terça-feira, 22 de janeiro de 2019

A hipótese do “pitbull encoleirado”

Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:

Entusiasmado - com justíssimas razões… - pela rápida erosão do governo Bolsonaro, o jornalista Luís Nassif formulou, domingo (20/1), uma hipótese audaz. “A certeza, no quadro político atual é que o governo Bolsonaro acabou”, escreveu ele. A dúvida seria sobre o que virá depois. Os escândalos envolvendo o filho Flávio respingariam inevitavelmente sobre o Palácio do Planalto, a ponto de inviabilizar a continuidade do governo. O comentário pareceu ecoar a agora célebre capa de Veja, em que Bolsonaro aparece, em montagem, com os pés trocados, à la Jânio Quadros – o presidente que renunciou menos de sete meses após tomar posse, em 1961.

Desde domingo, novos fatos parecem dar razão a Nassif. O situação de Flávio Bolsonaro parece azedar hora a hora. De mero receptor de dinheiro ilegal repassado por assessores “laranjas”, ele passou a especulador imobiliário suspeito de fraudes e lavagem de dinheiro. Nas últimas horas, uma série de matérias publicadas com raro destaque nos noticiários da TV Globo aponta suas ligações com a cúpula criminosa das milícias cariocas – e o envolve com os próprios suspeitos da execução de Marielle Franco.

Mas seria fácil assim virar uma página tão ameaçadora de nossa História presente? Para acreditar, seria preciso esquecer o vasto arco de interesses que levou Bolsonaro ao poder – e que aposta em tirar enorme proveito de suas decisões. Em torno dele não há apenas a classe média antes incomodada com os pobres nos aeroportos e universidades; os religiosos fundamentalistas, interessados em silenciar o pensamento crítico nas escolas; ou o baixo clero parlamentar sedento pelas concessões de um governo “seu”. Há também a oligarquia financeira.

Repare em Davos, onde o presidente brasileiro fez, há poucas horas, um discurso pífio. Nem a indigência da fala, nem a precariedade do personagem, parecem incomodar a elite dos bilionários globais e seus gurus. Não importa se ele é populista; “Bolsonaro tem uma agenda de reformas e nós achamos que é boa para seu país. (…) Estamos realmente felizes”, disse Francesco Starace, o executivo-chefe da Enel, corporação energética italiana que controla as distribuidoras de energia do RJ, do CE e agora de SP.

Ainda mais significativo foi o comentário, também em Davos, de Ricardo Villela Marinho, alto executivo do Itaú, membro da família que controla acionariamente o banco e seu estrategista-chefe para a América Latina. “Concordamos com o diagnóstico que a equipe econômica tem sobre os principais entraves que estão segurando o crescimento (…), com as primeiras medidas sugeridas para superar estes entraves”. Além disso, “parece que este governo será mais duro do que os anteriores e que a ditadura venezuelana não será mais tolerada (…) Cada vez menos veremos populistas vencendo na América Latina, o que permite um desenvolvimento mais sustentável da economia, com atuação mais liberal”.

Promover o Impeachment de Bolsonaro, nos próximos dois anos, implicaria algo indesejável para a oligarquia financeira. Significaria colocar em risco o plano de anular as conquistas sociais da Constituição de 1988 e restaurar o padrão de dominação praticado por 500 anos. O general Mourão assumiria – em meio a grande trauma. É ainda mais suscetível que o presidente ao pensamento dos quartéis. Quem assegura que estes desejarão o ultracapitalismo?

Por isso, há uma hipótese mais provável que a de Nassif: a de um Bolsonaro encoleirado. O grande poder econômico quer as medidas que o presidente parece disposto a lhe oferecer; e pouco se importa com seu mau jeito. Já se deu conta de sua quase inacreditável inaptidão para o jogo político tradicional – e as múltiplas brechas abertas por tal incapacidade. Já identificou um caminho para fustigá-lo sem chocar-se com seu grande eleitorado: basta desconstruir, com a força dos fatos, a imagem de antiestablishment que ele procurou forjar para si – e com isso minar o núcleo de sua força.

A principal resultante desta estratégia será ter, em pouco tempo, um presidente totalmente submisso. Sem outra base poderosa em que se apoiar, Bolsonaro se reduzirá, aos poucos mas inexoravelmente, a uma espécie de Temer pós-escândalo JBS. Já não fará sequer restrições parciais à contrarreforma da Previdência (em 2/1, ele rejeitou “fazer uma tremenda maldade com o povo”). Já não resistirá à entrega total da Petrobras e do pré-sal.

Assim como ocorreu com Temer, a estratégia comporta ainda um Plano B. No limite, ela permite ao mesmo tempo encoleirar o presidente e descomprometer-se dele – caso se torne muito impopular. Por isso, são nítidos por exemplo os esforços dos noticiários da Globo para cortejar Mourão, apresentando-o como alguém razoável e destoante das estrepolias dos Bolsonaro. É também visível o esforço para preparar, desde já, alternativas como Luciano Huck – também ele presente em Davos e declarando-se “cada vez mais disposto a participar da vida política do país”.

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Por trás da aposta em rápido afastamento de Bolsonaro parece haver uma ilusão comodista, detectada já no ano passado por Marcos Nobre: a de que o presidente tropeçará em seus próprios pés e o sistema político tradicional se recomporá naturalmente. Talvez seja por isso que não se vê oposição diante de medidas como o fim do “Mais Médicos”, a redução do aumento do salário mínimo, a venda da Embraer, a devastação do SUS, as “emergências fiscais” decretadas pelos governadores para reduzir direitos e atacar serviços públicos.

Atônita, sem programa real de mudanças, a esquerda espera que os dias ruins terminem por si mesmos. Parece nada compreender sobre o caráter do capitalismo contemporâneo.

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