Por Raimundo Angelim, na revista Teoria e Debate:
O debate acerca da reforma do ensino médio nos remete a um breve retorno ao ano de 1996, período em que foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/96), que teve o propósito de substituir a Lei nº 5.692/71 e suas alterações. Naquela época muito se insistiu na modernização do sistema educacional brasileiro, para que atendesse, antes de tudo, o fortalecimento das ações educativas capazes de contribuir com a inclusão social e o rompimento das diferenças entre classes, até então sustentadas por um modelo de educação que segregava.
Com o olhar voltado para aquela época, entendo, conforme a leitura social defendida por educadores, estudantes e outros especialistas, que o desejo comum era que a educação tivesse a função essencial de fortalecer o ser humano não apenas em habilidades técnicas, mas também no desenvolvimento cognitivo articulado à capacidade de percepção crítica da sociedade, além de construir as melhores relações sociais de vida e sobrevivência.
O ideal proposto se distanciava das falsas expectativas ou do exacerbo utópico, mas se aproximava essencialmente da crença na capacidade humana e se aluía num propósito de sociedade a fim de reconhecer talentos, capacidades, competências e principalmente direitos, algo extremamente real e possível. Muito se pensou, tanto que se buscaram referências em estudos a respeito da educação e da sociedade. Quem melhor traduziu, na época, os interesses de uma nova sociedade a partir da educação foi o senador Darcy Ribeiro, através das suas colaborações conceituais. Porém, o país passava por um intenso momento de disputa, prevalecia o debate sobre Estado mínimo e um forte interesse em abrir o Brasil para o capital internacional, algo pouco diferente do que se vive hoje.
O jogo das disputas conceituais e posicionamentos ideológicos, defendidos por representantes do governo da época e do setor privado, em contraposição aos representantes da população (sindicatos, parlamentares e estudantes), permitiu que o propósito neoliberal tivesse ainda maior êxito; contudo, muitas das proposições dos setores sociais foram vistas como necessárias e facilitaram, assim, um razoável entendimento entre as partes. Mesmo sendo mantidas as ideias e orientações globais para a política educacional, foi possível perceber entendimentos como: competência e competitividade, habilidades e relações sociais; cidadãos eficientes e produtivos com a ideia de que a escola tem a função de preparar cidadão crítico. Certo misto elevou a educação como ação social e política aceitável e legalmente definida como política de responsabilidade da família e do Estado, mas permitiu frutos importantes durante o processo de implementação da lei e, com o tempo, revisada nos aspectos estruturais.
Hoje, muitos avanços educacionais como, por exemplo, as políticas de educação técnica e tecnológica, a melhoria na formação profissional dos professores e consequentemente dos alunos, intensificadas nos últimos governos, especialmente nos presidentes Lula e Dilma, podem estar ameaçados. Por isso, vejo com muita preocupação o ato do atual governo, protagonista de um silencioso golpe e que ainda propõe mudanças drásticas no ensino médio brasileiro, por meio de uma medida provisória, com força de lei, que atropela de forma açodada e pouco democrática, sem considerar toda discussão que se iniciou há vários anos, com atenção especial nos últimos três anos, através da coordenação e acompanhamento do Parlamento e com a participação de educadores, estudantes e entidades que pensam e representam a educação.
É lamentável o atropelo do governo de Michel Temer ao tratar um tema de tamanha relevância, como esse, de forma apressada e por meio de medida provisória sabendo que já existe o Projeto de Lei nº 6.840/13, fruto de dezenas de audiências públicas, seminários e reuniões da comissão especial destinada a promover estudos e proposições para a reformulação do ensino médio, que foi aprovado pelo colegiado e pronto para ser votado no plenário da Câmara, e ainda aberto a questionamentos.
A MP do ensino médio, pelo que se pode ver, vislumbra algo mais distante, pois no objetivo permeiam outras alterações, implicando indiretamente na sua aplicabilidade a abertura das portas para mudanças no ensino fundamental. Fato que se confirma, quando se define automaticamente o ensino de inglês, tirando da comunidade escolar o direito de escolha entre línguas estrangeiras. Nos leva essa proposta a entender o caráter ideológico implícito, quando privilegia fortemente uma cultura em detrimento dos vizinhos países de língua de origem hispânica, pouco reconhecidos do ponto de vista econômico. Pode ser percebida ainda a fragilização do incentivo ao esporte e formação de profissionais da área de educação física, assim como o desprestígio à formação artística e o pouco incentivo à valorização das artes e da cultura, quando essas áreas são visivelmente reduzidas, negando o valor formativo e o seu referencial cultural e simbólico.
Para ter uma ideia, a rejeição da tal reforma proposta pelo governo Temer, a famigerada Medida Provisória nº 746/16, que flexibiliza os currículos do ensino médio, não se deu por acaso – ela amplia progressivamente a jornada escolar, sem garantia dos instrumentos e recursos necessários para a qualidade do processo formativo. Por tudo isso já recebeu 568 emendas de parlamentares e tem um forte apelo dos setores representativos da sociedade para que seja revista a posição do governo federal.
São muitos os pontos que representam retrocessos para a educação. Entre eles, a derrubada da obrigatoriedade do ensino das disciplinas de educação física, arte, com destaque especial para filosofia e sociologia. Qual a real intenção? Seria reduzir investimentos, sucumbir educadores e sociedade ao pensamento ideológico posto num governo que foi tomado por força de um golpe? Indago ainda qual a intenção de fazer com que as escolas tenham o papel e a natureza de promover a formação socioemocional, qual intenção subjetiva se instala na MP, no seu parágrafo 5º?
Pela MP do governo, apenas as disciplinas de matemática, português e inglês são obrigatórias, e no período de três anos o ensino médio será dividido em duas etapas: uma organizada em uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), distribuída por cinco áreas de conhecimento: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino Técnico, ainda em discussão, mas cuja duração seria de um ano e meio; e numa segunda etapa, também de um ano e meio, o estudante faz a opção formativa pela qual define o que vai cursar na universidade, sendo que somente uma área de atuação é permitida: ou humanas ou exatas, por exemplo.
Desse modo, diferente do que temos hoje, os estudantes do ensino médio não terão acesso a todas as disciplinas de todas as áreas do conhecimento, mas apenas às específicas que escolherem.
Outra linha de raciocínio permite concluir que a MP fortalece a divisão da sociedade, acentuando aos que mais têm melhores condições para acessarem, através das escolas particulares e outros meios, todos os itinerários formativos e perpetuarem a diferença no nível do conhecimento e consequentemente de poder.
Apresentei emendas que visam restabelecer as disciplinas obrigatórias atualmente, pois elas foram aprovadas por educadores e estudiosos que acompanham a educação, sou favorável que estudos técnicos sejam feitos, que os conselhos de educação dos entes estudem todas as propostas e que fiquem atentos aos excessos e às intenções ainda pouco difundidas.
A meu ver, o Ministério da Educação deveria estar preocupado com a implantação do Plano Nacional de Educação (PNE), prioridade do governo da presidenta Dilma, que foi amplamente discutido e construído conjuntamente com todos os municípios de todos os estados brasileiros e brilhantemente coordenado pelo ex-governador do Acre e ex-secretário da Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (Sase), do Ministério da Educação, Binho Marques.
Sempre as indagações ressurgem: a escola não é para estimular o senso crítico? Deve ser apenas para “preparar” os jovens para o mercado de trabalho? Além de outros atos, que considero como retrocesso, como a contratação de profissionais com “notório saber” para dar aulas em suas áreas de atuação sem definição de critérios pedagógicos. Este é um ponto prejudicial tanto pelo aspecto da formação dos estudantes quando pela desvalorização que promoverá aos professores, reduzindo assim a responsabilidade de oferta dos cursos de formação pedagógica. Não resta dúvida, portanto, de que se trata de uma medida ditatorial, antidemocrática e uma mudança para pior, não apenas pelo que propõe, mas pela forma como está se dando.
Quando um governo tira a obrigatoriedade da formação específica para o professor, abrindo brecha para a contratação de pessoa com “notório saber”, algo um tanto subjetivo, desqualifica os profissionais que buscam a especialização e, ao mesmo tempo, desestimula os governos estaduais e municipais a patrocinarem medidas para melhorar a formação acadêmica de seus educadores, para o mestrado ou o doutorado, por exemplo.
Mesmo atropelando o PL que está em tramitação na Câmara, a medida provisória traz alguns pontos que podem ser considerados como positivos da matéria original, como o aumento progressivo da carga horária de 800 horas anuais para 1.400 horas, priorizando a educação em tempo integral. A mudança representa uma carga horária de sete horas por dia. Porém é questionável a forma de financiamento dessas escolas, o texto não especifica o mínimo de dias letivos, ao contrário do projeto de lei, que estabelece em 200 dias o limite mínimo.
A sociedade precisa discutir a educação do seu país, neste caso deve estudar e debater a MP, que altera pontos importantes de um projeto de lei que alcançou consenso no Parlamento e na sociedade, mas entendemos que precisamos lutar para evitar qualquer redução de direitos no nosso país e ainda mais tratando-se de uma área de tamanha importância: a formação dos nossos jovens.
* Raimundo Angelim é professor, economista e deputado federal (PT-AC).
O debate acerca da reforma do ensino médio nos remete a um breve retorno ao ano de 1996, período em que foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/96), que teve o propósito de substituir a Lei nº 5.692/71 e suas alterações. Naquela época muito se insistiu na modernização do sistema educacional brasileiro, para que atendesse, antes de tudo, o fortalecimento das ações educativas capazes de contribuir com a inclusão social e o rompimento das diferenças entre classes, até então sustentadas por um modelo de educação que segregava.
Com o olhar voltado para aquela época, entendo, conforme a leitura social defendida por educadores, estudantes e outros especialistas, que o desejo comum era que a educação tivesse a função essencial de fortalecer o ser humano não apenas em habilidades técnicas, mas também no desenvolvimento cognitivo articulado à capacidade de percepção crítica da sociedade, além de construir as melhores relações sociais de vida e sobrevivência.
O ideal proposto se distanciava das falsas expectativas ou do exacerbo utópico, mas se aproximava essencialmente da crença na capacidade humana e se aluía num propósito de sociedade a fim de reconhecer talentos, capacidades, competências e principalmente direitos, algo extremamente real e possível. Muito se pensou, tanto que se buscaram referências em estudos a respeito da educação e da sociedade. Quem melhor traduziu, na época, os interesses de uma nova sociedade a partir da educação foi o senador Darcy Ribeiro, através das suas colaborações conceituais. Porém, o país passava por um intenso momento de disputa, prevalecia o debate sobre Estado mínimo e um forte interesse em abrir o Brasil para o capital internacional, algo pouco diferente do que se vive hoje.
O jogo das disputas conceituais e posicionamentos ideológicos, defendidos por representantes do governo da época e do setor privado, em contraposição aos representantes da população (sindicatos, parlamentares e estudantes), permitiu que o propósito neoliberal tivesse ainda maior êxito; contudo, muitas das proposições dos setores sociais foram vistas como necessárias e facilitaram, assim, um razoável entendimento entre as partes. Mesmo sendo mantidas as ideias e orientações globais para a política educacional, foi possível perceber entendimentos como: competência e competitividade, habilidades e relações sociais; cidadãos eficientes e produtivos com a ideia de que a escola tem a função de preparar cidadão crítico. Certo misto elevou a educação como ação social e política aceitável e legalmente definida como política de responsabilidade da família e do Estado, mas permitiu frutos importantes durante o processo de implementação da lei e, com o tempo, revisada nos aspectos estruturais.
Hoje, muitos avanços educacionais como, por exemplo, as políticas de educação técnica e tecnológica, a melhoria na formação profissional dos professores e consequentemente dos alunos, intensificadas nos últimos governos, especialmente nos presidentes Lula e Dilma, podem estar ameaçados. Por isso, vejo com muita preocupação o ato do atual governo, protagonista de um silencioso golpe e que ainda propõe mudanças drásticas no ensino médio brasileiro, por meio de uma medida provisória, com força de lei, que atropela de forma açodada e pouco democrática, sem considerar toda discussão que se iniciou há vários anos, com atenção especial nos últimos três anos, através da coordenação e acompanhamento do Parlamento e com a participação de educadores, estudantes e entidades que pensam e representam a educação.
É lamentável o atropelo do governo de Michel Temer ao tratar um tema de tamanha relevância, como esse, de forma apressada e por meio de medida provisória sabendo que já existe o Projeto de Lei nº 6.840/13, fruto de dezenas de audiências públicas, seminários e reuniões da comissão especial destinada a promover estudos e proposições para a reformulação do ensino médio, que foi aprovado pelo colegiado e pronto para ser votado no plenário da Câmara, e ainda aberto a questionamentos.
A MP do ensino médio, pelo que se pode ver, vislumbra algo mais distante, pois no objetivo permeiam outras alterações, implicando indiretamente na sua aplicabilidade a abertura das portas para mudanças no ensino fundamental. Fato que se confirma, quando se define automaticamente o ensino de inglês, tirando da comunidade escolar o direito de escolha entre línguas estrangeiras. Nos leva essa proposta a entender o caráter ideológico implícito, quando privilegia fortemente uma cultura em detrimento dos vizinhos países de língua de origem hispânica, pouco reconhecidos do ponto de vista econômico. Pode ser percebida ainda a fragilização do incentivo ao esporte e formação de profissionais da área de educação física, assim como o desprestígio à formação artística e o pouco incentivo à valorização das artes e da cultura, quando essas áreas são visivelmente reduzidas, negando o valor formativo e o seu referencial cultural e simbólico.
Para ter uma ideia, a rejeição da tal reforma proposta pelo governo Temer, a famigerada Medida Provisória nº 746/16, que flexibiliza os currículos do ensino médio, não se deu por acaso – ela amplia progressivamente a jornada escolar, sem garantia dos instrumentos e recursos necessários para a qualidade do processo formativo. Por tudo isso já recebeu 568 emendas de parlamentares e tem um forte apelo dos setores representativos da sociedade para que seja revista a posição do governo federal.
São muitos os pontos que representam retrocessos para a educação. Entre eles, a derrubada da obrigatoriedade do ensino das disciplinas de educação física, arte, com destaque especial para filosofia e sociologia. Qual a real intenção? Seria reduzir investimentos, sucumbir educadores e sociedade ao pensamento ideológico posto num governo que foi tomado por força de um golpe? Indago ainda qual a intenção de fazer com que as escolas tenham o papel e a natureza de promover a formação socioemocional, qual intenção subjetiva se instala na MP, no seu parágrafo 5º?
Pela MP do governo, apenas as disciplinas de matemática, português e inglês são obrigatórias, e no período de três anos o ensino médio será dividido em duas etapas: uma organizada em uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), distribuída por cinco áreas de conhecimento: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino Técnico, ainda em discussão, mas cuja duração seria de um ano e meio; e numa segunda etapa, também de um ano e meio, o estudante faz a opção formativa pela qual define o que vai cursar na universidade, sendo que somente uma área de atuação é permitida: ou humanas ou exatas, por exemplo.
Desse modo, diferente do que temos hoje, os estudantes do ensino médio não terão acesso a todas as disciplinas de todas as áreas do conhecimento, mas apenas às específicas que escolherem.
Outra linha de raciocínio permite concluir que a MP fortalece a divisão da sociedade, acentuando aos que mais têm melhores condições para acessarem, através das escolas particulares e outros meios, todos os itinerários formativos e perpetuarem a diferença no nível do conhecimento e consequentemente de poder.
Apresentei emendas que visam restabelecer as disciplinas obrigatórias atualmente, pois elas foram aprovadas por educadores e estudiosos que acompanham a educação, sou favorável que estudos técnicos sejam feitos, que os conselhos de educação dos entes estudem todas as propostas e que fiquem atentos aos excessos e às intenções ainda pouco difundidas.
A meu ver, o Ministério da Educação deveria estar preocupado com a implantação do Plano Nacional de Educação (PNE), prioridade do governo da presidenta Dilma, que foi amplamente discutido e construído conjuntamente com todos os municípios de todos os estados brasileiros e brilhantemente coordenado pelo ex-governador do Acre e ex-secretário da Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (Sase), do Ministério da Educação, Binho Marques.
Sempre as indagações ressurgem: a escola não é para estimular o senso crítico? Deve ser apenas para “preparar” os jovens para o mercado de trabalho? Além de outros atos, que considero como retrocesso, como a contratação de profissionais com “notório saber” para dar aulas em suas áreas de atuação sem definição de critérios pedagógicos. Este é um ponto prejudicial tanto pelo aspecto da formação dos estudantes quando pela desvalorização que promoverá aos professores, reduzindo assim a responsabilidade de oferta dos cursos de formação pedagógica. Não resta dúvida, portanto, de que se trata de uma medida ditatorial, antidemocrática e uma mudança para pior, não apenas pelo que propõe, mas pela forma como está se dando.
Quando um governo tira a obrigatoriedade da formação específica para o professor, abrindo brecha para a contratação de pessoa com “notório saber”, algo um tanto subjetivo, desqualifica os profissionais que buscam a especialização e, ao mesmo tempo, desestimula os governos estaduais e municipais a patrocinarem medidas para melhorar a formação acadêmica de seus educadores, para o mestrado ou o doutorado, por exemplo.
Mesmo atropelando o PL que está em tramitação na Câmara, a medida provisória traz alguns pontos que podem ser considerados como positivos da matéria original, como o aumento progressivo da carga horária de 800 horas anuais para 1.400 horas, priorizando a educação em tempo integral. A mudança representa uma carga horária de sete horas por dia. Porém é questionável a forma de financiamento dessas escolas, o texto não especifica o mínimo de dias letivos, ao contrário do projeto de lei, que estabelece em 200 dias o limite mínimo.
A sociedade precisa discutir a educação do seu país, neste caso deve estudar e debater a MP, que altera pontos importantes de um projeto de lei que alcançou consenso no Parlamento e na sociedade, mas entendemos que precisamos lutar para evitar qualquer redução de direitos no nosso país e ainda mais tratando-se de uma área de tamanha importância: a formação dos nossos jovens.
* Raimundo Angelim é professor, economista e deputado federal (PT-AC).
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