domingo, 5 de maio de 2019

Quem a polícia prende e quem a justiça solta?

Por Roberta Canheo, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

As audiências de custódia, instituídas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2015, constituem um instrumento importante, por se tratarem do primeiro encontro da pessoa com a autoridade judicial, após sua prisão em flagrante. Nesse sentido, o programa Justiça Sem Muros, do ITTC, realizou a pesquisa “MulhereSemPrisão: enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal”, para analisar como o sistema de justiça criminal valora, prende ou concede liberdade a determinadas mulheres, neste que é o primeiro filtro do Poder Judiciário.

Mais de 200 mulheres em audiências de custódia foram acompanhadas nos fóruns criminais da capital de São Paulo e da comarca de Osasco, além de entrevistas com profissionais que participam do procedimento no estado terem sido realizadas.

Um dos principais pontos do relatório consiste na tentativa de apresentar as diferenças, rupturas e continuidades de dois momentos do processamento criminal de mulheres: a prisão em flagrante e as destinações que são dadas no momento da audiência, seja o relaxamento do flagrante, a liberdade provisória, a prisão domiciliar ou a prisão preventiva. Em outras palavras, os dados trazidos pela pesquisa permitem a apreciação dos processos de criminalização na atuação policial mediante à realização de prisões em flagrante e nas audiências de custódia.

Partindo das audiências acompanhadas durante a pesquisa, entre dezembro de 2017 e abril de 2018, foram constatadas as seguintes porcentagens de crimes indicados como originários de prisões em flagrante: 39,44% por furto; 35,68% por tráfico de drogas; 10,33% por roubo; 6,10% por estelionato; 5,16% por receptação; 4,69% por corrupção de menor; 2,35% por associação criminosa; e 13,61% por tipos penais diversos.

No tocante ao primeiro momento, os índices sugerem que o policiamento na região metropolitana de São Paulo é pautado por uma defesa ostensiva do patrimônio (os crimes patrimoniais representam praticamente 60% dos casos). Quando esses dados são cruzados, por sua vez, com características raciais e socioeconômicas das mulheres, tem-se a reiteração do perfil preferencial à seletividade policial. Os casos acompanhados apontam que é nessa fase que a seletividade racial se mostra mais contundente: 56,81% das prisões em flagrante foram de mulheres negras, e 72,5% das mulheres que alegaram ter sofrido violência no momento da prisão também eram negras. Assim, além de serem alvos preferenciais de prisões em flagrante, mulheres negras estão mais suscetíveis à violência no momento em que essas ocorrem.

O segundo momento, por sua vez, indica maior peso no tocante à criminalização de crimes relacionados a drogas. A prisão em flagrante foi convertida em preventiva em 73,7% dos casos acompanhados, sendo substituída pela prisão domiciliar em apenas 3,95%. Esse elevado índice, bem como o alto número de pedidos do Ministério Público requerendo a prisão preventiva (76,32%), aponta para a conclusão de que, em São Paulo, a “guerra às drogas’’ parece se fazer de maneira ainda mais acentuada nos tribunais do que nas ruas.

Essa conclusão é reforçada quando os argumentos mobilizados para se negar a concessão de medidas diversas ao cárcere são os que utilizam da relação entre a maternidade e o tráfico de drogas para dar peso à gravidade do fato, ou, então, estão calcados em uma ainda remanescente noção de hediondez atrelada a esse tipo penal. Nesse sentido, tais tipos penais são colocados no lugar de incompatíveis com a liberdade provisória e com a prisão domiciliar, por exemplo, ainda que não haja amparo e fundamentos legais para tanto.

De acordo com atores entrevistados pela equipe, houve um recrudescimento na linha decisória do Fórum Criminal da Barra Funda, especialmente no que concerne a esses crimes, a partir da mudança do corpo de juízes realizada em janeiro de 2018.

Com o início do mandato do atual desembargador presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, deu-se a designação de nova juíza para o cargo de Corregedora do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária da Capital (DIPO), responsável pela substituição dos magistrados atuantes nas audiências de custódia do fórum. Segundo uma promotora entrevistada: “desde o início até ano passado, a soltura em caso de tráfico de entorpecentes era quase que a regra (…) hoje em dia, a regra é para prisão preventiva em caso de tráfico de entorpecentes.”

A título de comparação, os casos registrados de furto alcançam o percentual de 39,44%, cifra um pouco acima dos crimes relacionados a drogas. Para esses crimes, a prisão preventiva foi decretada em 8,3% dos casos, sendo substituída pela prisão domiciliar em 2,38% dos casos.

Ambos os tipos, furto e tráfico de drogas, são crimes praticados sem violência e, portanto, são capazes de ensejar medidas alternativas ao cárcere. O que os dados trazidos pela pesquisa mostram é que, de um lado, como já assinalado, há um policiamento ostensivo, que tem em seu cerne a defesa da propriedade privada como prioridade. Isso pode ser inferido quando constatamos que o furto é o principal tipo penal pelo qual as mulheres são presas em flagrante, mas não figura entre os índices mais altos de decretação de prisão preventiva. Ou seja, se pensarmos na taxa de conversão da prisão em flagrante em preventiva, no caso do crime de furto, ela pode ser considerada relativamente baixa quando comparada aos demais tipos penais.

De outro lado, o que os resultados da pesquisa nos trazem é a visualização do tráfico de drogas enquanto crime que possui uma periculosidade/gravidade abstrata. Ao contrário do tipo penal de furto, o tráfico de drogas apresenta uma alta taxa de conversão.

Voltando à questão da seletividade racial, o tráfico também apresenta uma maior diferença quando se cruza os dados de cor/raça com as prisões em flagrante: 59,21% das mulheres acusadas de tráfico são negras, ao passo que 40,79% são brancas. Quando analisamos as prisões preventivas decretadas em razão desse crime, temos que 56,6% das mulheres são negras, enquanto 43,4% são brancas.

De maneira geral, o que esses e demais dados da pesquisa apresentam são a forma como operam os mecanismos de processamento das mulheres nesse filtro do sistema de justiça criminal que é a audiência de custódia. O perfil que entra e que por esse filtro perpassa é, portanto, efeito dos processos de criminalização, estratificação de classe, racialização e generificação, que se produzem e se articulam de forma coextensiva e indissociável, sendo o sistema de justiça criminal um dos vetores dessa produção. Neste sentido, o sistema não se volta simplesmente de forma privilegiada para mulheres negras e pobres, mas participa de processos de generificação, racialização e empobrecimento, colaborando para assinalar o lugar social desses corpos.

O relatório será lançado no dia 7 de maio, na Matilha Cultural, às 18h. Mais informações estão disponíveis aqui.

* Roberta Canheo é doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Programa Justiça Sem Muros do ITTC.

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