sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Manuela D’Ávila e a construção da frente

Por Cynara Menezes, no blog Socialista Morena:

No palco do I Fórum Mundial do Pensamento Crítico, em Buenos Aires, na semana passada, o secretário-executivo da Clacso, Pablo Gentili, faz o mea culpa em nome dos homens que não estão ali com seus filhos, ao contrário da deputada brasileira que logo chamará ao microfone. “Manuela revolucionou essa forma de se expressar politicamente, aparecendo com sua filha Laurita em todos os lugares. Ser mãe e ser militante é parte de um processo de construção de um horizonte, de uma nova forma não só de fazer política como de construir a vida”, disse Gentili. “Mas a revolução na política só virá quando nós, homens, viermos com nossas filhas aos atos, não só quando nossas companheiras vierem com suas filhas.”

Comovida, Manuela D’Ávila o abraçou calorosamente antes de começar a falar. No palco, a pequena Laura, 3 anos, bebia água da garrafinha da mãe, bagunçava a mesinha em frente a ela e Guilherme Boulos, brincava com um amiguinho que descolou, corria pelo palco… E Manuela nem sequer perdia o fio da meada de seu discurso.

De fato foi algo nunca visto numa campanha política: primeiro como candidata a presidenta da República pelo PCdoB e depois como vice de Fernando Haddad, do PT, Manuela levou Laura a quase todos os compromissos de campanha durante um ano, no que foi “a experiência mais incrível” de sua vida, segundo a própria. Em todas as viagens em que Manu tinha que passar mais de duas noites fora, Laura ia junto, a princípio causando reações de estranhamento nos anfitriões.

“Diziam ‘ah, como assim? vai trazer a menina?’, como se fosse um problema. Mas as pessoas foram aprendendo, foram ajustando. A Laura foi aprendendo a ficar comigo quando tinha que ficar, a dormir às vezes na mesinha, no cantinho… E aos poucos isso foi mudando a vida de outras mulheres, porque comecei a ver mais mulheres com as suas crianças nos debates, nas palestras onde ia. Cansei de ouvir em palestra as pessoas reclamando de bebês chorando, quando na maior parte das vezes aquela era a única alternativa para aquela mulher estar ali, seja por não ter com quem deixar aquela criança ou porque ela trabalhou o dia inteiro e ela quer ficar com aquela criança”, diz Manuela.

“Eu vi como é verdadeira aquela tese que diz que é preciso uma comunidade inteira para educar uma criança. Porque eu contei com abraços, com braços, com frutas, com brinquedos, de centenas de pessoas no país inteiro, que foram aprendendo a me acolher com a Laura. Eu brincava que sou a única política que ganhava massinha de modelar no Nordeste.”

Laurita aprendeu a se comportar, é verdade, o que não evitou histórias hilárias, como quando ela tentou avisar a mãe que queria fazer cocô em plena entrevista com o jornalista Bob Fernandes na TV Educadora da Bahia, ou quando perguntou ao governador de Pernambuco: “Minha mãe disse que tinha vindo para almoçar, não tem almoço nesse castelo?” A melhor: ao ver Haddad pela primeira vez no horário gratuito, Laura disparou: “Mamãe, olha, não é aquele seu amigo?”

No segundo turno das eleições, Manuela foi praticamente escondida pelo comando da campanha petista, por temor que atiçasse ainda mais as fake news da extrema-direita, que viu nela um alvo preferencial. Foram dezenas de notícias falsas, como a que teria usado camiseta com os dizeres “Jesus é travesti”…



…ou a montagem em vídeo em que Manuela “afirmava” querer acabar com os feriados cristãos. A famosa frase dos Beatles de que eram “mais famosos que Jesus Cristo” também foi atribuída a ela. E duas tatuagens, uma de Che e outra de Lenin, além de olheiras profundas, foram acrescentadas digitalmente em uma foto da candidata para prejudicar sua imagem diante do eleitorado conservador.



“Eu sempre fui alvo de muita mentira. Fui candidata muito nova, é a sétima campanha que eu disputo”, diz Manuela. “A diferença está na amplificação, no volume que essas mentiras alcançam nas redes sociais. Então a questão é saber quem financia as fake news. Quando estava grávida, viajei com o Duca (Leindecker, músico, seu marido), ele foi finalizar uns disco nos EUA e eu fui junto. Pedi uma licença rara na Assembléia do Rio Grande do Sul, uma licença que descontava todos os dias que ficasse fora, inclusive os feriados, dias que não tem sessão. E quando eu voltei rolava na internet, já com muita dimensão, uma ida minha a Miami para fazer enxoval, e eu não conheço Miami nem fiz enxoval para Laura. Achei graça, mas depois me dei conta que todo mundo acreditava naquilo. Cheguei a ser agredida num show em Garibaldi porque tinha feito enxoval em Miami. Aí comecei a perceber que tinha uma estrutura muito forte por trás disso.”

Manuela conta ter alertado o PT no início da campanha que isso ganharia uma dimensão muito grande, porque ia de encontro aos padrões misóginos dos criadores de fake news que gravitavam em torno do candidato Jair Bolsonaro. Para ela, o comando da campanha subestimou o poder das notícias falsas que, diz, foram o “principal elemento” da derrota. “Nós derrubamos na Justiça 70 perfis com mentiras. Esses 70 perfis foram compartilhados 300 mil vezes e alcançaram 13 milhões de pessoas. É uma audiência invejável para qualquer jornal. Eles subiram a fake news no programa final do Bolsonaro e na Record no minuto da Universal. Foi um sistema montado que foi subestimado. Só no segundo turno nós conseguimos convencer a campanha a tratar desse assunto na televisão.”Acho errado imaginar uma ação que não debata com o PT o futuro de nosso campo, assim como acho péssimo o PT, através de Haddad, fazer avaliação da incapacidade de Ciro de construção de unidade pela Folha e não da incapacidade própria do PT de ampliar e construir a frente

“Foi subestimado o peso que isso teria, foi reproduzido para as redes um padrão muito de comunicação tradicional, subestimando o papel, o peso e a estruturação dessas redes de mentiras. ‘Capaz que alguém vai acreditar no kit gay’, ‘capaz que alguém vai acreditar na mamadeira com pinto’. Mas acreditaram.” O resultado da incapacidade de lidar com as fake news foi que Manuela acabou “substituída” na reta final pela esposa de Haddad, Ana Estela, num “primeiro-damismo” inédito nas campanhas petistas. No total, as aparições de Manuela não somaram um minuto nos programas de TV do candidato no segundo turno.

Um mês após a eleição, Manuela D’Ávila diz sentir um misto de emoção com o que foi a campanha nos últimos dias até hoje (“as pessoas pedem para me abraçar, choram, tem sido um momento de muito encontro, no sentido político, filosófico, mas também físico”), e a preocupação com o futuro do país. “Por um lado, é bom saber que somos muitos e que caminhamos juntos, e por outro há essa expectativa, essa tensão do que vai ser na vida real esse conjunto de ameaças à democracia que foram feitas durante a campanha eleitoral.”

Parlamentar experiente, Manuela acha que Bolsonaro não terá dificuldades em impor sua agenda no Congresso, até porque já se aliou à velha política que antes criticava, representada por Michel Temer e seus emedebistas com um pé no futuro governo, além das raposas do DEM. “Espero que tenhamos força na sociedade para garantir que a Constituição de 1988 seja resguardada”, diz. “E que tenhamos capacidade para construir uma frente ampla em defesa da liberdade e da democracia”.

Pergunto a ela o que acha das alfinetadas que estão sendo trocadas dentro dessa “frente” que ainda nem se concretizou entre o líder do PCdoB na Câmara, deputado federal Orlando Silva, e Haddad. “Eu não reconheço essa narrativa de frente de esquerda sem o PT. Acho que nosso campo tem que parar de falar pela imprensa e de tirar consequências políticas pelo que sai ali. Isso só serve a quem 1) quer isolar aliados e 2) quer construir diferenças e não pontes entre nosso campo”, responde a comunista.

“As duas são irresponsabilidades muito grandes diante do que estamos vivendo e viveremos. Nós temos bloco dentro da Câmara há mais de década. Acho errado imaginar uma ação que não debata com o PT o futuro de nosso campo, assim como acho péssimo o PT, através de Haddad, fazer avaliação da incapacidade de Ciro de construção de unidade pela Folha e não da incapacidade própria do PT de ampliar e construir a frente. Ou seja, ficar se digladiando agora é postura inadequada para os desafios que temos.”

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