Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Apesar da providencial aparição de Pedro Cardoso nas telas da EBC, numa lição única de dignidade, quinze dias depois da divulgação do vergonhoso vídeo "Coisa de Preto" já podemos reconhecer o tamanho das dificuldades que devem ser enfrentadas num país que segue incapaz de questionar a cultura mesquinha e indecente do racismo.
Até hoje não temos notícias de qualquer consequência, no plano da Justiça, para um crime que a Constituição considera imprescritível - impossível, portanto, de ser solucionado por arranjos na vida privada, seja em casa, seja na esfera de uma empresa.
O que confirmamos, ao longo de duas semanas, é que a força da opressão e do preconceito é muito mais persistente do que gostamos de imaginar. Passados os inevitáveis momentos de indignação inicial, o que se viu foi a reação da Casa Grande na defesa das prerrogativas e privilégios dos seus. Num espetáculo degradante, tenta-se responder ao racismo com mais racismo.
Reações típicas de descontrole fora de qualquer conveniência, necessárias para alimentar a hipocrisia reinante após tantos séculos de controle assegurado pela violência, deram o tom nesses dias. Se o "Coisa de Preto" era genérico, anônimo, logo adquiriu um rosto e um nome, o da atriz Taís Araujo. Foi assim com a expressão "imbecilidade racial", de uma agressividade próxima da loucura, digna de hospício, pronunciada pelo secretário César Benjamin.
O mesmo impulso levou o presidente da EBC, empresa pública de comunicação, a abandonar qualquer resquício mínimo de compostura indispensável ao cargo, para se divertir num esforço de humilhação de uma atriz que falava de sua experiência de mãe.
Enquanto Willian Waack era retirado de cena, protegido, Taís Araújo era colocada no centro do palco, transformada em Geni pela boçalidade selvagem.
"Haja picaretagem", disse Marco Antonio Villa.
Esse comportamento é a tradução adequada do termo "mórbido deleite" - a expressão é de Gilberto Freyre -, típico do "brasileiro de classe mais elevada", habituada a maltratar o negro num exercício de dominação social no qual o brutal benefício econômico se transforma em deformação política que pode até produzir um visível sintoma de enfraquecimento psíquico.
Sabemos o percurso histórico percorrido até aqui, que explica a formação e preservação de um universo inaceitável.
Dois exemplos de opção e persistência. Nunca se questionou a ideologia racial de nosso maior autor infantil, Monteiro Lobato, um admirador profundo da Ku Klux Klan, a organização terrorista de brancos dos EUA que perseguia, torturava e executava escravos libertados após a guerra de Secessão.
Sempre se poupou José de Alencar, o maior escritor romântico. Seu talento literário é inegável. Sua postura diante do país e do mundo, uma vergonha. Não só era um escravocrata assumido, mas combatia mesmo as lentas medidas de emancipação que fizeram do Brasil o último país independente a abolir a escravidão na América. Chegava a argumentar que a escravização civilizaria o negro trazido da África.
Imagine-se o conceito de país - e de civilização - transmitido pelas ideias, mesmo embutidas, disfarçadas e escondidas em entrelinhas, num esforço subliminar de domínio e aceitação que três séculos incluiu açoite e pelourinho.
Vale reconhecer que assim nasceu uma sociedade que em seus extratos superiores revelaria uma eterna vocação colonial, com uma camada social capaz de cultivar uma forma de sadismo, praticante da tortura física e moral.
Responder ao racismo com mais racismo é a uma forma de reafirmar poder, reconstruir estruturas onde já surgem rachaduras, mesmo que suaves.Reconforta aqueles que se sentem atemorizados diante de qualquer esforço de mudança, por menor que seja. Precisa falar de cotas, que acabam de chegar a mais exclusiva de nossas universidades públicas?
Para quem se deixa levar pela criminalização das redes sociais, é sempre bom lembrar. Desde Karl Marx, dois séculos e meio antes da internet, nós sabemos que a ideologia dominante, em toda sociedade, é sempre a ideologia da classe dominante.
Outra lição relevante ensina que nenhum ser humano está livre dos preconceitos de sua época, como explica um dos mais profundos pensadores da cultura contemporânea, o palestino Edward W. Said.
Este é o ponto em que o país se encontra.
Há um ano, quando Barack Obama deixava a Casa Branca, era o protesto negro diante da vitoria de Donald Trump que incomodava William Waack.
Neste final de 2017, num país que atravessa a pior crise econômica e política de sua história, mas enxerga um fio de esperança no horizonte da campanha presidencial, a reação da população negra à "Coisa de Preto" e seus sinônimos mostra um mundo que se move - ainda que possa dar a impressão de que está sempre parado.
Apesar da providencial aparição de Pedro Cardoso nas telas da EBC, numa lição única de dignidade, quinze dias depois da divulgação do vergonhoso vídeo "Coisa de Preto" já podemos reconhecer o tamanho das dificuldades que devem ser enfrentadas num país que segue incapaz de questionar a cultura mesquinha e indecente do racismo.
Até hoje não temos notícias de qualquer consequência, no plano da Justiça, para um crime que a Constituição considera imprescritível - impossível, portanto, de ser solucionado por arranjos na vida privada, seja em casa, seja na esfera de uma empresa.
O que confirmamos, ao longo de duas semanas, é que a força da opressão e do preconceito é muito mais persistente do que gostamos de imaginar. Passados os inevitáveis momentos de indignação inicial, o que se viu foi a reação da Casa Grande na defesa das prerrogativas e privilégios dos seus. Num espetáculo degradante, tenta-se responder ao racismo com mais racismo.
Reações típicas de descontrole fora de qualquer conveniência, necessárias para alimentar a hipocrisia reinante após tantos séculos de controle assegurado pela violência, deram o tom nesses dias. Se o "Coisa de Preto" era genérico, anônimo, logo adquiriu um rosto e um nome, o da atriz Taís Araujo. Foi assim com a expressão "imbecilidade racial", de uma agressividade próxima da loucura, digna de hospício, pronunciada pelo secretário César Benjamin.
O mesmo impulso levou o presidente da EBC, empresa pública de comunicação, a abandonar qualquer resquício mínimo de compostura indispensável ao cargo, para se divertir num esforço de humilhação de uma atriz que falava de sua experiência de mãe.
Enquanto Willian Waack era retirado de cena, protegido, Taís Araújo era colocada no centro do palco, transformada em Geni pela boçalidade selvagem.
"Haja picaretagem", disse Marco Antonio Villa.
Esse comportamento é a tradução adequada do termo "mórbido deleite" - a expressão é de Gilberto Freyre -, típico do "brasileiro de classe mais elevada", habituada a maltratar o negro num exercício de dominação social no qual o brutal benefício econômico se transforma em deformação política que pode até produzir um visível sintoma de enfraquecimento psíquico.
Sabemos o percurso histórico percorrido até aqui, que explica a formação e preservação de um universo inaceitável.
Dois exemplos de opção e persistência. Nunca se questionou a ideologia racial de nosso maior autor infantil, Monteiro Lobato, um admirador profundo da Ku Klux Klan, a organização terrorista de brancos dos EUA que perseguia, torturava e executava escravos libertados após a guerra de Secessão.
Sempre se poupou José de Alencar, o maior escritor romântico. Seu talento literário é inegável. Sua postura diante do país e do mundo, uma vergonha. Não só era um escravocrata assumido, mas combatia mesmo as lentas medidas de emancipação que fizeram do Brasil o último país independente a abolir a escravidão na América. Chegava a argumentar que a escravização civilizaria o negro trazido da África.
Imagine-se o conceito de país - e de civilização - transmitido pelas ideias, mesmo embutidas, disfarçadas e escondidas em entrelinhas, num esforço subliminar de domínio e aceitação que três séculos incluiu açoite e pelourinho.
Vale reconhecer que assim nasceu uma sociedade que em seus extratos superiores revelaria uma eterna vocação colonial, com uma camada social capaz de cultivar uma forma de sadismo, praticante da tortura física e moral.
Responder ao racismo com mais racismo é a uma forma de reafirmar poder, reconstruir estruturas onde já surgem rachaduras, mesmo que suaves.Reconforta aqueles que se sentem atemorizados diante de qualquer esforço de mudança, por menor que seja. Precisa falar de cotas, que acabam de chegar a mais exclusiva de nossas universidades públicas?
Para quem se deixa levar pela criminalização das redes sociais, é sempre bom lembrar. Desde Karl Marx, dois séculos e meio antes da internet, nós sabemos que a ideologia dominante, em toda sociedade, é sempre a ideologia da classe dominante.
Outra lição relevante ensina que nenhum ser humano está livre dos preconceitos de sua época, como explica um dos mais profundos pensadores da cultura contemporânea, o palestino Edward W. Said.
Este é o ponto em que o país se encontra.
Há um ano, quando Barack Obama deixava a Casa Branca, era o protesto negro diante da vitoria de Donald Trump que incomodava William Waack.
Neste final de 2017, num país que atravessa a pior crise econômica e política de sua história, mas enxerga um fio de esperança no horizonte da campanha presidencial, a reação da população negra à "Coisa de Preto" e seus sinônimos mostra um mundo que se move - ainda que possa dar a impressão de que está sempre parado.
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