Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O aspecto vexaminoso da reportagem de capa da 'Veja', anunciando um imaginário plano de Luiz Inácio Lula da Silva de fugir para a Itália envolve vários atos vergonhosos para o jornalismo e a democracia.
O primeiro é a leviandade absoluta dedicada a apuração de uma "notícia" do seguinte teor: o mais popular político brasileiro estaria arquitetando um plano para fugir do país e assim escapar de ser recolhido à carceragem de Sérgio Moro. Veja publicou essa "informação" na capa, como fato verdadeiro, sem considerar, sequer, as negativas formais da embaixada. (Numa foto, a revista ainda identificou erradamente o embaixador da Itália, o que dá uma ideia do empenho dedicado para conhecer os personagens que poderiam estar ligados ao caso.)
O segundo aspecto é ainda mais grave. Quem sabe como as coisas funcionam numa situação de exceção, onde medidas que contrariam direitos fundamentais se tornam um risco cotidiano, sabe muito bem que um dos efeitos desse estado de coisas é apagar a diferença essencial entre rumores fabricados e notícias verdadeiras. Os fatos se misturam às opiniões, de forma que a população tenha dificuldade para separar uma coisa da outra. O importante é alimentar o espetáculo, que não pode parar, sabemos todos. Pelo espetáculo, tenta-se legitimar a violência do abuso. Não por acaso, nos últimos dias os ataques diretos a endereços ligados ao PT e a CUT se tornaram mais frequentes do que seria desejável num país onde vigoram as liberdades públicas. Não custa recordar que um dos atos inaugurais foi uma bomba no Instituto Lula.
Falsa, uma reportagem de revista pode servir muito bem como argumento para a Lava Jato alcançar um objetivo verdadeiro: pedir a prisão de Lula. Ajuda a construir a acusação de que todas suas iniciativas atuais não representam um exercício legítimo do direito de defesa, muito menos um esforço para organizar a resistência contra um golpe de Estado, mas simples tentativas obstruir a justiça -- tese que, sabemos todos, levou Sérgio Moro a divulgar um grampo ilegal onde Lula conversava com Dilma, num diálogo logo apontado como "prova"de que ele só queria assumir a Casa Civil para fugir da cadeia. Não há prova que justifique uma ação contra Lula. Mas ninguém seria capaz de negar seu imenso papel político na construção da maioria que levou Dilma ao Planalto. Se há alguma observação honesta a fazer, é de outra natureza, e nada tem de criminal: Lula poderia ter assumido esse papel antes. Só.
Não é difícil explicar a função real da capa com a "notícia" sobre a fuga, a prioridade que explica tanta pressa e tanta barbaridade. Como não há um fiapo de prova para se pedir a prisão de Lula, a revista oferece um pretexto bombástico que poderia ser usado como justificativa.Fugir do país, aqui, é uma nova versão da tese da obstrução da justiça usada para tentar impedir sua ida a Casa Civil.
Em breve, o plenário do Supremo Tribunal Federal irá debater a liminar de Gilmar Mendes, que suspendeu a posse de Lula. Alguém acredita que a historia italiana deixará de ser mencionada?
Vivemos na fase atual da Lava Jato uma nova versão daquele comportamento permanente. Como já disse o ministro do STF Marco Aurélio Mello, a investigação inverte a lógica básica de toda ação judicial num Estado Democrático de Direito. Em vez de investigar e prender, se for o caso, prende-se primeiro para investigar depois.
Jornalistas erram, jornais erram muito. Todo erro é lamentável mas sua importância varia conforme o contexto. Em 1971, o deputado Rubens Paiva encontrava-se morto, sob tortura, quando o Globo divulgou a lorota de que havia sido recuperado por uma organização armada. Foi uma forma de agradar o aparelho repressivo e manter o prestígio em alta junto ao comando militar da ditadura. Todos sabiam que era mentira. Anos mais tarde, quando o país já se encontrava democratizado, a mesma Globo passou a publicar reportagens e editoriais em tom circunspecto, grave, denunciando a tortura. Familiares de Rubens Paiva foram ouvidos, em tom de homenagem.
O ataque a Lula é uma forma de sabotar a resistência a um estado de exceção que enxerga no golpe contra Dilma seu ponto culminante. Ninguém tem o direito de fingir que não sabe o papel de Lula neste momento. Pode-se falar mal de seu governo, desprezar as conquistas realizadas como simples embuste. Mas não pode negar seu lugar na defesa da democracia e da liberdade. Por isso a opção pela mentira, pela irresponsabilidade, não pode ser considerada como falha profissional, embora os tropeços sejam constrangedores. Foi uma opção grave e lamentável: usar a credibilidade de um veículo a serviço unicamente de seu interesse político particular. Do ponto de vista político, foi uma posição favorável a exceção, ao arbítrio, à truculência. Uma contribuição ao terror judicial.
Acertos e e acertos erros do jornalismo podem ser entendidos a luz de seus próprios valores e de sua capacidade de interpretar os interesses da sociedade a cada momento. Cada vez mais distante do jornalismo, 'Veja' demonstra agora que sua prioridade é criminal: quer ajudar Sérgio Moro a prender Lula.
Inteiramente alinhado com a política de John Kennedy durante a Guerra Fria, no início do década de 1960 o New York Times escondeu de seus leitores uma informação crucial sobre o plano da CIA de invadir a Baia dos Porcos para tentar derrubar o regime de Fidel Castro. O maior jornal norte-americano sabia do projeto e preferiu ficar de bico calado, assistindo de camarote ao início de uma operação militar que terminou em fiasco mas poderia ter consequências trágicas para a população dos dois países. Anos mais tarde, o jornal pediu desculpas aos leitores pela decisão.
Em março de 2016, 'Veja' fez uma edição destinada a deixar claro que quer ajudar a Lava Jato a prender um antigo presidente da República contra o qual não pesa uma única denúncia criminal, mas apenas o ódio de classe contra uma liderança que, com todos limites e imperfeições, foi capaz de melhorar a sorte dos mais pobres e mais fracos. Esta é sua herança. Ela explica por que, apesar de um massacre cruel e contínuo, Lula continua a sobreviver, na memória dos brasileiros, como o melhor presidente que o país já teve.
O aspecto vexaminoso da reportagem de capa da 'Veja', anunciando um imaginário plano de Luiz Inácio Lula da Silva de fugir para a Itália envolve vários atos vergonhosos para o jornalismo e a democracia.
O primeiro é a leviandade absoluta dedicada a apuração de uma "notícia" do seguinte teor: o mais popular político brasileiro estaria arquitetando um plano para fugir do país e assim escapar de ser recolhido à carceragem de Sérgio Moro. Veja publicou essa "informação" na capa, como fato verdadeiro, sem considerar, sequer, as negativas formais da embaixada. (Numa foto, a revista ainda identificou erradamente o embaixador da Itália, o que dá uma ideia do empenho dedicado para conhecer os personagens que poderiam estar ligados ao caso.)
O segundo aspecto é ainda mais grave. Quem sabe como as coisas funcionam numa situação de exceção, onde medidas que contrariam direitos fundamentais se tornam um risco cotidiano, sabe muito bem que um dos efeitos desse estado de coisas é apagar a diferença essencial entre rumores fabricados e notícias verdadeiras. Os fatos se misturam às opiniões, de forma que a população tenha dificuldade para separar uma coisa da outra. O importante é alimentar o espetáculo, que não pode parar, sabemos todos. Pelo espetáculo, tenta-se legitimar a violência do abuso. Não por acaso, nos últimos dias os ataques diretos a endereços ligados ao PT e a CUT se tornaram mais frequentes do que seria desejável num país onde vigoram as liberdades públicas. Não custa recordar que um dos atos inaugurais foi uma bomba no Instituto Lula.
Falsa, uma reportagem de revista pode servir muito bem como argumento para a Lava Jato alcançar um objetivo verdadeiro: pedir a prisão de Lula. Ajuda a construir a acusação de que todas suas iniciativas atuais não representam um exercício legítimo do direito de defesa, muito menos um esforço para organizar a resistência contra um golpe de Estado, mas simples tentativas obstruir a justiça -- tese que, sabemos todos, levou Sérgio Moro a divulgar um grampo ilegal onde Lula conversava com Dilma, num diálogo logo apontado como "prova"de que ele só queria assumir a Casa Civil para fugir da cadeia. Não há prova que justifique uma ação contra Lula. Mas ninguém seria capaz de negar seu imenso papel político na construção da maioria que levou Dilma ao Planalto. Se há alguma observação honesta a fazer, é de outra natureza, e nada tem de criminal: Lula poderia ter assumido esse papel antes. Só.
Não é difícil explicar a função real da capa com a "notícia" sobre a fuga, a prioridade que explica tanta pressa e tanta barbaridade. Como não há um fiapo de prova para se pedir a prisão de Lula, a revista oferece um pretexto bombástico que poderia ser usado como justificativa.Fugir do país, aqui, é uma nova versão da tese da obstrução da justiça usada para tentar impedir sua ida a Casa Civil.
Em breve, o plenário do Supremo Tribunal Federal irá debater a liminar de Gilmar Mendes, que suspendeu a posse de Lula. Alguém acredita que a historia italiana deixará de ser mencionada?
Vivemos na fase atual da Lava Jato uma nova versão daquele comportamento permanente. Como já disse o ministro do STF Marco Aurélio Mello, a investigação inverte a lógica básica de toda ação judicial num Estado Democrático de Direito. Em vez de investigar e prender, se for o caso, prende-se primeiro para investigar depois.
Jornalistas erram, jornais erram muito. Todo erro é lamentável mas sua importância varia conforme o contexto. Em 1971, o deputado Rubens Paiva encontrava-se morto, sob tortura, quando o Globo divulgou a lorota de que havia sido recuperado por uma organização armada. Foi uma forma de agradar o aparelho repressivo e manter o prestígio em alta junto ao comando militar da ditadura. Todos sabiam que era mentira. Anos mais tarde, quando o país já se encontrava democratizado, a mesma Globo passou a publicar reportagens e editoriais em tom circunspecto, grave, denunciando a tortura. Familiares de Rubens Paiva foram ouvidos, em tom de homenagem.
O ataque a Lula é uma forma de sabotar a resistência a um estado de exceção que enxerga no golpe contra Dilma seu ponto culminante. Ninguém tem o direito de fingir que não sabe o papel de Lula neste momento. Pode-se falar mal de seu governo, desprezar as conquistas realizadas como simples embuste. Mas não pode negar seu lugar na defesa da democracia e da liberdade. Por isso a opção pela mentira, pela irresponsabilidade, não pode ser considerada como falha profissional, embora os tropeços sejam constrangedores. Foi uma opção grave e lamentável: usar a credibilidade de um veículo a serviço unicamente de seu interesse político particular. Do ponto de vista político, foi uma posição favorável a exceção, ao arbítrio, à truculência. Uma contribuição ao terror judicial.
Acertos e e acertos erros do jornalismo podem ser entendidos a luz de seus próprios valores e de sua capacidade de interpretar os interesses da sociedade a cada momento. Cada vez mais distante do jornalismo, 'Veja' demonstra agora que sua prioridade é criminal: quer ajudar Sérgio Moro a prender Lula.
Inteiramente alinhado com a política de John Kennedy durante a Guerra Fria, no início do década de 1960 o New York Times escondeu de seus leitores uma informação crucial sobre o plano da CIA de invadir a Baia dos Porcos para tentar derrubar o regime de Fidel Castro. O maior jornal norte-americano sabia do projeto e preferiu ficar de bico calado, assistindo de camarote ao início de uma operação militar que terminou em fiasco mas poderia ter consequências trágicas para a população dos dois países. Anos mais tarde, o jornal pediu desculpas aos leitores pela decisão.
Em março de 2016, 'Veja' fez uma edição destinada a deixar claro que quer ajudar a Lava Jato a prender um antigo presidente da República contra o qual não pesa uma única denúncia criminal, mas apenas o ódio de classe contra uma liderança que, com todos limites e imperfeições, foi capaz de melhorar a sorte dos mais pobres e mais fracos. Esta é sua herança. Ela explica por que, apesar de um massacre cruel e contínuo, Lula continua a sobreviver, na memória dos brasileiros, como o melhor presidente que o país já teve.
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