Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Em minha vida de repórter, duas décadas atrás, cheguei a ser convidado para um evento do governo de São Paulo, com direito a refrigerante e salgadinhos, nos qual se anunciou um programa de recuperação do Tietê.
Acho que deve ser sido o penúltimo em um milhão de coquetéis desse tipo, nos quais era possível admirar uma maquete caprichada, que lembrava o cenário das cidades de brinquedo da infância. Homens e mulheres em miniatura, carrinhos de bebê, automóveis, guarda-chuvas.
Na ingenuidade que costuma marcar a profissão com mais frequência do que é costume admitir, cheguei a imaginar que um dia - quem sabe em companhia de netos - seria possível sair de casa aos domingos para passear às margens do Tietê.
Ou tomar uma cerveja e comer num sanduíche nas proximidades. Assistir a uma pelada entre os moradores do lugar, ou apenas olhar a paisagem, calmamente. Uma outra cidade parecia possível, quem sabe.
Com esta visão em mente, perguntei para um dos engenheiros presentes se era mesmo razoáveis imaginar que isso poderia ocorrer dentro de dez, quinze anos, quem sabe vinte.
O olhar perplexo do interlocutor denunciou meu delírio. Não se atreveu a falar em datas mas descreveu algo que em minhas lembranças queria dizer "processo", "investimentos", "longo prazo".
A prova definitiva de que era tudo fantasia, num mundo de maquete, para empreiteiros felizes e autoridades posando para fotos, enquanto davam entrevistas para jornalistas ingênuos, pode-se comprovar esta manhã.
A força há muito conhecida das "águas de março fechando o verão", celebrada desde em 1972 na belíssima voz de Elis Regina e no piano de Tom Jobim, produziu uma nova tragédia na maior e mais rica cidade brasileira. Pouco depois do meio-dia o número de mortos chegara a 11.
Pela TV, não era possível tirar o olho das milhares de pessoas a espera de ajuda no capô de seus carros. Eram senhoras sendo carregadas pelo resgate de helicóptero, famílias inteiras aguardando a vez de ir para um lugar seguro. Executivos que saem de casa com paletó, gravata e uma pasta na mão, usavam bermuda e chinelão.
Partilhei sua dor, fiquei comovido com sua paciência. Não esperavam um milagre. Vi cenas de choro e desorientação, até medo. Mas nenhuma de raiva. Aguardavam pela vez de subir num bote inflável, entrar numa rede para serem conduzidos até o resgate de helicóptero, quem sabe esperar a água baixar. Numa manhã de segunda-feira, logo após o carnaval, tinham um desejo simples, típico das tragédias tão destruidoras que se atravessa em silêncio. Queriam ser salvos.
Tragédias como a de hoje, nada tem a ver com praga divina nem ecológica. Mostram uma cidade que, fundada em 1554, ainda não se tornou dona de seu destino. Tantos direitos foram furtados, às vezes de forma invisível, ao longo de séculos.
Se há muito sabemos que os rios são uma benção insubstituível para a vida humana nas cidades, é preciso contar com autoridades capazes de reconhecer sua importância e tomar os cuidados correspondentes, protegendo uma dádiva da natureza, que temos a obrigação de transmitir a nossos descendentes. É um caso clássico da experiência do homem sobre a terra: a única forma de garantir a beleza do futuro é fazer as obrigações do tempo presente. Limpar, acima de tudo.
É um serviço peculiar. Rios limpos exigem investimentos e produzem bem-estar. Dificilmente dão lucro.
As cenas tristes de homens e mulheres olhando para céus são parte de um drama político, um novo dilúvio de incompetências instaladas há pelo menos um quarto de século no mesmo Palácio dos Bandeirantes do coquetel com refrigerantes e salgadinhos do início deste texto. Não é campanha eleitoral mas minha função de repórter me obriga a lembrar um fato relevante.
Entre a tarde daquele coquetel e a terrível manhã de hoje, o PSDB completa seu longo e ininterrupto reinado de 25 anos nos governos de São Paulo.
Claro que isso dizer alguma coisa.
Alguma dúvida?
Em minha vida de repórter, duas décadas atrás, cheguei a ser convidado para um evento do governo de São Paulo, com direito a refrigerante e salgadinhos, nos qual se anunciou um programa de recuperação do Tietê.
Acho que deve ser sido o penúltimo em um milhão de coquetéis desse tipo, nos quais era possível admirar uma maquete caprichada, que lembrava o cenário das cidades de brinquedo da infância. Homens e mulheres em miniatura, carrinhos de bebê, automóveis, guarda-chuvas.
Na ingenuidade que costuma marcar a profissão com mais frequência do que é costume admitir, cheguei a imaginar que um dia - quem sabe em companhia de netos - seria possível sair de casa aos domingos para passear às margens do Tietê.
Ou tomar uma cerveja e comer num sanduíche nas proximidades. Assistir a uma pelada entre os moradores do lugar, ou apenas olhar a paisagem, calmamente. Uma outra cidade parecia possível, quem sabe.
Com esta visão em mente, perguntei para um dos engenheiros presentes se era mesmo razoáveis imaginar que isso poderia ocorrer dentro de dez, quinze anos, quem sabe vinte.
O olhar perplexo do interlocutor denunciou meu delírio. Não se atreveu a falar em datas mas descreveu algo que em minhas lembranças queria dizer "processo", "investimentos", "longo prazo".
A prova definitiva de que era tudo fantasia, num mundo de maquete, para empreiteiros felizes e autoridades posando para fotos, enquanto davam entrevistas para jornalistas ingênuos, pode-se comprovar esta manhã.
A força há muito conhecida das "águas de março fechando o verão", celebrada desde em 1972 na belíssima voz de Elis Regina e no piano de Tom Jobim, produziu uma nova tragédia na maior e mais rica cidade brasileira. Pouco depois do meio-dia o número de mortos chegara a 11.
Pela TV, não era possível tirar o olho das milhares de pessoas a espera de ajuda no capô de seus carros. Eram senhoras sendo carregadas pelo resgate de helicóptero, famílias inteiras aguardando a vez de ir para um lugar seguro. Executivos que saem de casa com paletó, gravata e uma pasta na mão, usavam bermuda e chinelão.
Partilhei sua dor, fiquei comovido com sua paciência. Não esperavam um milagre. Vi cenas de choro e desorientação, até medo. Mas nenhuma de raiva. Aguardavam pela vez de subir num bote inflável, entrar numa rede para serem conduzidos até o resgate de helicóptero, quem sabe esperar a água baixar. Numa manhã de segunda-feira, logo após o carnaval, tinham um desejo simples, típico das tragédias tão destruidoras que se atravessa em silêncio. Queriam ser salvos.
Tragédias como a de hoje, nada tem a ver com praga divina nem ecológica. Mostram uma cidade que, fundada em 1554, ainda não se tornou dona de seu destino. Tantos direitos foram furtados, às vezes de forma invisível, ao longo de séculos.
Se há muito sabemos que os rios são uma benção insubstituível para a vida humana nas cidades, é preciso contar com autoridades capazes de reconhecer sua importância e tomar os cuidados correspondentes, protegendo uma dádiva da natureza, que temos a obrigação de transmitir a nossos descendentes. É um caso clássico da experiência do homem sobre a terra: a única forma de garantir a beleza do futuro é fazer as obrigações do tempo presente. Limpar, acima de tudo.
É um serviço peculiar. Rios limpos exigem investimentos e produzem bem-estar. Dificilmente dão lucro.
As cenas tristes de homens e mulheres olhando para céus são parte de um drama político, um novo dilúvio de incompetências instaladas há pelo menos um quarto de século no mesmo Palácio dos Bandeirantes do coquetel com refrigerantes e salgadinhos do início deste texto. Não é campanha eleitoral mas minha função de repórter me obriga a lembrar um fato relevante.
Entre a tarde daquele coquetel e a terrível manhã de hoje, o PSDB completa seu longo e ininterrupto reinado de 25 anos nos governos de São Paulo.
Claro que isso dizer alguma coisa.
Alguma dúvida?
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