/09/opinion/peaceful-nonreconciliation-now.html?_r=0
(3) “Column One: Israel´s democratic crisis”, Caroline Glick, Jerusalem Post, 24/9/15 http://www.jpost.com/Opinion/Column-one-Israels-democratic-crisis-419042
(4) “In 1976 interview, Rabin likens settlements to ‘cancer,’ warns of ‘apartheid’ | The Times of Israel , 25/9/15- http://bit.ly/1MP62OC
* Sérgio Storch é consultor em Planejamento, ativista de diversas causas ligadas à transformação social. Escreve, em Outras Palavras, a coluna Outro Israel.
0 comentários:
Postar um comentário