Por Paulo Kliass, no site Vermelho:
A sequência cronológica é um tanto antiga. A confirmação do golpeachment remonta a 12 de maio de 2016, quando o Senado Federal votou pela primeira vez a favor do impedimento de Dilma Rousseff. Com isso, ela foi afastada provisoriamente do cargo para o qual havia sido eleita um ano e meio antes. A confirmação veio pouco tempo depois, em 31 de agosto, quando a segunda votação naquela Casa ofereceu a Michel Temer as condições para assumir de forma definitiva o comando do governo.
A partir daquele momento as forças políticas e os interesses econômicos articulados em torno da estratégia de promover o afastamento de Dilma passaram a revelar a sua verdadeira face. Uma das missões mais urgentes seria a promoção do desmonte do Estado e a consequente abertura acelerada de estímulos para a apropriação privada de todos os espaços existentes no âmbito do setor público brasileiro. Além disso, a narrativa oficial passa a incorporar os argumentos do próprio campo do financismo e da ortodoxia, segundo os quais não haveria mais espaço para levar à frente o projeto de sociedade brasileira tal como previsto na Constituição de 1988.
A tradução dessa estratégia em termos de orientação de governo encontra materialidade e concretude no aprofundamento da política do austericídio e na aprovação da famosa PEC do fim do mundo em dezembro de 2016. É bem verdade que o diagnóstico equivocado a respeito da preponderância da crise fiscal já vinha operando desde o início do segundo mandato de Dilma. Foi quando ela nomeou Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, com toda a liberdade e autonomia para implementar as medidas sugeridas pelo pensamento irresponsável liberaloide. A partir da consumação de seu afastamento inconstitucional, a nova equipe chefiada por Temer se sentiu ainda mais à vontade para levar à cabo a opção demolidora.
Austericídio e Reforma da Previdência
A manutenção da política monetária arrochada se combinou tragicamente com a implementação de política fiscal contracionista. A opção por manter a SELIC nas alturas e o recrudescimento nos cortes orçamentários da União só poderiam levar ao aprofundamento da recessão e ao aumento do desemprego. No esteio da flexibilização da CLT vieram as privatizações do pouco que ainda nos resta de empresas estatais. Da entrega do Pré-Sal para as multinacionais do petróleo aos leilões de rodovias e aeroportos, tudo caminhava para liquidar o máximo de entregas no menor intervalo de tempo possível.
Mas a cereja do bolo sempre foi a Reforma da Previdência. Era esse o objeto de desejo do setor financeiro privado. Para além de todas as desinformações e falsidades a respeito do “iminente estado catastrófico do regime previdenciário”, o governo sempre contou com a camaradagem dos grandes meios de comunicação para alardear a antevéspera do caos. A primeira medida, fortemente carregada de simbolismo demolidor, consumou-se na transferência da Secretaria da Previdência Social para o interior do Ministério da Fazenda. Uma loucura!
Mas, por outro lado, não se pode alegar surpresa com a medida. Para o financismo, a previdência social não se caracteriza como direito de cidadania, mas tão somente como mercadoria a ser oferecida pelo sistema bancário a quem puder pagar por tal relação contratual do âmbito do direito comercial privado. Nada mais coerente, pois Temer e Meirelles se atribuíram a missão de promover a liquidação do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) por meio de sua proposta de reforma. Com isso, a aprovação dessa medida constitucional passou a ser uma ”questão de honra” para o governo. Essa mudança radical do endereço da previdência foi feita em maio de 2016.
Mentiras catastrofistas para chantagem
A partir daí o governo empenhou-se de corpo e alma na tentativa de aprovar a medida no Congresso Nacional. Foram realizadas campanhas publicitárias, pesquisas de opinião, troca-troca de congressistas nas comissões, liberação de emendas parlamentares, pressões explícitas e implícitas sobre integrantes da base aliada. Mas nada disso parecia funcionar para levar os deputados federais a ousarem bater de frente contra as pesquisas de opinião e arriscarem sua reeleição agora em outubro próximo.
A evolução das declarações dos responsáveis do governo ao longo desse período nos demonstra muito bem como a estratégia de destruir a previdência ficou nua. Selecionei abaixo algumas das declarações de Temer, Meirelles e do Secretário da Previdência desde então:
junho/16 - Meirelles
"a Reforma da Previdência agora é fundamental como parte do ajuste fiscal"
novembro/16 - Meirelles
“Reforma da Previdência é pré-condição para o País crescer com estabilidade de preços e voltar a gerar emprego e renda”.
janeiro/17 - Meirelles
“Mas acho que estamos indo bem na medida em que existe a consciência de que se não fizer isso a Previdência quebra.”
março/17 - Meirelles
“Ou país faz a reforma da Previdência ou quebra”
abril/17 - Temer
“Temer disse ainda que a reforma da Previdência passou a ser o símbolo "da vitória reformista ou não de seu governo". Segundo ele, a reforma é um fenômeno imperioso".
abril/17 - Meirelles
“O que gostaria de deixar como mensagem fundamental é que é absolutamente imprescindível fazermos uma reforma no Brasil”, ressaltou. “Não é questão de opinião ou preferência. A reforma da Previdência, se não for feita, será insustentável [a Previdência para o governo]”, disse.”
maio/17 - Meirelles
“Meirelles diz que reforma da Previdência não pode ter mudanças substanciais"
junho/17 - Marcelo Caetano
“Governo espera aprovar reforma da Previdência até agosto”
outubro/17 - Meirelles
"A reforma da Previdência é assunto já amadurecido, em discussão há bastante tempo no Congresso e essencial para a sustentabilidade da máquina pública e do sistema fiscal brasileiro"
novembro/17 - Meirelles
“A consequência da reforma da Previdência será sustentabilidade fiscal. A reforma da Previdência não é escolha, é questão de sustentabilidade”
fevereiro/18 - Meirelles
“Governo não tem plano B”
Ocorre que a contabilidade da cozinha do Palácio demonstrou que Temer não conseguiria amealhar votos suficientes para aprovar a medida que foi vendida como a espinha dorsal de seu governo. Assim, como que magicamente, o foco foi alterado da noite para o dia. Um fim de semana foi o necessário para conceber a “intervenção de natureza militar” no Rio de Janeiro.
Como professor e estudioso do Direito Constitucional, o Presidente sabia muito bem que essa opção inviabilizaria qualquer tipo de reforma constitucional durante a vigência do decreto, que define o prazo da medida até 31 de dezembro do presente ano. Era a desculpa para fugir da polêmica de que o governo havia recuado. Não! O governo foi obrigado a seguir o disposto na Constituição e, infelizmente, a tramitação da reforma terá de ser interrompida. Acredite se quiser.
Subitamente sumiram do mapa as ameaças do catastrofismo de plantão, pois elas não passavam de mentira irresponsável. O Brasil não vai aprovar a reforma que Temer & Meirelles tanto desejavam e nem por isso vai quebrar a partir da semana que vem. Como já vínhamos alertando há muito tempo, a melhora nas contas previdenciárias e o equilíbrio na situação orçamentária do governo federal de forma geral só virão com a retomada do crescimento econômico e com o aumento na capacidade de arrecadação de impostos.
Sai previdência e entram maldades infraconstitucionais
Na verdade, assistimos a um verdadeiro golpe de mestre, coisa de profissional da política. Ele trocou uma agenda que havia provado sua impopularidade por diversas ocasiões por uma tentativa de fuga para a frente, introduzindo na pauta política um item de ampla aceitação nas pesquisas de opinião - segurança púbica.
Na tentativa de manter as boas aparências junto às elites que apostavam todas as suas fichas na Reforma da Previdência, o governo tentou apresentar um arremedo de pacote, contendo 15 medidas na área econômica. No entanto, as aparências evidenciam que foi um arranjo amador, preparado de última hora e que não traduz nenhuma estratégia coerente para solucionar os problemas que a suposta ”crise previdenciária emergencial” apresentava. Todas as medidas já vinham sendo debatidas ao longo dos últimos anos e estavam na pauta do Congresso Nacional.
É bem verdade que a maioria delas agrada aos setores do financismo e da elite econômica, mas nem de longe pode ser avaliada como um plano B para enfrentar a crise atual. Trata-se de um arremedo de anúncio, uma tentativa desesperada de avisar aos navegantes que o governo ainda existe e que vai insistir em promover suas maldades de natureza infraconstitucional. Ali estão itens bem diversos como itens de simplificação tributária, alteração na Lei de Responsabilidade Fiscal, autorização para privatização da Eletrobrás ou independência do Banco Central.
Mas atenção: é recomendável festejar com moderação. Temer foi derrotado na batalha da previdência. Mas ainda tem munição suficiente para provocar prejuízos ao Brasil e à sua população em votações que exigem menos do que o quórum favorável de 3/5 dos parlamentares em duas votações em cada casa do Congresso Nacional.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
A sequência cronológica é um tanto antiga. A confirmação do golpeachment remonta a 12 de maio de 2016, quando o Senado Federal votou pela primeira vez a favor do impedimento de Dilma Rousseff. Com isso, ela foi afastada provisoriamente do cargo para o qual havia sido eleita um ano e meio antes. A confirmação veio pouco tempo depois, em 31 de agosto, quando a segunda votação naquela Casa ofereceu a Michel Temer as condições para assumir de forma definitiva o comando do governo.
A partir daquele momento as forças políticas e os interesses econômicos articulados em torno da estratégia de promover o afastamento de Dilma passaram a revelar a sua verdadeira face. Uma das missões mais urgentes seria a promoção do desmonte do Estado e a consequente abertura acelerada de estímulos para a apropriação privada de todos os espaços existentes no âmbito do setor público brasileiro. Além disso, a narrativa oficial passa a incorporar os argumentos do próprio campo do financismo e da ortodoxia, segundo os quais não haveria mais espaço para levar à frente o projeto de sociedade brasileira tal como previsto na Constituição de 1988.
A tradução dessa estratégia em termos de orientação de governo encontra materialidade e concretude no aprofundamento da política do austericídio e na aprovação da famosa PEC do fim do mundo em dezembro de 2016. É bem verdade que o diagnóstico equivocado a respeito da preponderância da crise fiscal já vinha operando desde o início do segundo mandato de Dilma. Foi quando ela nomeou Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, com toda a liberdade e autonomia para implementar as medidas sugeridas pelo pensamento irresponsável liberaloide. A partir da consumação de seu afastamento inconstitucional, a nova equipe chefiada por Temer se sentiu ainda mais à vontade para levar à cabo a opção demolidora.
Austericídio e Reforma da Previdência
A manutenção da política monetária arrochada se combinou tragicamente com a implementação de política fiscal contracionista. A opção por manter a SELIC nas alturas e o recrudescimento nos cortes orçamentários da União só poderiam levar ao aprofundamento da recessão e ao aumento do desemprego. No esteio da flexibilização da CLT vieram as privatizações do pouco que ainda nos resta de empresas estatais. Da entrega do Pré-Sal para as multinacionais do petróleo aos leilões de rodovias e aeroportos, tudo caminhava para liquidar o máximo de entregas no menor intervalo de tempo possível.
Mas a cereja do bolo sempre foi a Reforma da Previdência. Era esse o objeto de desejo do setor financeiro privado. Para além de todas as desinformações e falsidades a respeito do “iminente estado catastrófico do regime previdenciário”, o governo sempre contou com a camaradagem dos grandes meios de comunicação para alardear a antevéspera do caos. A primeira medida, fortemente carregada de simbolismo demolidor, consumou-se na transferência da Secretaria da Previdência Social para o interior do Ministério da Fazenda. Uma loucura!
Mas, por outro lado, não se pode alegar surpresa com a medida. Para o financismo, a previdência social não se caracteriza como direito de cidadania, mas tão somente como mercadoria a ser oferecida pelo sistema bancário a quem puder pagar por tal relação contratual do âmbito do direito comercial privado. Nada mais coerente, pois Temer e Meirelles se atribuíram a missão de promover a liquidação do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) por meio de sua proposta de reforma. Com isso, a aprovação dessa medida constitucional passou a ser uma ”questão de honra” para o governo. Essa mudança radical do endereço da previdência foi feita em maio de 2016.
Mentiras catastrofistas para chantagem
A partir daí o governo empenhou-se de corpo e alma na tentativa de aprovar a medida no Congresso Nacional. Foram realizadas campanhas publicitárias, pesquisas de opinião, troca-troca de congressistas nas comissões, liberação de emendas parlamentares, pressões explícitas e implícitas sobre integrantes da base aliada. Mas nada disso parecia funcionar para levar os deputados federais a ousarem bater de frente contra as pesquisas de opinião e arriscarem sua reeleição agora em outubro próximo.
A evolução das declarações dos responsáveis do governo ao longo desse período nos demonstra muito bem como a estratégia de destruir a previdência ficou nua. Selecionei abaixo algumas das declarações de Temer, Meirelles e do Secretário da Previdência desde então:
junho/16 - Meirelles
"a Reforma da Previdência agora é fundamental como parte do ajuste fiscal"
novembro/16 - Meirelles
“Reforma da Previdência é pré-condição para o País crescer com estabilidade de preços e voltar a gerar emprego e renda”.
janeiro/17 - Meirelles
“Mas acho que estamos indo bem na medida em que existe a consciência de que se não fizer isso a Previdência quebra.”
março/17 - Meirelles
“Ou país faz a reforma da Previdência ou quebra”
abril/17 - Temer
“Temer disse ainda que a reforma da Previdência passou a ser o símbolo "da vitória reformista ou não de seu governo". Segundo ele, a reforma é um fenômeno imperioso".
abril/17 - Meirelles
“O que gostaria de deixar como mensagem fundamental é que é absolutamente imprescindível fazermos uma reforma no Brasil”, ressaltou. “Não é questão de opinião ou preferência. A reforma da Previdência, se não for feita, será insustentável [a Previdência para o governo]”, disse.”
maio/17 - Meirelles
“Meirelles diz que reforma da Previdência não pode ter mudanças substanciais"
junho/17 - Marcelo Caetano
“Governo espera aprovar reforma da Previdência até agosto”
outubro/17 - Meirelles
"A reforma da Previdência é assunto já amadurecido, em discussão há bastante tempo no Congresso e essencial para a sustentabilidade da máquina pública e do sistema fiscal brasileiro"
novembro/17 - Meirelles
“A consequência da reforma da Previdência será sustentabilidade fiscal. A reforma da Previdência não é escolha, é questão de sustentabilidade”
fevereiro/18 - Meirelles
“Governo não tem plano B”
Ocorre que a contabilidade da cozinha do Palácio demonstrou que Temer não conseguiria amealhar votos suficientes para aprovar a medida que foi vendida como a espinha dorsal de seu governo. Assim, como que magicamente, o foco foi alterado da noite para o dia. Um fim de semana foi o necessário para conceber a “intervenção de natureza militar” no Rio de Janeiro.
Como professor e estudioso do Direito Constitucional, o Presidente sabia muito bem que essa opção inviabilizaria qualquer tipo de reforma constitucional durante a vigência do decreto, que define o prazo da medida até 31 de dezembro do presente ano. Era a desculpa para fugir da polêmica de que o governo havia recuado. Não! O governo foi obrigado a seguir o disposto na Constituição e, infelizmente, a tramitação da reforma terá de ser interrompida. Acredite se quiser.
Subitamente sumiram do mapa as ameaças do catastrofismo de plantão, pois elas não passavam de mentira irresponsável. O Brasil não vai aprovar a reforma que Temer & Meirelles tanto desejavam e nem por isso vai quebrar a partir da semana que vem. Como já vínhamos alertando há muito tempo, a melhora nas contas previdenciárias e o equilíbrio na situação orçamentária do governo federal de forma geral só virão com a retomada do crescimento econômico e com o aumento na capacidade de arrecadação de impostos.
Sai previdência e entram maldades infraconstitucionais
Na verdade, assistimos a um verdadeiro golpe de mestre, coisa de profissional da política. Ele trocou uma agenda que havia provado sua impopularidade por diversas ocasiões por uma tentativa de fuga para a frente, introduzindo na pauta política um item de ampla aceitação nas pesquisas de opinião - segurança púbica.
Na tentativa de manter as boas aparências junto às elites que apostavam todas as suas fichas na Reforma da Previdência, o governo tentou apresentar um arremedo de pacote, contendo 15 medidas na área econômica. No entanto, as aparências evidenciam que foi um arranjo amador, preparado de última hora e que não traduz nenhuma estratégia coerente para solucionar os problemas que a suposta ”crise previdenciária emergencial” apresentava. Todas as medidas já vinham sendo debatidas ao longo dos últimos anos e estavam na pauta do Congresso Nacional.
É bem verdade que a maioria delas agrada aos setores do financismo e da elite econômica, mas nem de longe pode ser avaliada como um plano B para enfrentar a crise atual. Trata-se de um arremedo de anúncio, uma tentativa desesperada de avisar aos navegantes que o governo ainda existe e que vai insistir em promover suas maldades de natureza infraconstitucional. Ali estão itens bem diversos como itens de simplificação tributária, alteração na Lei de Responsabilidade Fiscal, autorização para privatização da Eletrobrás ou independência do Banco Central.
Mas atenção: é recomendável festejar com moderação. Temer foi derrotado na batalha da previdência. Mas ainda tem munição suficiente para provocar prejuízos ao Brasil e à sua população em votações que exigem menos do que o quórum favorável de 3/5 dos parlamentares em duas votações em cada casa do Congresso Nacional.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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