Por Marcio Sotelo Felippe, na revista Caros Amigos:
O golpe consumou-se. No dia 12 de maio a presidência da República foi usurpada por uma figura política que passará à História do Brasil na galeria da vileza em que estão Silvério dos Reis e Calabar. Eleito vice-presidente, conspirou com o que havia de mais sórdido no País para desalojar do poder a sua companheira de chapa e colocá-lo a serviço da classe dominante que preda o País desde sempre. Na mira dos golpistas estão desde o petróleo até direitos trabalhistas, a revogação, na prática, da CLT e mais uma reforma da previdência. Negociações com sindicatos enfraquecidos e manietados pelas restrições às liberdades públicas pretende-se que prevaleçam sobre os direitos assegurados pela legislação trabalhista.
O jornalista Luis Nassif adverte que haverá uma noite de São Bartolomeu. O golpe teve o apoio social construído a partir do ódio e esse ódio, matéria-prima do fascismo, vai se espalhando pelo aparelho do Estado ao modo de círculos concêntricos que se irradiam quando se joga uma pedra na água.
Os jornais de 13 de maio, ironicamente um 13 de maio, noticiam que o órgão responsável pela orientação jurídica do Estado, a Procuradoria Geral do Estado – me permitam por um momento usar o português claro – liberou a porrada da polícia nos nossos jovens. A PM poderá desocupar escolas sem ordem judicial. A própria ditadura militar por vezes tinha pudores que o reacionarismo de hoje descarta abertamente. Dou um exemplo. No dia 23 de junho de 1968, a Faculdade de Direito da USP foi tomada pelos alunos. Ocupações de escolas e universidades são formas clássicas de lutas sociais e aquela vinha na esteira do maio de 68 na França e da efervescência rebelde daqueles anos 60 em todo o mundo. Os estudantes das Arcadas protestavam contra a ditadura, o modelo de ensino e as velhas estruturas autoritárias da Universidade. Durante semanas, alunos e professores (Goffredo da Silva Telles, entre eles) desenvolveram atividades e palestras num momento simbólico de libertação. Após algumas semanas a polícia retirou os alunos, que saíram cantando em fila, sem que um gesto de violência tivesse sido praticado.
Dez anos depois, 1978, eu fui eleito representante dos alunos na Congregação. O primeiro item da pauta da primeira reunião de que participei foi a votação pelo arquivamento da reintegração de posse movida na época pela Universidade para retomada do prédio. A ação, esgotado seu objeto, não fora arquivada até então. Era uma tecnicalidade formal, mas também um momento simbólico e marcante da história da Faculdade e me senti privilegiado por participar dele.
A ditadura militar não ousou desocupar a Faculdade sem ordem judicial e o fez sem violência. Havia momentos na ditadura em que o reacionarismo não ousava dizer seu nome e sentia necessidade de reprimir com pelo menos uma aparência de legitimidade pelo uso de medidas legais e jurisdicionais.
Agora, o órgão responsável pela orientação jurídica do Estado autoriza a nossa “pacífica” polícia (segundo todas as estatísticas uma das mais brutais do mundo) a agir livremente, sem qualquer freio de autoridade judicial, contra jovens, sob o argumento de que isto equivale ao que prescreve o artigo 1210, parágrafo primeiro, do Código Civil: o possuidor turbado pode valer-se do desforço físico próprio para defender sua posse em certos casos e desde que o faça logo.
Transportado o dispositivo para a esfera pública, remete às formas mais primitivas de feudalismo, cujo conceito de propriedade incluía poder político e a jurisdição. É simplesmente inconcebível no Estado moderno que as liberdades públicas, cláusulas pétreas constitucionais, sejam descartadas com fundamento em norma de relações jurídicas de Direito Privado.
O golpe, o clima de intolerância criado para legitimá-lo, fez emergir o obscurantismo e forças cegas, irracionais e primitivas adormecidas na sociedade. Uma juíza em Minas Gerais proibiu o Centro Acadêmico da mais tradicional Faculdade de Direito do Estado de fazer uma assembleia para debater o impeachment e temas políticos. Um deputado do Nordeste apresentou um projeto para proibir que professores abordem certos temas e “doutrinem” em salas de aula. Afinal, por que não? Um juiz curitibano confessa abertamente que prende para obter delações, ou seja, impõe sofrimento para investigar e punir suspeitos, o que tem o nome de tortura.
Os círculos concêntricos do obscurantismo vão se irradiando. O artigo de Nassif que mencionei aponta outros casos. O indiciamento do advogado Augusto Botelho por divulgar mensagens no Facebook de delegados da Lava Jato fazendo campanha para Aécio, porque seria “conspiração” contra a Polícia Federal. O veto ao uso da palavra golpe no Senado na reunião da comissão do impeachment. Juízes que se manifestaram contra a ruptura da ordem democrática sendo ameaçados de sanções disciplinares, ao mesmo tempo em que centenas de outros juízes defendem nas redes sociais a deposição ilegítima e inconstitucional da presidenta. Um promotor da Bahia também representado disciplinarmente por declarações contra o golpe. Blogueiros e advogados na mira da Lava Jato.
Os tempos serão de intolerância e ódio. A criminalização da diferença é uma marca registrada do fascismo. Pequenos poderes e pequenas autoridades se sentirão autorizados a desgraçar quem não é espelho de suas mentes feudais, cegos pelo ódio.
Na década de 20 um professor de biologia do Estado do Tennessee foi processado por ensinar o darwinismo. Era crime naquele estado. O julgamento tornou-se um caso nacional e os dois mais reputados advogados dos EUA trabalharam no processo. Um, liberal iluminista, defendendo. Outro, fundamentalista bíblico, acusando.
O episódio foi retratado em um filme chamado O Vento Será Tua Herança, que tem uma cena memorável retratando a angustiante batalha da razão contra a intolerância e a fé cega.
O defensor, continuamente cerceado em sua defesa por um juiz faccioso, termina por arrolar o ex-adverso como perito em assuntos bíblicos. Pergunta-lhe como seria possível contar o tempo em dias de 24 horas se apenas no quarto dia, segundo o Gênesis, Deus criou o sol e os corpos celestes. Quanto seria de fato “um dia” nessa narrativa? Não poderiam ser 25 horas? “Sim”, responde o advogado defensor da fé bíblica, “Deus pode tudo”. Então também um século? Milênios? Astronômicos períodos de tempo? Então não se deve interpretar a narrativa bíblica literalmente se o sol somente surge no “quarto dia”...
Este singelo exercício de racionalidade desestrutura a personalidade do fundamentalista, que daí em diante torna-se patético mesmo para os que o apoiavam. No entanto, o professor é condenado.
O nome do filme é retirado de uma frase bíblica: quem perturba sua casa receberá o vento como herança. Quem perturba a sociedade com intolerância, fé cega, fanatismo, ódio receberá o vento como herança.
Então este será o tempo da resistência. A resistência dos democratas que não renunciarão a nenhuma forma de luta e que tem, como o advogado iluminista do filme, o imenso poder libertador e iluminador da razão contra o obscurantismo dos que não aceitam uma sociedade justa, igualitária e solidária em que todos tenham o direito de pensar, manifestar-se, reivindicar e exercer a autonomia sem a qual a condição humana se perde.
Fascista, o vento será tua herança.
* Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
O golpe consumou-se. No dia 12 de maio a presidência da República foi usurpada por uma figura política que passará à História do Brasil na galeria da vileza em que estão Silvério dos Reis e Calabar. Eleito vice-presidente, conspirou com o que havia de mais sórdido no País para desalojar do poder a sua companheira de chapa e colocá-lo a serviço da classe dominante que preda o País desde sempre. Na mira dos golpistas estão desde o petróleo até direitos trabalhistas, a revogação, na prática, da CLT e mais uma reforma da previdência. Negociações com sindicatos enfraquecidos e manietados pelas restrições às liberdades públicas pretende-se que prevaleçam sobre os direitos assegurados pela legislação trabalhista.
O jornalista Luis Nassif adverte que haverá uma noite de São Bartolomeu. O golpe teve o apoio social construído a partir do ódio e esse ódio, matéria-prima do fascismo, vai se espalhando pelo aparelho do Estado ao modo de círculos concêntricos que se irradiam quando se joga uma pedra na água.
Os jornais de 13 de maio, ironicamente um 13 de maio, noticiam que o órgão responsável pela orientação jurídica do Estado, a Procuradoria Geral do Estado – me permitam por um momento usar o português claro – liberou a porrada da polícia nos nossos jovens. A PM poderá desocupar escolas sem ordem judicial. A própria ditadura militar por vezes tinha pudores que o reacionarismo de hoje descarta abertamente. Dou um exemplo. No dia 23 de junho de 1968, a Faculdade de Direito da USP foi tomada pelos alunos. Ocupações de escolas e universidades são formas clássicas de lutas sociais e aquela vinha na esteira do maio de 68 na França e da efervescência rebelde daqueles anos 60 em todo o mundo. Os estudantes das Arcadas protestavam contra a ditadura, o modelo de ensino e as velhas estruturas autoritárias da Universidade. Durante semanas, alunos e professores (Goffredo da Silva Telles, entre eles) desenvolveram atividades e palestras num momento simbólico de libertação. Após algumas semanas a polícia retirou os alunos, que saíram cantando em fila, sem que um gesto de violência tivesse sido praticado.
Dez anos depois, 1978, eu fui eleito representante dos alunos na Congregação. O primeiro item da pauta da primeira reunião de que participei foi a votação pelo arquivamento da reintegração de posse movida na época pela Universidade para retomada do prédio. A ação, esgotado seu objeto, não fora arquivada até então. Era uma tecnicalidade formal, mas também um momento simbólico e marcante da história da Faculdade e me senti privilegiado por participar dele.
A ditadura militar não ousou desocupar a Faculdade sem ordem judicial e o fez sem violência. Havia momentos na ditadura em que o reacionarismo não ousava dizer seu nome e sentia necessidade de reprimir com pelo menos uma aparência de legitimidade pelo uso de medidas legais e jurisdicionais.
Agora, o órgão responsável pela orientação jurídica do Estado autoriza a nossa “pacífica” polícia (segundo todas as estatísticas uma das mais brutais do mundo) a agir livremente, sem qualquer freio de autoridade judicial, contra jovens, sob o argumento de que isto equivale ao que prescreve o artigo 1210, parágrafo primeiro, do Código Civil: o possuidor turbado pode valer-se do desforço físico próprio para defender sua posse em certos casos e desde que o faça logo.
Transportado o dispositivo para a esfera pública, remete às formas mais primitivas de feudalismo, cujo conceito de propriedade incluía poder político e a jurisdição. É simplesmente inconcebível no Estado moderno que as liberdades públicas, cláusulas pétreas constitucionais, sejam descartadas com fundamento em norma de relações jurídicas de Direito Privado.
O golpe, o clima de intolerância criado para legitimá-lo, fez emergir o obscurantismo e forças cegas, irracionais e primitivas adormecidas na sociedade. Uma juíza em Minas Gerais proibiu o Centro Acadêmico da mais tradicional Faculdade de Direito do Estado de fazer uma assembleia para debater o impeachment e temas políticos. Um deputado do Nordeste apresentou um projeto para proibir que professores abordem certos temas e “doutrinem” em salas de aula. Afinal, por que não? Um juiz curitibano confessa abertamente que prende para obter delações, ou seja, impõe sofrimento para investigar e punir suspeitos, o que tem o nome de tortura.
Os círculos concêntricos do obscurantismo vão se irradiando. O artigo de Nassif que mencionei aponta outros casos. O indiciamento do advogado Augusto Botelho por divulgar mensagens no Facebook de delegados da Lava Jato fazendo campanha para Aécio, porque seria “conspiração” contra a Polícia Federal. O veto ao uso da palavra golpe no Senado na reunião da comissão do impeachment. Juízes que se manifestaram contra a ruptura da ordem democrática sendo ameaçados de sanções disciplinares, ao mesmo tempo em que centenas de outros juízes defendem nas redes sociais a deposição ilegítima e inconstitucional da presidenta. Um promotor da Bahia também representado disciplinarmente por declarações contra o golpe. Blogueiros e advogados na mira da Lava Jato.
Os tempos serão de intolerância e ódio. A criminalização da diferença é uma marca registrada do fascismo. Pequenos poderes e pequenas autoridades se sentirão autorizados a desgraçar quem não é espelho de suas mentes feudais, cegos pelo ódio.
Na década de 20 um professor de biologia do Estado do Tennessee foi processado por ensinar o darwinismo. Era crime naquele estado. O julgamento tornou-se um caso nacional e os dois mais reputados advogados dos EUA trabalharam no processo. Um, liberal iluminista, defendendo. Outro, fundamentalista bíblico, acusando.
O episódio foi retratado em um filme chamado O Vento Será Tua Herança, que tem uma cena memorável retratando a angustiante batalha da razão contra a intolerância e a fé cega.
O defensor, continuamente cerceado em sua defesa por um juiz faccioso, termina por arrolar o ex-adverso como perito em assuntos bíblicos. Pergunta-lhe como seria possível contar o tempo em dias de 24 horas se apenas no quarto dia, segundo o Gênesis, Deus criou o sol e os corpos celestes. Quanto seria de fato “um dia” nessa narrativa? Não poderiam ser 25 horas? “Sim”, responde o advogado defensor da fé bíblica, “Deus pode tudo”. Então também um século? Milênios? Astronômicos períodos de tempo? Então não se deve interpretar a narrativa bíblica literalmente se o sol somente surge no “quarto dia”...
Este singelo exercício de racionalidade desestrutura a personalidade do fundamentalista, que daí em diante torna-se patético mesmo para os que o apoiavam. No entanto, o professor é condenado.
O nome do filme é retirado de uma frase bíblica: quem perturba sua casa receberá o vento como herança. Quem perturba a sociedade com intolerância, fé cega, fanatismo, ódio receberá o vento como herança.
Então este será o tempo da resistência. A resistência dos democratas que não renunciarão a nenhuma forma de luta e que tem, como o advogado iluminista do filme, o imenso poder libertador e iluminador da razão contra o obscurantismo dos que não aceitam uma sociedade justa, igualitária e solidária em que todos tenham o direito de pensar, manifestar-se, reivindicar e exercer a autonomia sem a qual a condição humana se perde.
Fascista, o vento será tua herança.
* Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
0 comentários:
Postar um comentário