quinta-feira, 10 de maio de 2018

Jair Bolsonaro e os sentimentos ocultos

Por Raphael Silva Fagundes, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Bolsonaro só adquiriu um apoio expressivo da população porque é o primeiro candidato à presidência da República a defender claramente a ditadura militar. É algo novo na nossa democracia recente.

Muitos dizem apoiá-lo por não ser corrupto, no entanto, existem outros políticos que não estão envolvidos em casos de corrupção, como a deputada Manuela D’Avila e Guilherme Boulos, mas não receberam o mesmo tratamento do público. Por quê?

Não é por que estes últimos estão ligados a causas polêmicas, como o aborto, LGBTs etc.. Não é, também, porque Bolsonaro seja, supostamente, o deputado defensor do cidadão de bem e da família tradicional. Até porque, existiram vários candidatos que usaram, em suas plataformas políticas, esse tema, como Enéas, Levi Fidelix, Eymael e outros. Mas todos foram motivo de risos. A diferença, do deputado federal, representante máximo do que chamo de “direita vulgar”, para os outros, é que nenhum dos anteriores defendiam claramente o regime militar de 1964-1985.

Não é, também, porque Bolsonaro tenha, supostamente, a fórmula mágica para a solução dos problemas da segurança. Mas sim pelo fato de a ditadura militar despertar uma memória falsa, onde se sustenta a ideia de que na época dos quartéis não havia violência e nem corrupção. Uma memória que não reconhece as circunstâncias do tempo, além de omitir o fato da propagação dos grupos de extermínio, os pais das milícias que dominam várias regiões do Rio de Janeiro. Esconde-se, também, o fato desse ter sido o período embrionário do crime organizado, cujo parto deu à luz ao Comando Vermelho.

Hoje, o Exército é a instituição mais confiável para a população [1]. Isso porque não houve punição para os torturadores como houve nas outras regiões da América Latina. Os militares ficaram relacionados a uma situação de segurança e não de inconstitucionalidade. Também porque “o governo militar interferiu ativamente” na Justiça e na polícia, “para torná-las parciais e submetê-las às suas diretrizes políticas” [2]. Ou seja, houve uma desmoralização dos poderes. A partir daí, a ideia de que o Exército é o único capaz de botar ordem se difundiu.

Revisando os costumes em comum
Não podemos romantizar a cultura popular, muito menos os seus costumes. O historiador inglês Edward Thompson, de muita influência no Brasil, mostrou, através de inúmeras pesquisas, que havia uma resistência popular no século XVIII perante a capitalização das relações de produção. Houve uma economia moral que serviu como instrumento de luta, reagindo à nova cadência de trabalho e de tempo imposta pela burguesia [3].

Mas os costumes nem sempre agirão contra o capital, muito pelo contrário. Em muitos casos, a cultura popular pode ser cruel. A história dos linchamentos comprova o que estou dizendo. O comportamento coletivo, costumeiramente, não desemboca em movimentos sociais, e, na maioria dos casos, são conservadores, principalmente em meio à pobreza doutrinária e política. Há uma motivação conservadora na ação coletiva, enganosamente restauradora.

Foi esse tipo de economia moral que deu vitória a Marcelo Crivella no Rio de Janeiro, mesmo com a revista Veja tendo estampado em sua capa, uma semana antes da eleição, a imagem de Crivella preso. A moralidade que o Psol representa vai de encontro com a economia moral conservadora que quer a restauração de uma época “mitológica” de paz e harmonia.

Mas o que queremos dizer é que a economia moral da coletividade está atrelada à ditadura militar. É muito improvável encontrar alguém que defende a ditadura que não seja conservador moralmente, e vice-versa. A retórica militar era moralista e isso ficou na memória. Portanto, se a causa da crise for moral (corrupção da política e da cultura, como a mídia e a direita vulgar sustentam), a solução militar torna-se instigante.

Mais consumidor que cidadão
Quem nunca se importou com política resolveu participar. Mas a cultura do privado é muito mais forte que a pública. Por conta disso, é a partir do interesse particular que se pensa o público, consequência natural de uma cultura que, apesar de ser democrática (ou, por ser democrática?), não estimula o pensar político.

O poder aquisitivo que os governos petistas deram à população estimulou a compra e a preservação da riqueza material. Aumentou-se o consumo, mas o nível cultural ficou estagnado, principalmente no que tange uma conscientização política. Prova disso, é o fato de tanto a esquerda quanto a direita aumentarem suas fileiras por meio de um discurso moral.

O maior problema social, na visão dessa direita vulgar, passou a ser tudo o que afeta a liberdade de consumir (por isso que o conceito de “economia moral” vem a calhar). Logo, a retórica política de tortura ao prisioneiro, de liberação do porte de arma, militarista etc. tornou-se mais interessante que uma retórica política voltada para a geração de empregos e distribuição de renda. Pensa-se mais no que se compra do que no que se produz, muito mais no produto que no trabalho para tê-lo. É a preservação da condição de consumidor, não a de cidadão.

A preferência do mercado
Sendo assim, portanto, porque o mercado prefere muito mais um Alckmin que um Bolsonaro? Talvez pelo o que este representa. Essa economia moral não é tão boa assim para o mercado, principalmente para a indústria cultural que lucra bilhões com o discurso da diversidade passiva, isto é, uma diversidade conduzida pelos padrões imperialistas, que define as formas legítimas de luta [4].

Isso nos leva a uma conclusão totalmente desmistificadora. Se houver um golpe militar no Brasil hoje, seria muito mais para manter Temer (ou sua política) no poder que para colocar um Bolsonaro no Planalto da Alvorada. O exército do deputado federal resume-se em seus seguidores, na maioria, adolescentes em desequilíbrio hormonal. Os militares não estão alinhados a interesses morais. Isso é mera retórica. Coitados se pensam que seu general fanfarrão um dia irá conduzir uma ditadura militar.

Os interesses são econômicos e multinacionais. E, expressamente, estão atrelados à chamada “retomada da economia”, apoiada pelas empresas e corporações midiáticas. Esse modelo de crescimento visa o sucateamento dos serviços públicos por meio da privatização e da venda dos recursos naturais, acompanhados de um argumento eufemista da chegada de um “capital novo”.

Bolsonaro pode até não ser racista, homofóbico etc.. mas o problema é que ele acaba libertando essas vozes. Lógico que se assumisse o poder agiria em prol do mercado e tudo que diz ficaria apenas na promessa (a boa e velha fanfarronice). Mas o problema é o que sua imagem pode desencadear. Os racistas querem Bolsonaro, assim como os homofóbicos etc.. É como Trump que não é claramente racista, mas suas falas ambíguas desperta sentimentos ocultos, levando pessoas a acenderem tochas e gritarem palavras racistas e xenófobas.

A alternativa militar não está descartada, como acredita o cientista político Francisco Fonseca, professor da PUC-SP [5], contudo, ela irá ratificar o consórcio golpista e o aniquilamento dos serviços públicos, jamais colocar um candidato tão polêmico que possa prejudicar os rumos da política neoliberal.

* Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
Notas:

[1] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1895770-forcas-armadas-lideram-confianca-da-populacao-congresso-tem-descredito.shtml

[2] MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015. p.75.

[3] THOMPSON, Edward. Costumes em comum. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p.150.

[4] Ver: https://diplomatique.org.br/a-apropriacao-das-lutas-sociais-pela-industria-cultural/.

[5] FONSECA, Francisco. “Eleições em tempos de ditadura”. Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2018.

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