Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:
Não se cultiva impunemente uma base de fanáticos. Por isso, Jair Bolsonaro preocupou-se, também em Israel, em reanimar seus seguidores mais fiéis – agora visivelmente acabrunhados – com uma dose extra de disparates. “Não há dúvidas” de que “o nazismo foi de esquerda”, disse ele na terça-feira (2/4), ecoando seu chanceler. Horas mais tarde, assegurou que o desemprego, novamente em alta, deve-se a um “erro de cálculo” do IBGE. Nesta fala, foi capaz de cometer “três erros em menos de um minuto”, segundo computou a Agência Lupa. Mas esta era a parte previsível, o teatro para a torcida. O novo, na viagem, foi a trama, por enquanto provisória, de um acordo. O presidente e os integrantes do consórcio heterogêneo de forças no poder deram-se conta de que não poderão seguir em completo desarranjo – e, pior, atacando-se uns aos outros. Costurou-se um entendimento mínimo, que visa impor à sociedade a Contrarreforma da Previdência. Os primeiros atos já foram encenados – mas ninguém sabe se funcionará.
A dança de reaproximação começou em 28/3, ainda antes da viagem presidencial a Israel. Semanas de paralisia do governo, e de bate-bocas com o Congresso e a mídia, haviam atingido em pontos cruciais a capacidade de ação de Bolsonaro. A popularidade despencara 15 pontos em dois meses. A proposta principal do governo estava empacada no Legislativo. Uma série de pautas-bombas ameaçava comprometer a governabilidade. Analistas políticos como Reinaldo Azevedo já falavam abertamente em impeachment. Algo disse ao presidente que o caminho o levaria a um desastre rápido. Fiel a seu estilo, ele recuou de modo furtivo. “Gostaria de atender mais políticos, mas o dia só tem 24 horas. Tenho que dormir”, disse. Rodrigo Maia, presidente da Câmara e até então oponente do capitão, compreendeu o aceno de imediato – e piscou de volta. As rusgas com Bolsonaro, disse poucas horas depois, eram “assunto encerrado”.
Mas como passar da intenção ao gesto, e tentar a paz? Coube mais uma vez à Presidência curvar-se àqueles que até pouco antes eram rotulados como “velha política”. Foram dois gestos. Na segunda-feira, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anunciou que já nesta quinta-feira, tão logo voltasse ao país, Bolsonaro avistaria os líderes dos partidos no Congresso, numa sequência de reuniões. Já haviam sido procuradas, revelou, precisamente as legendas notórias por trocar votos por verbas, cargos e outros favores: PRB, PP, PSB, MDB e DEM – o PSDB virá em seguida.
Ainda mais significativo foi o movimento que o outro articulador político de Bolsonaro – o general Santos Cruz, ministro da secretaria de Governo – fez na terça-feira (2/3). Numa espécie de prévia dos encontros que seu chefe iniciará amanhã, o general dirigiu-se ao Senado para um almoço com parlamentares de partidos com quem o Executivo quer negociar. Relatada pelo repórter Daniel Carvalho, da Folha, a conversa revela o esforço das duas partes para restaurar as práticas do “presidencialismo de coalizão” – as mesmíssimas que o capitão prometeu deixar para trás.
Santos Cruz pediu apoio dos senadores às “reformas” do governo. Um dos seus interlocutores, o senador William Fagundes (líder do bloco que reúne DEM, PR e PSC) explicou-lhe qual é a moeda de troca. “O Parlamento quer ajudar, mas também quer ser parceiro: nos ônus e nos bônus”… Significa restaurar a negociação das emendas com as quais deputados e senadores mantêm o controle sobre seus redutos eleitorais. “O Parlamento precisa dar a resposta na ponta”, argumentou Fagundes. “Quando a gente chega a uma cidade em que está creche inacabada, obra que falta governo liberar recurso para concluir, isso causa angústia em todos nós”… Ao final, o ministro reconheceu que levava uma lista com “uns vinte itens que são do interesse dos parlamentares”, como obras inacabadas e programas federais a retomar. Restaurava-se, abertamente, o toma-lá-dá-cá.
Que significaria, para o país, a consolidação de um entendimento entre o bolsonarismo e as bancadas conservadoras no Congresso? É possível um “rottweiler paz e amor”?
Na terça-feira, o ministro Paulo Guedes deixou escapar o que pode estar no gatilho do governo, se houver condições políticas. Ouvido pelo Valor, ele confirmou que pretende ver aprovados, no Congresso, os dispositivos que criam um sistema paralelo de Previdência – privado e por capitalização. Conforme demonstram diversos estudos [veja, por exemplo, este vídeo da Anfip], esta configuração esvazia e desmonta a Previdência pública por repartição – porque leva um número crescente de trabalhadores a deixar de contribuir com ele.
Mas Guedes quer mais. Ele acrescentou à repórter Cláudia Safatle que, neste “novo” sistema, os empregadores estariam dispensados da contribuição à Previdência, que equivale a 20% da folha de salários. A consequência é óbvia. Num tempo de elevadíssimo desemprego – e, portanto, enorme exército de reserva de trabalhadores – que empresa contrataria optantes pela Previdência pública, dispondo de uma alternativa que lhe permite (e a seus concorrentes…) redução expressiva de custos? A devastação começará de imediato.
Felizmente, os conservadores precisarão percorrer um longo trajeto – pontilhado de obstáculos – para que este cenário distópico concretize. As negociações entre Bolsonaro e os partidos, marcadas para começar nesta quinta, frutificarão? Os parlamentares estarão dispostos a pagar o preço (os “ônus” a que se referiu o senador Fagundes) – ainda mais agora, quando tanto governo quanto sua proposta sofreram considerável desgaste? Os “bônus” os contentarão? A opinião pública assistirá calada a uma negociação em que os políticos são recompensados, com dinheiro público, para eliminar direitos da maioria? As mobilizações da sociedade, já desencadeadas, arrefecerão? Será possível evitar que o presidente cometa novas gafes e destemperos?
O jogo segue aberto. A tentativa de reconciliação ajuda a alertar para os riscos a que estamos expostos. E convida a refletir sobre uma enorme lacuna. Diante de um governo incapaz de acenar com algo além de cortes, sofrimento e angústia, não é hora de propor uma alternativa? Até quando a oposição permanecerá na defensiva, apenas resistindo? Por quanto tempo perderá a oportunidade de sugerir um caminho baseado na expansão dos direitos, da atividade econômica, da participação, da democracia?
O bolsonarismo tem, já sabemos, imensa capacidade de sabotar a si mesmo. Mas os interesses por trás da ofensiva conservadora são muito poderosos. Para vencê-los, é preciso – e é perfeitamente possível – abrir um novo caminho. Deixar de fazê-lo é arriscar-se ao pior.
Não se cultiva impunemente uma base de fanáticos. Por isso, Jair Bolsonaro preocupou-se, também em Israel, em reanimar seus seguidores mais fiéis – agora visivelmente acabrunhados – com uma dose extra de disparates. “Não há dúvidas” de que “o nazismo foi de esquerda”, disse ele na terça-feira (2/4), ecoando seu chanceler. Horas mais tarde, assegurou que o desemprego, novamente em alta, deve-se a um “erro de cálculo” do IBGE. Nesta fala, foi capaz de cometer “três erros em menos de um minuto”, segundo computou a Agência Lupa. Mas esta era a parte previsível, o teatro para a torcida. O novo, na viagem, foi a trama, por enquanto provisória, de um acordo. O presidente e os integrantes do consórcio heterogêneo de forças no poder deram-se conta de que não poderão seguir em completo desarranjo – e, pior, atacando-se uns aos outros. Costurou-se um entendimento mínimo, que visa impor à sociedade a Contrarreforma da Previdência. Os primeiros atos já foram encenados – mas ninguém sabe se funcionará.
A dança de reaproximação começou em 28/3, ainda antes da viagem presidencial a Israel. Semanas de paralisia do governo, e de bate-bocas com o Congresso e a mídia, haviam atingido em pontos cruciais a capacidade de ação de Bolsonaro. A popularidade despencara 15 pontos em dois meses. A proposta principal do governo estava empacada no Legislativo. Uma série de pautas-bombas ameaçava comprometer a governabilidade. Analistas políticos como Reinaldo Azevedo já falavam abertamente em impeachment. Algo disse ao presidente que o caminho o levaria a um desastre rápido. Fiel a seu estilo, ele recuou de modo furtivo. “Gostaria de atender mais políticos, mas o dia só tem 24 horas. Tenho que dormir”, disse. Rodrigo Maia, presidente da Câmara e até então oponente do capitão, compreendeu o aceno de imediato – e piscou de volta. As rusgas com Bolsonaro, disse poucas horas depois, eram “assunto encerrado”.
Mas como passar da intenção ao gesto, e tentar a paz? Coube mais uma vez à Presidência curvar-se àqueles que até pouco antes eram rotulados como “velha política”. Foram dois gestos. Na segunda-feira, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anunciou que já nesta quinta-feira, tão logo voltasse ao país, Bolsonaro avistaria os líderes dos partidos no Congresso, numa sequência de reuniões. Já haviam sido procuradas, revelou, precisamente as legendas notórias por trocar votos por verbas, cargos e outros favores: PRB, PP, PSB, MDB e DEM – o PSDB virá em seguida.
Ainda mais significativo foi o movimento que o outro articulador político de Bolsonaro – o general Santos Cruz, ministro da secretaria de Governo – fez na terça-feira (2/3). Numa espécie de prévia dos encontros que seu chefe iniciará amanhã, o general dirigiu-se ao Senado para um almoço com parlamentares de partidos com quem o Executivo quer negociar. Relatada pelo repórter Daniel Carvalho, da Folha, a conversa revela o esforço das duas partes para restaurar as práticas do “presidencialismo de coalizão” – as mesmíssimas que o capitão prometeu deixar para trás.
Santos Cruz pediu apoio dos senadores às “reformas” do governo. Um dos seus interlocutores, o senador William Fagundes (líder do bloco que reúne DEM, PR e PSC) explicou-lhe qual é a moeda de troca. “O Parlamento quer ajudar, mas também quer ser parceiro: nos ônus e nos bônus”… Significa restaurar a negociação das emendas com as quais deputados e senadores mantêm o controle sobre seus redutos eleitorais. “O Parlamento precisa dar a resposta na ponta”, argumentou Fagundes. “Quando a gente chega a uma cidade em que está creche inacabada, obra que falta governo liberar recurso para concluir, isso causa angústia em todos nós”… Ao final, o ministro reconheceu que levava uma lista com “uns vinte itens que são do interesse dos parlamentares”, como obras inacabadas e programas federais a retomar. Restaurava-se, abertamente, o toma-lá-dá-cá.
Que significaria, para o país, a consolidação de um entendimento entre o bolsonarismo e as bancadas conservadoras no Congresso? É possível um “rottweiler paz e amor”?
Na terça-feira, o ministro Paulo Guedes deixou escapar o que pode estar no gatilho do governo, se houver condições políticas. Ouvido pelo Valor, ele confirmou que pretende ver aprovados, no Congresso, os dispositivos que criam um sistema paralelo de Previdência – privado e por capitalização. Conforme demonstram diversos estudos [veja, por exemplo, este vídeo da Anfip], esta configuração esvazia e desmonta a Previdência pública por repartição – porque leva um número crescente de trabalhadores a deixar de contribuir com ele.
Mas Guedes quer mais. Ele acrescentou à repórter Cláudia Safatle que, neste “novo” sistema, os empregadores estariam dispensados da contribuição à Previdência, que equivale a 20% da folha de salários. A consequência é óbvia. Num tempo de elevadíssimo desemprego – e, portanto, enorme exército de reserva de trabalhadores – que empresa contrataria optantes pela Previdência pública, dispondo de uma alternativa que lhe permite (e a seus concorrentes…) redução expressiva de custos? A devastação começará de imediato.
Felizmente, os conservadores precisarão percorrer um longo trajeto – pontilhado de obstáculos – para que este cenário distópico concretize. As negociações entre Bolsonaro e os partidos, marcadas para começar nesta quinta, frutificarão? Os parlamentares estarão dispostos a pagar o preço (os “ônus” a que se referiu o senador Fagundes) – ainda mais agora, quando tanto governo quanto sua proposta sofreram considerável desgaste? Os “bônus” os contentarão? A opinião pública assistirá calada a uma negociação em que os políticos são recompensados, com dinheiro público, para eliminar direitos da maioria? As mobilizações da sociedade, já desencadeadas, arrefecerão? Será possível evitar que o presidente cometa novas gafes e destemperos?
O jogo segue aberto. A tentativa de reconciliação ajuda a alertar para os riscos a que estamos expostos. E convida a refletir sobre uma enorme lacuna. Diante de um governo incapaz de acenar com algo além de cortes, sofrimento e angústia, não é hora de propor uma alternativa? Até quando a oposição permanecerá na defensiva, apenas resistindo? Por quanto tempo perderá a oportunidade de sugerir um caminho baseado na expansão dos direitos, da atividade econômica, da participação, da democracia?
O bolsonarismo tem, já sabemos, imensa capacidade de sabotar a si mesmo. Mas os interesses por trás da ofensiva conservadora são muito poderosos. Para vencê-los, é preciso – e é perfeitamente possível – abrir um novo caminho. Deixar de fazê-lo é arriscar-se ao pior.
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