Por Marco Aurélio Mello, no blog Viomundo:
Muita gente tem a sensação de que, sim, a Globo mostra tudo, doa a quem doer. Mas, na prática, não é bem assim. A engenharia de produção de noticiário da emissora permite um controle quase que absoluto do conteúdo jornalístico.
Com base na minha experiência de mais de uma década, tendo passado por todos seus telejornais e conhecendo cada etapa do processo, quero dar aqui uma contribuição, principalmente para os jovens que se veem perdidos, sem saber mais onde encontrar notícias confiáveis e muito interessados em entender como se dão a omissão, a distorção e a manipulação.
Na Globo há duas redações que funcionam paralelamente dentro das emissoras, próprias e afiliadas: o jornalismo local e os núcleos de rede. São equipes que abastecem noticiários com características distintas.
O primeiro grupo de noticiários é o chamado local. É mais voltado à comunidade, à prestação de serviços ao meio ambiente e à cidadania (com educação, saúde, lazer e entretenimento). Neste formato é fácil reparar que as emissoras reagem mais à concorrência. Por isso é que no telejornal local o conteúdo policial tem forte apelo, por exemplo.
Já o segundo grupo, os chamados telejornais de rede, são os telejornais de alcance nacional, que podem ser assistidos em todo o país. São eles: o Bom Dia Brasil, o Jornal Hoje, o Jornal Nacional e o Jornal da Globo. Cada um têm sua “personalidade” forjada depois de muitos e muito anos de acertos e erros.
O “Bom Dia” (bom dia para quem?) tem uma fórmula que mistura notícias da manhã, em geral ao vivo, política, economia, noticiário internacional, arte e comportamento. Repare que nele os apresentadores têm espaço para comentar o noticiário sempre, claro, sob a ótica do que a família Marinho “prega”. Todos os que ousaram falar o que pensavam não duraram muito tempo na bancada. Por razões diversas posso dar dois exemplos: Carlos Nascimento e Chico Pinheiro.
O segundo, o Jornal Hoje, sempre esteve mais voltado aos que querem um “resumão” do dia, no Brasil e no mundo. É um noticiário mais light. Tem até um quê de fútil. E – em geral – as notícias de política e economia têm pouco espaço e relevância.
Se há algo de muito importante acontecendo na hora do almoço, são feitas entradas ao vivo, em que o repórter é um mero boneco, que decora e repete um texto de no máximo um minuto escrito pelo editor e submetido à chefia. Por isso, sempre temos a sensação de que soa falso, porque a fala fica sem naturalidade. Nas reportagens editadas valem pautas de economia popular, tecnologia e tendências de moda, culinária e comportamento.
Salvo em situações de crise, como a atual, os chefões raramente interferem nesses dois noticiários. No entanto, como os editores-chefes e editores-executivos são veteranos muitos encostados, que no jargão “caíram para cima”, são profissionais que têm fidelidade canina, experiência que lhes dá um faro apurado, para só reproduzirem o que não ofereça risco. Na dúvida, a ordem é consultar as instâncias superiores.
O carro-chefe é o Jornal Nacional. Assim que o dia amanhece todos os jornalistas da empresa estão ligados na pauta do JN. As primeiras reuniões formais são feitas logo cedo. Trocas de memorandos internos e “sugestões” de pauta encaminham a cobertura do dia.
O JN é um misto do que foi notícia no Brasil e no mundo (tragédias, catástrofes, guerras…), política, economia, esporte e temas de interesse da família Marinho, as chamadas matérias “rec”, ou recomendadas. Um eufemismo para “obrig”, ou obrigatórias, terminologia usada anteriormente.
É claro que não são todos os jornalistas que têm acesso a este sofisticado quebra-cabeças interno. É necessário estar “atendo e forte” a todos os telejornais, às sutilezas da empresa e à natureza dos pedidos. Privilégio delegado apenas aos que acompanham o noticiário externo e interno e ascendem no processo produtivo.
Claro que, conforme o profissional vai ascendendo, os controles internos aumentam. São muitos filtros e, em alguns casos, mecanismos de “controle extremo”, como veremos no próximo post.
Precisamos agora aprofundar um pouco mais a análise do JN, que é de fato o telejornal usado pela família Marinho e seus operadores para interferir na vida dos brasileiros.
Uma notícia vira pauta para o Jornal Nacional quando:
Ela está devidamente apurada (o máximo de informações possíveis sobre o assunto);
Quando ela foi aprovada pelos coordenadores de produção;
Quando foi submetida a William Bonner e Ali Kamel;
Quando já há um “encaminhamento”, ou seja, uma maneira de narrar a história;
Se os entrevistados tiverem um ponto de vista que corrobore a tese do “encaminhamento”;
E quando houver garantias de que estará pronta com a duração prevista e a tempo de ser exibida.
Notem que – antes mesmo da “reportagem” ir à rua – já foram aplicados seis filtros. Quando o repórter é escalado e toma conhecimento da matéria pouco há a fazer. Em muitos casos já há textos prontos e pré-aprovados, ilustrações e gráficos já encomendados. Há casos em que até a passagem (que é a hora em que o repórter mostra a “cara”) já está escrita. Portanto, raros são os repórteres que conseguem fazer telejornalismo de verdade.
Mas, como a vaidade fala mais alto, ninguém questiona o “fazer jornalístico”. A vitrine se torna mais importante do que o produto do trabalho jornalístico. Mesmo porque, a emissora alimenta a mística de um padrão de alta qualidade, de um processo organizado e eficiente, em que cada detalhe é bem cuidado: do figurino à fotografia, ou “enquadramento”.
No entanto, não são todos os jornalistas que aceitam trabalhar assim. Muitos se especializam em textos bem elaborados, reportagens humanas, bem humorada e assim encontram caminhos alternativos, como: falar de plantas, de bichos, de lugares exóticos… E carimbam o passaporte para a felicidade eterna, desde que evitem “temas sensíveis” aos patrões. Para quem tem esta vocação não há melhor lugar para se trabalhar.
Já os que questionam a forma ou o conteúdo são postos à prova. Não tem previsibilidade na escala de trabalho, são obrigados a fazer pautas locais e aos poucos deixam de trabalhar para os principais telejornais. Já os obedientes são premiados com escala fixa, telejornal fixo, salários melhores e tratamento diferenciado. A estes é permitido inclusive fazer treinamento de executivos “media training”, ser mestres de cerimônias e participar de eventos VIPs, todos muito bem remunerados, o que vira uma bem-vinda complementação de renda.
Como para fazer outras atividades o jornalista precisa de autorização expressa da direção, dá para se ter uma ideia do poder de barganha em jogo. Colegas simplesmente “se matam” para conseguir um lugar ao sol. Plantam notícias, se associam a promotores de justiça inescrupulosos, vazam documentos, compram testemunhos, combinam respostas com entrevistados…. É um vale tudo!
Raramente um profissional chega ao Jornal Nacional sem passar pelos outros telejornais da casa. Na atual gestão, de Ali Kamel ( http://memoria.oglobo.globo.com/perfis-e-…/ali-kamel-9042530 ), vi isto acontecer pelo menos em duas ocasiões: com Silvia Faria ( http://memoriaglobo.globo.com/…/talentos/sil…/trajetoria.htm ) e com Ricardo Villela ( http://memoriaglobo.globo.com/…/ricardo-villela-ricardo-vil… ), ambos vindos do jornalismo impresso, sem experiência prévia em televisão.
Silvia é hoje o braço direito de Kamel no Rio de Janeiro e Villela seu preposto em Brasília. Abaixo de Silvia está Mariano Boni ( http://memoriaglobo.globo.com/…/mariano-boni/mariano-boni-t… ), um jornalista que fez carreira galgando postos internamente, em São Paulo, e que substituiu Erick Brêtas ( http://memoriaglobo.globo.com/…/talentos/eri…/trajetoria.htm ), que virou diretor de mídias digitais e não esconde sua indisposição com Silvia Faria, a quem gostaria de suceder, já que é o preferido de Carlos Henrique Schroder ( http://memoriaglobo.globo.com/…/carlos-henri…/trajetoria.htm ). A Mariano Boni, no papel de diretor executivo, cabe zelar pela fidelidade das “praças” e “afiliadas”.
Esta turma não está de brincadeira. Eles sabem como “gerenciar” a matéria-prima dos telejornais. Sabem lidar com o egos de repórteres e apresentadores e são incapazes de questionar uma ordem superior. Fariam tudo, tudo mesmo, para atender aos pedidos dos patrões. São incapazes de agir com autonomia editorial. Ideologicamente, reproduzem o mantra do Estado Mínimo e da Livre Iniciativa.
* Marco Aurélio Mello é jornalista e gestor de conteúdo da TVT, TV dos Trabalhadores. Trabalhou 12 anos na TV Globo onde foi editor de política do Jornal Nacional. Foi demitido depois de discordar da cobertura das Eleições de 2006.
Muita gente tem a sensação de que, sim, a Globo mostra tudo, doa a quem doer. Mas, na prática, não é bem assim. A engenharia de produção de noticiário da emissora permite um controle quase que absoluto do conteúdo jornalístico.
Com base na minha experiência de mais de uma década, tendo passado por todos seus telejornais e conhecendo cada etapa do processo, quero dar aqui uma contribuição, principalmente para os jovens que se veem perdidos, sem saber mais onde encontrar notícias confiáveis e muito interessados em entender como se dão a omissão, a distorção e a manipulação.
Na Globo há duas redações que funcionam paralelamente dentro das emissoras, próprias e afiliadas: o jornalismo local e os núcleos de rede. São equipes que abastecem noticiários com características distintas.
O primeiro grupo de noticiários é o chamado local. É mais voltado à comunidade, à prestação de serviços ao meio ambiente e à cidadania (com educação, saúde, lazer e entretenimento). Neste formato é fácil reparar que as emissoras reagem mais à concorrência. Por isso é que no telejornal local o conteúdo policial tem forte apelo, por exemplo.
Já o segundo grupo, os chamados telejornais de rede, são os telejornais de alcance nacional, que podem ser assistidos em todo o país. São eles: o Bom Dia Brasil, o Jornal Hoje, o Jornal Nacional e o Jornal da Globo. Cada um têm sua “personalidade” forjada depois de muitos e muito anos de acertos e erros.
O “Bom Dia” (bom dia para quem?) tem uma fórmula que mistura notícias da manhã, em geral ao vivo, política, economia, noticiário internacional, arte e comportamento. Repare que nele os apresentadores têm espaço para comentar o noticiário sempre, claro, sob a ótica do que a família Marinho “prega”. Todos os que ousaram falar o que pensavam não duraram muito tempo na bancada. Por razões diversas posso dar dois exemplos: Carlos Nascimento e Chico Pinheiro.
O segundo, o Jornal Hoje, sempre esteve mais voltado aos que querem um “resumão” do dia, no Brasil e no mundo. É um noticiário mais light. Tem até um quê de fútil. E – em geral – as notícias de política e economia têm pouco espaço e relevância.
Se há algo de muito importante acontecendo na hora do almoço, são feitas entradas ao vivo, em que o repórter é um mero boneco, que decora e repete um texto de no máximo um minuto escrito pelo editor e submetido à chefia. Por isso, sempre temos a sensação de que soa falso, porque a fala fica sem naturalidade. Nas reportagens editadas valem pautas de economia popular, tecnologia e tendências de moda, culinária e comportamento.
Salvo em situações de crise, como a atual, os chefões raramente interferem nesses dois noticiários. No entanto, como os editores-chefes e editores-executivos são veteranos muitos encostados, que no jargão “caíram para cima”, são profissionais que têm fidelidade canina, experiência que lhes dá um faro apurado, para só reproduzirem o que não ofereça risco. Na dúvida, a ordem é consultar as instâncias superiores.
O carro-chefe é o Jornal Nacional. Assim que o dia amanhece todos os jornalistas da empresa estão ligados na pauta do JN. As primeiras reuniões formais são feitas logo cedo. Trocas de memorandos internos e “sugestões” de pauta encaminham a cobertura do dia.
O JN é um misto do que foi notícia no Brasil e no mundo (tragédias, catástrofes, guerras…), política, economia, esporte e temas de interesse da família Marinho, as chamadas matérias “rec”, ou recomendadas. Um eufemismo para “obrig”, ou obrigatórias, terminologia usada anteriormente.
É claro que não são todos os jornalistas que têm acesso a este sofisticado quebra-cabeças interno. É necessário estar “atendo e forte” a todos os telejornais, às sutilezas da empresa e à natureza dos pedidos. Privilégio delegado apenas aos que acompanham o noticiário externo e interno e ascendem no processo produtivo.
Claro que, conforme o profissional vai ascendendo, os controles internos aumentam. São muitos filtros e, em alguns casos, mecanismos de “controle extremo”, como veremos no próximo post.
Precisamos agora aprofundar um pouco mais a análise do JN, que é de fato o telejornal usado pela família Marinho e seus operadores para interferir na vida dos brasileiros.
Uma notícia vira pauta para o Jornal Nacional quando:
Ela está devidamente apurada (o máximo de informações possíveis sobre o assunto);
Quando ela foi aprovada pelos coordenadores de produção;
Quando foi submetida a William Bonner e Ali Kamel;
Quando já há um “encaminhamento”, ou seja, uma maneira de narrar a história;
Se os entrevistados tiverem um ponto de vista que corrobore a tese do “encaminhamento”;
E quando houver garantias de que estará pronta com a duração prevista e a tempo de ser exibida.
Notem que – antes mesmo da “reportagem” ir à rua – já foram aplicados seis filtros. Quando o repórter é escalado e toma conhecimento da matéria pouco há a fazer. Em muitos casos já há textos prontos e pré-aprovados, ilustrações e gráficos já encomendados. Há casos em que até a passagem (que é a hora em que o repórter mostra a “cara”) já está escrita. Portanto, raros são os repórteres que conseguem fazer telejornalismo de verdade.
Mas, como a vaidade fala mais alto, ninguém questiona o “fazer jornalístico”. A vitrine se torna mais importante do que o produto do trabalho jornalístico. Mesmo porque, a emissora alimenta a mística de um padrão de alta qualidade, de um processo organizado e eficiente, em que cada detalhe é bem cuidado: do figurino à fotografia, ou “enquadramento”.
No entanto, não são todos os jornalistas que aceitam trabalhar assim. Muitos se especializam em textos bem elaborados, reportagens humanas, bem humorada e assim encontram caminhos alternativos, como: falar de plantas, de bichos, de lugares exóticos… E carimbam o passaporte para a felicidade eterna, desde que evitem “temas sensíveis” aos patrões. Para quem tem esta vocação não há melhor lugar para se trabalhar.
Já os que questionam a forma ou o conteúdo são postos à prova. Não tem previsibilidade na escala de trabalho, são obrigados a fazer pautas locais e aos poucos deixam de trabalhar para os principais telejornais. Já os obedientes são premiados com escala fixa, telejornal fixo, salários melhores e tratamento diferenciado. A estes é permitido inclusive fazer treinamento de executivos “media training”, ser mestres de cerimônias e participar de eventos VIPs, todos muito bem remunerados, o que vira uma bem-vinda complementação de renda.
Como para fazer outras atividades o jornalista precisa de autorização expressa da direção, dá para se ter uma ideia do poder de barganha em jogo. Colegas simplesmente “se matam” para conseguir um lugar ao sol. Plantam notícias, se associam a promotores de justiça inescrupulosos, vazam documentos, compram testemunhos, combinam respostas com entrevistados…. É um vale tudo!
Raramente um profissional chega ao Jornal Nacional sem passar pelos outros telejornais da casa. Na atual gestão, de Ali Kamel ( http://memoria.oglobo.globo.com/perfis-e-…/ali-kamel-9042530 ), vi isto acontecer pelo menos em duas ocasiões: com Silvia Faria ( http://memoriaglobo.globo.com/…/talentos/sil…/trajetoria.htm ) e com Ricardo Villela ( http://memoriaglobo.globo.com/…/ricardo-villela-ricardo-vil… ), ambos vindos do jornalismo impresso, sem experiência prévia em televisão.
Silvia é hoje o braço direito de Kamel no Rio de Janeiro e Villela seu preposto em Brasília. Abaixo de Silvia está Mariano Boni ( http://memoriaglobo.globo.com/…/mariano-boni/mariano-boni-t… ), um jornalista que fez carreira galgando postos internamente, em São Paulo, e que substituiu Erick Brêtas ( http://memoriaglobo.globo.com/…/talentos/eri…/trajetoria.htm ), que virou diretor de mídias digitais e não esconde sua indisposição com Silvia Faria, a quem gostaria de suceder, já que é o preferido de Carlos Henrique Schroder ( http://memoriaglobo.globo.com/…/carlos-henri…/trajetoria.htm ). A Mariano Boni, no papel de diretor executivo, cabe zelar pela fidelidade das “praças” e “afiliadas”.
Esta turma não está de brincadeira. Eles sabem como “gerenciar” a matéria-prima dos telejornais. Sabem lidar com o egos de repórteres e apresentadores e são incapazes de questionar uma ordem superior. Fariam tudo, tudo mesmo, para atender aos pedidos dos patrões. São incapazes de agir com autonomia editorial. Ideologicamente, reproduzem o mantra do Estado Mínimo e da Livre Iniciativa.
* Marco Aurélio Mello é jornalista e gestor de conteúdo da TVT, TV dos Trabalhadores. Trabalhou 12 anos na TV Globo onde foi editor de política do Jornal Nacional. Foi demitido depois de discordar da cobertura das Eleições de 2006.
1 comentários:
Matéria muito interessante! Ajuda a compreender por que a Rede Globo mantêm-se no Poder, há tantos anos, tão poderosa, capaz de montar e desmontar governos. Sua característica principal é cultivar o Neoliberalismo e atacar a República, o Estado Democrático de Direito e a Constituição Federal. É golpista por natureza! Sabe dominar, e controlar, politicamente, os seus "telespectadores", desavisados, a ponto de torná-los imbecis e idiotas, gente que não pensa e sempre repete o que ela quer que repitam. Poucos percebem a manipulação que faz da notícia. Nisso, são competentes! ... Inventam, distorcem, simulam, dissimulam e sonegam, quando querem. Por tudo isso, precisa ser regulada, como toda e qualquer atividade humana.
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