sábado, 26 de março de 2016

Boicote a grande mídia!

Por João Feres Jr., no Jornal GGN:

O título acima é assim mesmo, sem crase. A frase é um chamamento! Nela boicote é verbo transitivo direto, e não o substantivo boicote, que seria regido pela preposição a.

Sou professor universitário e coordenador de dois grupos de pesquisa: o GEMAA, dedicado ao estudo de políticas de ação afirmativa, raça e gênero - provavelmente a maior referência no país na produção de análises sobre estas políticas - e o LEMEP, que enfoca a interação entre mídia e esfera pública, e produz o site Manchetômetro e o boletim Congresso em Notas - o primeiro com análises diárias da cobertura de política e economia da grande mídia e o segundo com notícias semanais sobre pautas importantes no Congresso Nacional.

Regularmente divulgamos os resultados das pesquisas do GEMAA, e tais resultados são frequentemente publicados na grande mídia. Essa mesma mídia nunca publicou uma linha sobre o Manchetômetro, a despeito do sucesso que o site fez na eleição de 2014 na mídia estrangeira, internet, blogs e redes sociais. A única tentativa feita foi uma entrevista por telefone que a ombudsman da Folha começou a fazer comigo, mas que foi abortada quando ela percebeu que não conseguiria usar minhas declarações para referendar uma imagem de equilíbrio da cobertura do jornal, episódio que narrei em detalhes em artigo na época.

Ao longo dos anos tenho dado muitas entrevistas a jornais, revistas e programas televisivos, do Brasil e do exterior. Participo também regularmente de programas de TV e rádio. Há algumas eleições venho também escrevendo pequenos artigos de análise política e desde a eleição de 2010 passei a ser bastante procurado por todo tipo de mídia para comentar política. Sou cientista político de formação. A análise política é uma vocação central da nossa profissão. Uma à qual não me furto.

Já comentei e dei entrevistas para um sem número de órgãos de imprensa do Brasil e do exterior, inclusive para todos os três grandes jornais do Sudeste, Folha, O Globo e Estado, para seus sites noticiosos, para os principais canais da TV aberta e para alguns canais de cabo. Contudo, a partir da crise política que se instalou nos últimos meses em nosso pais, não mais colaborarei com esses meios de comunicação. O assalto à democracia brasileira patrocinada pela grande mídia brasileira é tamanho, sua disposição de distorcer os fatos e versões tão pronunciada, sua adesão política reacionária tão gritante, sua insistência em sempre ouvir somente um lado da contenda, ou de sub-representar desonestamente a opinião legalista, sua incitação a movimentos sociais fascistas e golpistas, que resolvi dizer um basta.

Há quinze dias tomei a decisão de não mais cooperar com qualquer meio de comunicação que estivesse em campanha aberta contra as instituições democráticas de nossos país. Fiz então um post no Facebook conclamando todos meus face-amigos, e particularmente os acadêmicos, a interromper a colaboração com a grande mídia. Dias depois, fui procurado por jornalista do Estadão por telefone para comentar o programa de ação afirmativa da USP, a universidade que mais resiste a democratizar o acesso no pais, me neguei dizendo não cooperar com um meio que ataca a democracia brasileira. Logo em seguida recebi e-mail de jornalista do site G1, da Globo, fazendo convite similar. Também neguei, usando o mesmo argumento.

No mesmo dia, um amigo, Reginaldo Nasser, provavelmente sem sequer ter visto meu chamamento, negou convite para participar de programa da Globonews e postou sua resposta no Facebook: Não dou entrevista para um canal que além de não fazer jornalismo incita a população ao ódio num grave momento como esse. Achei a ideia muito boa, e postei minha troca de e-mails com a jornalista da G1. O post viralizou na web e em poucas horas tínhamos uma campanha pública pelo boicote da mídia.

Professores universitários são uma das categorias que têm a razão mais baixa entre salário e número de anos de estudo necessários à profissionalização. Contudo, a elite da carreira, à qual pertenço, formada em grande parte por professores das escolas públicas, recebe salários que lhes proporciona uma vida confortável de classe média. Em uma sociedade tão desigual quanto a nossa, isso é um privilégio. Mas somos também privilegiados por desfrutarmos de grande autonomia de escolha de objetos de estudo e de opinião, diferentemente de outras carreiras também focadas na escrita, como a de jornalista.

Fato é que somos assalariados e nossa profissão não é orientada para a aquisição de bens e dinheiro. Quem escolhe a carreira acadêmica e tem alguma ambição de ser reconhecido socialmente sabe que esse reconhecimento não virá das riquezas que adquirimos como prêmio pelo nosso trabalho, mas da circulação social das ideias que produzimos e articulamos. Sim, temos uma vocação para o debate público. Contribuir para a discussão racional e pública acerca das escolhas coletivas que fazemos em sociedade (políticas públicas, leis, eleições, etc) é um dos maiores objetivos de realização profissional do cientista social. O problema é que a circulação social de nossas intervenções, para além dos círculos das publicações e eventos acadêmicos, dependia até há pouco tempo quase que exclusivamente da grande mídia.

Era comum ver um colega postar nas redes sociais ou mesmo mandar por e-mail entrevista ou artigo que publicara em algum órgão da grande imprensa. Isso era até há pouco motivo de orgulho: vejam como meu trabalho está recebendo reconhecimento público, queriam dizer com tal ato. E tinham certa razão.

O conservadorismo das editorias dos grandes órgãos noticiosos brasileiros vem de várias décadas, mas é preciso dizer que, apesar deste viés (liberal, pró-mercado, anti-movimentos sociais) havia ao longo do processo de democratização bastante espaço na grande mídia para o debate de ideias, com a participação ativa e frequente de intelectuais. Essa esfera pública plural foi, contudo, se fechando, particularmente a partir da primeira vitória de Lula, na eleição presidencial de 2002.

A crise econômica das empresas privadas de jornalismo, cujos assinantes e anunciantes foram sugados pela internet, contribuiu para este estado de coisas, eliminando ou minguando os cadernos de cultura, mas está longe de explicá-lo inteiramente. Aos poucos, os grandes jornais foram substituindo seus colunistas e articulistas progressistas por conservadores, alguns com biografias abertamente ligadas ao principal partido da oposição, PSDB, ou por publicistas vitriolicamente reacionários, como Rodrigo Constantino, Reinaldo Azevedo, Diego Escosteguy e um rol imenso de outras figuras da mesma laia.

Mesmo com o progressivo avanço da mídia em direção ao reacionarismo, alguns colegas, inclusive eu, ainda insistiam em colaborar com estes órgãos, quando instados. O motivo não era mais propriamente orgulho, mas uma posição de defesa estratégica de posições progressistas. Pensávamos: ainda que a barra esteja pesada neste jornal; ainda que meu texto seja publicado cercado por artigos de gente desqualificada e maliciosa; ainda assim, talvez consiga atingir alguns leitores, expondo-os a informações e pontos de vista que os façam pensar mais criticamente.

Nada mais disso é possível. Com a radicalização política absurda em que nossa grande mídia embarcou não pode haver mais orgulho, não há mais espaço para posições estratégicas, a única coisa que resta é a vergonha. Repito mais claramente: colaborar com a grande mídia reacionária nos dias de hoje é motivo de vergonha. Quem ainda faz isso está compactuando com o ataque à democracia encetado por estes meios. Não há inocentes úteis.

Revistas como Veja, Época e IstoÉ adotam a postura franca de banir tudo que não seja reacionário em suas páginas da cobertura política. O Globo está praticamente igual, com raríssimas exceções. O jornal é um apanhado de reportagens, colunas de opinião, e editoriais militantemente oposicionistas, com imagens, títulos e manchetes cuidadosamente editados para produzir o maior efeito no leitor. Estadão, idem, em quase tudo.

A Folha de S. Paulo também apela fartamente para estratégias editorias para apresentar as ações do governo, do PT, de Lula e Dilma da pior maneira possível, enquanto noticia generosamente a agenda da direita oposicionista. Já analisei aspectos desta estratégia em alguns artigos e vou escrever mais um sobre material recente publicado pelo jornal em breve. Mas no uso dos articulistas ela é um pouquinho diferente. Há um número bem maior de oposicionistas, entre eles Aécio Neves, Marina Silva e até gente do naipe de Reinaldo Azevedo, mas a Folha conta também com um pequeno time de intelectuais de esquerda, bem minoritário, mas que cumpre uma função importante para o jornal: permite que seus editores, ombudsman e demais jornalistas defensores da agenda patronal digam que o jornal é plural pois reproduz várias perspectivas e opiniões. Em inglês há um termo para isso. Eles são the tolken liberals. Estão lá para prestar este serviço, que o velho marxismo chamaria de ideológico. Pois este jornal, assim como todos os outros supracitados, já sacrificaram qualquer semblante de esfera pública habermasiana ou mesmo de pluralismo liberal, se me permitem um intelectualismo escolástico.

O pequeno exército de acadêmicos que presta esse serviço de reportar seus resultados de pesquisa e opiniões para artigos e reportagens da grande mídia não recebe qualquer compensação monetária. Às vezes são até tratados por jornalistas como se tivessem obrigação de trabalhar de graça para seus senhores, os grandes proprietários da mídia nacional. Os poucos acadêmicos colunistas ou não recebem nada ou ganham uma merreca, como se diz por aí, para fazerem o que fazem. Não há mais razão para ambos os grupos continuarem essa colaboração voluntária. Não há orgulho em fazer isso, mas vergonha; não há mais semblante de debate público com posições para serem ocupadas; o que há é uma guerra política na qual a grande mídia já deu provas de sobra que está disposta a jogar as instituições democráticas que criamos com a luta de gerações de brasileiros na lata do lixo.

Por isso faço o chamamento: BOICOTE A MÍDIA. E de quebra, cancele todas assinaturas de jornais e revistas que tiver em casa ou em suas instituições.

3 comentários:

Anônimo disse...

FIM DE UMA ERA?

A Operação Lava Jato, ao estabelecer o sigilo sobre a documentação e delação da Odebrecht, parece ter chegado ao fim. Seus objetivos eram basicamente afastar o Partido dos Trabalhadores (PT) do Governo, e da possibilidade de retornarem a curto prazo a influenciar decisões nacionais, e concluir a obra de desmantelamento da nossa economia com as empresas e tecnologias brasileiras.
O segundo objetivo é antigo, de mais de 60 anos, quando Getúlio Vargas iniciou o processo de industrialização com empresas brasileiras. Foi tentado seu término em 1954, mas o suicídio de Getúlio postergou para 1964 este objetivo. Também o Movimento, articulado pela maior potência industrial da época, enfrentou a resistência da corrente nacionalista das Forças Armadas Brasileiras. Esta teve naquele momento a possibilidade aberta pelo combate travado entre o capital industrial e o capital financeiro, enfraquecendo aquele responsável pelo 31 de março de 1964. Ganhando o poder, o capital financeiro tratou de dar fim aos Governos Militares e implantar no Brasil um sistema de governo parlamentar e neoliberal. Conseguiu o segundo objetivo com Fernando Collor e Fernando Cardoso, mas sofreu uma pequena reversão com a tomada do Governo pelo PT.
Na esteira do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e dos Governos Militares de Costa e Silva a Ernesto Geisel, formaram-se e se desenvolveram no Brasil empresas de engenharia e, em especial, com a ação e o incentivo de empresas estatais, uma tecnologia nacional em áreas de ponta como a nuclear, aeroespacial, de energia e petróleo.
É evidente que, mesmo não conduzindo os impérios coloniais, o capital industrial, agora subordinado ao financeiro, continuava a ter seus objetivos hegemônicos.
A Operação Lava Jato, com as informações obtidas pela redes de espionagem eletrônica e intercepção telefônica das agências e empresas norte-americanas, pode pressionar executivos e políticos a confessar o que já se sabia daquelas escutas. Mas foi surpreendida com uma das maiores empresas genuinamente brasileiras que, dentro do modelo patrimonialista nacional, crescera com os métodos de suborno usuais desde o Império.
Os blogs e jornais virtuais dão a entender que não só os políticos de quase todos os partidos, principalmente dos maiores, mas membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, das Forças Armadas, da Diplomacia, e da grande imprensa foram beneficiados com os favores da Odebrecht.
E agora? Como ficará o primeiro objetivo, uma vez que foi tão somente o Governo do PT que possibilitou vir a tona as entranhas da sociedade formada na corrupção da escravidão, das capitanias hereditárias, dos poderes ou forças ocultas?
Embora seja da tradição das elites brasileiras o acordão, que enterra as mazelas e mantém o mesmo poder nos Governos, a fúria destilando ódio das redes de televisão, envolvendo inocentes úteis, talvez tenha dado uma passo indesejável e insuspeito de destampar o esgoto de nossa história. Ou será apenas um desejo de construir um país mais justo e soberano que leva este velho aposentado a ter esta esperança?
A resposta talvez ainda saia nos próximos dias, mas não necessariamente a que nos interessa. Não se esqueçam que o principal gestor dos interesses do capital financeiro internacional esteve visitando um país tão próximo e tão interdependente do nosso, que o Império Colonial Inglês, base do atual sistema financeiro, procurou fazer inimigo, e que tem agora no Governo um dos serviçais daquele capital.
Pedro Augusto Pinho, avô, aposentado

Anônimo disse...

Há muito faço isso.Sou assinante de CartaCapital,a única a merecer respeito e re-
verência,e leio diàriamente os chamados blogs sujos.

luis alcazar disse...

Parabéns pela postura inteligente. É isso que mais reclamo neste meu país. A discussão sobre o Brasil. Não me interessa os casos de corrupção. Isso são notícias policialesca. Há gente que gosta. Eu não. Eu quero discutir o Brasil. O que se faz, como se faz, o que se pode melhorar, como eu posso ajudar a melhorar. Com ideias, discussões, inteligência e sobretudo, honestidade intelectual. Temos problemas? Enormes. Mas pela primeira vez na história deste meu grande país está se fazendo e se fez alguma coisa. Pela primeira vez na história deste meu país, há um governo que pensa em todos nós, especialmente os pobres e desassistidos. Que somos maioria. Somos 200 milhões de desassistidos há 500 anos. E a única maneira de consertar e fazer, é discutir. Com inteligência, honestidade e com amor. Este sentimento tão ausente nestes tempos de ódio irracional e burro.
Mais uma vez parabéns pela inciativa, que confesso, desconhecia completamente. Muito interessante debate.
Eu já não leio mais jornais há muito tempo. E reconheço que sinto falta. Sinto falta de ler no café da manhã, como sempre fazia. Sinto mesmo. Mas não há hoje a menor condição de fazê-lo. É muita mentira. Muita desonestidade. Muito ódio. E muita, mas muita burrice endêmica.
E está cada vez mais difícil discutir, conversar, trocar ideias. Há um ódio burro e nefasto nas cabeças de muitas pessoas que considerava amigos e amigas. Ainda os considero. Ainda os amo, claro, mas não consigo mais discutir e conversar. Não aguento burrice. Não aguento falta de informação. Não aguento desonestidade intelectual. Mas mais do que isso, não aguento ódio. E não se dão conta. Essa a parte triste. Como diz um grande amigo, está cada vez mais difícil conservar amizades. Ele reclama que perde amigos e hoje não consegue mais conversar com ninguém.
Eu falo pro pessoal, que sei muito bem ganhar uma discussão. Sei muito bem ser escroto. Sei ser mau. Li desde muito jovem o livro do Shopenhauer, "Como ganhar uma discussão sem ter razão". Sei todos os truques. E não me interessa ganhar uma discussão. Quero aprender e sempre tive essa postura na vida. E me recuso a ser mau. Me recuso a ser burro. Me recuso a querer ganhar. Não entro nessa seara. Não mesmo.
Mas sei fazer.
Chega e digo isso com uma forte dor no coração.
Mas não gosto que me considerem otário. Sei de muitas coisas e vivi muita coisa. Vi muita coisa. Coisas que apenas ajudaram na formação e conhecimento deste meu país. Não sou otário.
Amo meu país e vejo com grande alegria que há pessoas que partilham deste mesmo sentimento. Com inteligência e honestidade.
Parabéns.
Luis Alcazar, um brasileiro consciente e que está disposto a discutir o Brasil. Discutir seriamente.