quarta-feira, 17 de julho de 2019

A Justiça que retalha a si própria

Por Grazielle Albuquerque, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Há pouco mais de um mês o cenário político brasileiro foi dominado pelo vazamento das conversas entre o atual ministro da Justiça e ex-juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro, e Deltan Dallagnol, procurador da República e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato. Assim, desde o dia 9 de junho, quando o site The Intercept divulgou a primeira troca de mensagens, boa parte da discussão sobre a conjuntura política brasileira passou pelos diálogos privados que se davam nos subterrâneos da chamada República de Curitiba. Para usar um termo técnico, no inventário de temas, a #VazaJato tem levantado questões sobre a imparcialidade do juiz, a agenda do Judiciário e uma série de pontos sobre o funcionamento da própria Justiça. Essas questões já são por si muito perigosas. Contudo, se tivermos em mente como, há pouco mais de uma década, o Judiciário era um ilustre desconhecido e agora tem que lidar com questionamentos em praça pública, as consequências se exacerbam. 

Outro ponto soma-se aos já mencionados: o fato de que os dois principais personagens dessa trama, Moro e Dallagnol, acabaram por evidenciar a ação política do Sistema de Justiça. Ao cruzar essa fronteira, a tendência a médio e longo prazo é de que a Justiça passe a estar na disputa pública nas mesmas condições que tradicionais atores políticos. Ao relegar sua natureza na qual os fins não justificam os meios, a Justiça se coloca na condição de ser julgada publicamente como parte interessada, e não mais como árbitra. Mesmo o Ministério Público, que atua como acusador mas é também fiscal da lei, fica emparedado nesse debate. Essas são questões importantes e parecem, num primeiro momento, ter como referência a Operação Lava Jato.

O “detalhe” da democracia

Mas vale sair da superfície e ver fatores mais complexos desse enredo. Basicamente, dois: a relação entre um Judiciário visto como ator político e a democracia e, ao seu lado, a face da Justiça bolsonarista. Alguns dados indicam o caminho desse cadafalso. No dia 8 de julho, o site de notícias jurídicas Jota, publicou uma pesquisa feita em parceria com o Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (Ibpad), na qual 32,9% dos entrevistados afirmaram concordar com a frase “Em algumas situações, o governo deve fechar o Supremo Tribunal Federal”. A pesquisa é minuciosa e teve uma importante repercussão ao apontar, através de números, um sentimento antagônico ao Supremo que vem se desenhando nas ruas e nas redes sociais. Vale lembrar que no episódio do inquérito secreto contra as fake news, o STF conseguiu juntar em sua oposição veículos editorialmente opostos como os sites The Intercept e O Antagonista.

Saindo da esfera midiática, ao focar na ruas, o Supremo foi alvo de críticas à esquerda, durante a onda de protestos que fizeram parte do processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Os apoiadores do governo Dilma apontavam a atuação do Tribunal de forma seletiva como um dos elementos centrais do seu impedimento. Pouco tempo depois, em uma passeata pró-Lava Jato, em dezembro de 2016, era possível ver na avenida Paulista como fora aberto um fosso; dessa vez eram os apoiadores da operação que criticavam os ministros do STF. Assim, agora as críticas ao Supremo vinham pela direita.

A essa altura talvez o leitor se pergunte em que ponto o argumento sobre as críticas ao Supremo, no que hoje parece o longínquo ano de 2016, tem relação com a conjuntura atual. Pois bem, retomemos a pesquisa Jota/Ibpad. Um dos pontos levantados é que a descrença com a democracia brasileira aparece com índices mais acentuados entre as pessoas que dão maior apoio ao presidente Jair Bolsonaro.

Em outra pesquisa recente, também do dia 8, o Instituto Datafolha mostra dados de um país dividido em três partes, onde praticamente cada terço da população tem opiniões distintas sobre o governo Bolsonaro. Retirando os 31% que consideram o governo regular e os 33% que atribuem termos como ótimo ou bom, sobram 33% cuja classificação está em ruim ou péssimo. Os números colocam Bolsonaro como o presidente com a pior avaliação no início do mandato desde a presidência de Fernando Collor de Mello (1990-92), também alvo de impeachment. Coincidentemente, Bolsonaro consolida sua margem de apoio, com os piores números, quando a #VazaJato aumenta sua repercussão, após a decisão do Intercept de compartilhar dados com a revista Veja e a Folha de São Paulo. Embora não se possa alegar causa e efeito, ao menos cronologicamente esses fatores se coadunam.

Há, assim, uma clara ligação entre os apoiadores do governo e aqueles que se opõem ao Supremo. É neste ponto que os temas da democracia e do bolsonarismo se juntam, deixando a Justiça no corner. Aqui vale ressaltar o óbvio: quando o ex-juiz Moro passa a integrar a equipe de Bolsonaro, a Lava Jato, em muitos aspectos, se cola ao governo de forma definitiva. Moro que chegou a ser tido como reserva moral e técnica do governo, passou de fiador a devedor do bolsonarismo, capturado pela mesma base de apoio. Dito sem rodeios: Moro está dependente do bolsonarismo, enquanto a Lava Jato vive dias de cobranças sem precedentes.

Disputa suicida

Mais uma vez a Justiça aparece na armadilha entre o desapego democrático e o apoio do bolsonarismo. De um lado há uma espécie de equação que se dá pela ideia de mensuração do apoio público ao Supremo Tribunal Federal, e, com ênfase, seu descrédito ligado à base social do governo. De outro, na primeira instância, no entorno da figura de Sergio Moro e da operação Lava Jato, a ligação acontece em sentido inverso. Ainda que por uma ilação, baseada na própria relação entre ministro da Justiça e o presidente, temos mais uma vez o apoio à “Justiça” (ou a algo com o qual esse ideário tem traços de identificação) engolfado pelo bolsonarismo.

Dito de outra forma, não seria um erro pensar que a Justiça se colocou numa enrascada. Enquanto sua cúpula é antagonizada pelos apoiadores do governo, a base se prende a esse mesmo quinhão. Uma disputa entre dois polos que, sem exageros, pode ser ilustrada por um suicídio institucional. Em síntese, não só a Lava Jato se opõe ao Supremo, como ambas as extremidades da Justiça estão enredadas pela base de apoio governamental. Em um eixo a Justiça se defende do bolsonarismo, no outro depende dele. Seja qual for o caminho, essa mecânica parece ser uma chave interpretativa. Dois vetores de entendimento, ou talvez uma lança de duas pontas para ilustrar a Justiça que retalha a si própria.

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