Por Tarso Genro, no site Sul-21:
Anthony Stevens (“Jung”, LP&M Pocket, 187 pgs.,2012), narra que, em 1909, Jung e Freud viajaram juntos durante sete semanas, convidados pela Clark University (Massachusetts), para uma sequência de Conferências, quando aproveitaram para discutir suas ideias e estudar seus respectivos sonhos. “De todos os sonhos analisados” – diz o autor – “dois seriam críticos para a amizade deles”. Carl Gustav Jung, o fundador da psicologia analítica e Sigmund Freud, criador da psicanálise, devem ter travado um duelo intelectual que só grandes inteligências épicas tem a capacidade de marcar, em momentos especiais da história.
O primeiro sonho, que tornou crítica as relações entre ambos, era de Freud. Narrado o sonho, por Freud, Jung lhe pediu mais detalhes sobre o mesmo, para interpretá-lo. Freud olhou-o desconfiado e disse que não o faria, pois “não poderia arriscar minha autoridade”. Pelo visto, o sonho revelaria uma parte da personalidade de Freud, que ele não queria exibir, para proteger sua intimidade. “Esta frase ficou gravada em minha memória” – escreveu Jung mais tarde – pois “prefigurava já, para mim, o fim iminente das nossas relações. Ele (Freud) punha sua autoridade acima da verdade”.
O sonho de Jung, revelado a Freud, era mais complexo. Jung relatou que, no sonho, estava numa casa de sucessivos andares e porões, que ele percorreu até chegar num espaço mais profundo, que era uma caverna cavada na rocha. Nesta caverna ele defronta-se com duas caveiras. O que interessa a Freud – no sonho de Jung – são aquelas duas caveiras: ele quer saber de “quem são?”, pois conclui que o seu amigo nutria “uma pulsão de morte contra esses indivíduos”, o que, para Jung, estava totalmente fora de cogitação. O que Freud interpretava como uma pulsão de morte, Jung qualificava como o “inconsciente coletivo”: as caveiras pertenceriam à barbárie dos nossos “ancestrais humanos” – geradores do inconsciente coletivo – que nos ajudaram “a moldar nossa herança psíquica”. Uma interpretação radicalmente diferente, portanto, da hipótese sustentada pelo individualismo analítico freudiano.
Leigos como eu não sabem quem tem razão, na disputa entre estes dois gênios da modernidade madura, mas não é difícil perceber a diferença das respostas proferidas por ambos. Jung responde com um conceito, Freud responde com a proteção da sua autoridade. Este identifica a sua autoridade com a verdade, aquele (Jung) identifica a verdade com um conceito devidamente fundamentado. O debate sobre os sonhos entre Freud e Jung, todavia, transposto para o plano da política – dentro da crise republicana grave que vivemos – pode proporcionar uma metáfora triste da degradação das nossas instituições. A substituição da verdade pela autoridade é o elemento freudiano da exceção, pois esta só se legitima pela força material da sua implementação, jamais pelo convencimento promovido pelo seu conceito.
As lutas pelo poder não são interpretáveis, predominantemente, por categorias psico-analíticas e/ou psicológicas, mas em determinados momentos de crise aguda, nos quais todas as “gerações mortas oprimem como um pesadelo o cérebro dos vivos” e todas as referências – criadas na história recente – são perdidas, elas podem ser uma porta de entrada para compreender um período degradado. Nesta degradação, as soluções originárias da esfera da “política” estão neutralizadas pela sua destruição programada (que misturou corruptos e decentes na esfera criminal), e a plutocracia arrogante – devidamente incensada pela mídia oligopólica – ergueu o seu queixo muito acima da sua destinação constitucional.
O atalho do golpe não pode ser vinculado, desta feita, às Forças Armadas, mas a um conjunto de políticos vinculados à corrupção, que atravessaram vários Governos desde a década de 90. O Golpe uniu o que havia de pior em todos os Governos desde aqueles anos – originários de diversas formações políticas – com a burguesia nativa mais predatória do Estado, todos hegemonizados pelo programa reformista – liberal rentista – do capital financeiro. Sua mobilização política (que começou nas glamourizadas jornadas de Junho) foi tutelada pelo oligopólio da mídia, o moderno “partido” do neoliberalismo, já que os tradicionais são escolhos na ressaca da Carta de 88.
O conflito entre duas institucionalmente ilustres figuras de proa do Estado brasileiro – o Procurador Rodrigo Janot e o Ministro Gilmar Mendes – representa a decadência do pacto golpista. E o faz, ao revelar a escassa capacidade de argumentar dos seus protagonistas, que substituem as suas razões pelo xingamento autoritário, exercido de forma burocrática, bem como substituindo a fundamentação pela força, usada a partir dos esquemas de poder funcional. Quando o Ministro Gilmar acusa Janot de “delinquir”, como Procurador Geral, ele xinga a partir da sua autoridade, não apresenta nenhuma fundamentação. Quando Janot tenta socializar sua crise interna – atingindo o STF como um todo de forma abstrata – para “esquecerem” as graves travessuras do seu imediato na “lava jato”, ele também não se defende com conceitos e razões, mas o faz utilizando os mecanismos puros de poder, que lhe são deferidos para defender o interesse público.
Estas lutas intestinas no Estado tornam-se sinais de decadência democrática, quando importantes quadros do Estado deixam de se respeitar, pondo a sua autoridade acima da verdade, pois já perderam o respeito pela democracia e pelas funções que exercem, que já tinham sido – na verdade – maculadas pelo atalho do Golpe. Ambos compactuaram com ele e agora foram pegos desarmados para exercerem as suas funções dentro uma ordem que, se antes era minimamente previsível dentro do Estado de Direito formal, tornou-se imprevisível pela exceção que a estupra todos os dias e conflitua todos os poros do Estado.
Os protagonistas deste conflito – como Freud respondendo à pergunta de Jung – preferem não arriscar sua autoridade, explicando as suas razões e conceitos. Xingam ou fazem “jogadas” de risco político, para sanar suas contradições insanáveis: o xingamento é o cansaço do argumento e a acusação, em abstrato, à Corte mais alta do país, é o cansaço da democracia substituída pelo fascismo. Este sim, pura convicção, que vem lá do irracional dos nossos ancestrais vivendo em estado de natureza, que hoje emergem – em estado puro – do inconsciente coletivo expandido pela dissolução da Constituição.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Anthony Stevens (“Jung”, LP&M Pocket, 187 pgs.,2012), narra que, em 1909, Jung e Freud viajaram juntos durante sete semanas, convidados pela Clark University (Massachusetts), para uma sequência de Conferências, quando aproveitaram para discutir suas ideias e estudar seus respectivos sonhos. “De todos os sonhos analisados” – diz o autor – “dois seriam críticos para a amizade deles”. Carl Gustav Jung, o fundador da psicologia analítica e Sigmund Freud, criador da psicanálise, devem ter travado um duelo intelectual que só grandes inteligências épicas tem a capacidade de marcar, em momentos especiais da história.
O primeiro sonho, que tornou crítica as relações entre ambos, era de Freud. Narrado o sonho, por Freud, Jung lhe pediu mais detalhes sobre o mesmo, para interpretá-lo. Freud olhou-o desconfiado e disse que não o faria, pois “não poderia arriscar minha autoridade”. Pelo visto, o sonho revelaria uma parte da personalidade de Freud, que ele não queria exibir, para proteger sua intimidade. “Esta frase ficou gravada em minha memória” – escreveu Jung mais tarde – pois “prefigurava já, para mim, o fim iminente das nossas relações. Ele (Freud) punha sua autoridade acima da verdade”.
O sonho de Jung, revelado a Freud, era mais complexo. Jung relatou que, no sonho, estava numa casa de sucessivos andares e porões, que ele percorreu até chegar num espaço mais profundo, que era uma caverna cavada na rocha. Nesta caverna ele defronta-se com duas caveiras. O que interessa a Freud – no sonho de Jung – são aquelas duas caveiras: ele quer saber de “quem são?”, pois conclui que o seu amigo nutria “uma pulsão de morte contra esses indivíduos”, o que, para Jung, estava totalmente fora de cogitação. O que Freud interpretava como uma pulsão de morte, Jung qualificava como o “inconsciente coletivo”: as caveiras pertenceriam à barbárie dos nossos “ancestrais humanos” – geradores do inconsciente coletivo – que nos ajudaram “a moldar nossa herança psíquica”. Uma interpretação radicalmente diferente, portanto, da hipótese sustentada pelo individualismo analítico freudiano.
Leigos como eu não sabem quem tem razão, na disputa entre estes dois gênios da modernidade madura, mas não é difícil perceber a diferença das respostas proferidas por ambos. Jung responde com um conceito, Freud responde com a proteção da sua autoridade. Este identifica a sua autoridade com a verdade, aquele (Jung) identifica a verdade com um conceito devidamente fundamentado. O debate sobre os sonhos entre Freud e Jung, todavia, transposto para o plano da política – dentro da crise republicana grave que vivemos – pode proporcionar uma metáfora triste da degradação das nossas instituições. A substituição da verdade pela autoridade é o elemento freudiano da exceção, pois esta só se legitima pela força material da sua implementação, jamais pelo convencimento promovido pelo seu conceito.
As lutas pelo poder não são interpretáveis, predominantemente, por categorias psico-analíticas e/ou psicológicas, mas em determinados momentos de crise aguda, nos quais todas as “gerações mortas oprimem como um pesadelo o cérebro dos vivos” e todas as referências – criadas na história recente – são perdidas, elas podem ser uma porta de entrada para compreender um período degradado. Nesta degradação, as soluções originárias da esfera da “política” estão neutralizadas pela sua destruição programada (que misturou corruptos e decentes na esfera criminal), e a plutocracia arrogante – devidamente incensada pela mídia oligopólica – ergueu o seu queixo muito acima da sua destinação constitucional.
O atalho do golpe não pode ser vinculado, desta feita, às Forças Armadas, mas a um conjunto de políticos vinculados à corrupção, que atravessaram vários Governos desde a década de 90. O Golpe uniu o que havia de pior em todos os Governos desde aqueles anos – originários de diversas formações políticas – com a burguesia nativa mais predatória do Estado, todos hegemonizados pelo programa reformista – liberal rentista – do capital financeiro. Sua mobilização política (que começou nas glamourizadas jornadas de Junho) foi tutelada pelo oligopólio da mídia, o moderno “partido” do neoliberalismo, já que os tradicionais são escolhos na ressaca da Carta de 88.
O conflito entre duas institucionalmente ilustres figuras de proa do Estado brasileiro – o Procurador Rodrigo Janot e o Ministro Gilmar Mendes – representa a decadência do pacto golpista. E o faz, ao revelar a escassa capacidade de argumentar dos seus protagonistas, que substituem as suas razões pelo xingamento autoritário, exercido de forma burocrática, bem como substituindo a fundamentação pela força, usada a partir dos esquemas de poder funcional. Quando o Ministro Gilmar acusa Janot de “delinquir”, como Procurador Geral, ele xinga a partir da sua autoridade, não apresenta nenhuma fundamentação. Quando Janot tenta socializar sua crise interna – atingindo o STF como um todo de forma abstrata – para “esquecerem” as graves travessuras do seu imediato na “lava jato”, ele também não se defende com conceitos e razões, mas o faz utilizando os mecanismos puros de poder, que lhe são deferidos para defender o interesse público.
Estas lutas intestinas no Estado tornam-se sinais de decadência democrática, quando importantes quadros do Estado deixam de se respeitar, pondo a sua autoridade acima da verdade, pois já perderam o respeito pela democracia e pelas funções que exercem, que já tinham sido – na verdade – maculadas pelo atalho do Golpe. Ambos compactuaram com ele e agora foram pegos desarmados para exercerem as suas funções dentro uma ordem que, se antes era minimamente previsível dentro do Estado de Direito formal, tornou-se imprevisível pela exceção que a estupra todos os dias e conflitua todos os poros do Estado.
Os protagonistas deste conflito – como Freud respondendo à pergunta de Jung – preferem não arriscar sua autoridade, explicando as suas razões e conceitos. Xingam ou fazem “jogadas” de risco político, para sanar suas contradições insanáveis: o xingamento é o cansaço do argumento e a acusação, em abstrato, à Corte mais alta do país, é o cansaço da democracia substituída pelo fascismo. Este sim, pura convicção, que vem lá do irracional dos nossos ancestrais vivendo em estado de natureza, que hoje emergem – em estado puro – do inconsciente coletivo expandido pela dissolução da Constituição.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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