Por Oscar Ranzani, no site Carta Maior:
Quando Petra Costa nasceu, o Brasil não podia votar: havia uma ditadura cruel, que governou o país entre 1964 e 1985; ou seja, por mais de duas décadas. Costa sabe bem o que significou aquele governo, e a presença dos militares nas ruas: seus pais foram militantes do Partido Comunista naqueles anos obscuros, e tiveram que sobreviver muito tempo na clandestinidade. Sua família vive bem claramente a polarização – assim como a que existe na Argentina –, já que parte dela é de direita e integrante da elite econômica do país. Seus pais, no entanto, foram perseguidos por aqueles que o músico argentino Charly García denominou “botas loucas”.
Quando Petra Costa nasceu, o Brasil não podia votar: havia uma ditadura cruel, que governou o país entre 1964 e 1985; ou seja, por mais de duas décadas. Costa sabe bem o que significou aquele governo, e a presença dos militares nas ruas: seus pais foram militantes do Partido Comunista naqueles anos obscuros, e tiveram que sobreviver muito tempo na clandestinidade. Sua família vive bem claramente a polarização – assim como a que existe na Argentina –, já que parte dela é de direita e integrante da elite econômica do país. Seus pais, no entanto, foram perseguidos por aqueles que o músico argentino Charly García denominou “botas loucas”.
Não é casual que, a partir dessa história familiar, Costa iniciasse uma narrativa sobre a etapa mais gloriosa do seu país, quando o operário metalúrgico e líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, foi eleito presidente duas vezes, e em oito anos de governo tirou 20 milhões de brasileiros da miséria, entre outras grandes façanhas. Mas assim com falou dessa ascensão, também contou sobre a queda, através do impeachment contra a sucessora de Lula, Dilma Rousseff, e os posteriores efeitos da Operação Lava Jato, produto de uma premeditada aliança entre a direita brasileira e o “Partido” Judiciário, que contou com o apoio midiático para dar o golpe contra a presidenta eleita democraticamente. E foi também assim que se evitou o retorno ao poder do líder mais carismático que o Brasil já teve. Tudo isso está presente no documentário de Costa, Democracia em Vertigem, que pode ser visto no atualmente no Netflix.
Narrado em primeira pessoa, o filme tem como estrutura sonora a voz em off da diretora, que se revela uma investigadora meticulosa, relatando a campanha contra o Partido dos Trabalhadores (PT), a Operação Lava Jato, o oportunismo do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), a ausência chamativa de partidos do centro, os protestos nas ruas desde 2013, o processo judicial contra Lula, o juízo político contra Dilma, até desembocar no crescimento do ultradireitista Jair Bolsonaro, atual presidente do país. Vale recordar que quando competia contra um Lula livre, Bolsonaro contava com somente 15% intenção de voto. Algo muito interessante no documentário de Costa é que não economiza em críticas ao PT, questionando certa vacilação diante dos problemas da corrupção, que afetou a maioria dos partidos políticos do Brasil. Entretanto, a diretora não é ingênua e não confunde vacas com porcos: deixa claro que o ocorrido com Lula e Dilma teve características de golpe de Estado judicial e legislativo.
No momento de maior conflito, quando Dilma era presidenta e Lula iria ser nomeado se chefe de gabinete, uma conversa privada entre eles foi vazada, e se tornou o pontapé inicial de uma operação feroz, que terminou prejudicando o fundador do PT e bagunçando o tabuleiro político. Chama a atenção o fato de que aquele grampo chegou às mãos das corporações midiáticas que ajudaram a prender Lula, e que antes apoiaram o golpe contra Dilma. Seis horas depois de produzido o diálogo telefônico entre os dois políticos, a conversa já estava sendo difundida publicamente. Logo, veio o processo contra Lula – que é mostrado no documentário em ritmo de thriller –, acusado pela Operação Lava Jato de ter recebido um departamento. Apesar de que nunca foi comprovado o crime, o juiz federal Sérgio Moro o condenou, e evitou que o homem que ergueu o Brasil pudesse competir novamente pela presidência. É preciso entender o contexto: Lula era o favorito nas pesquisas, e sua ausência deixou o terreno aberto para que um xenófobo e misógino assumisse o poder. Posteriormente, Moro cobrou o favor: recebeu de Bolsonaro o cargo de ministro da Justiça. “Hoje, ao sentir a terra se abrir, temo que nossa democracia não tenha sido mais que um sonho efêmero”, comenta Costa, quase no começo do documentário, embora esse trecho também poderia servir como desfecho. Como foi que o país passou tão rápido do sonho ao pesadelo é parte do caminho que o documental tenta mostrar. As imagens de Lula erguido numa verdadeira maré humana, que pede a ele que não se entregue à polícia, enquanto outro setor da cidade grita pela sua prisão, mostra um contraste que permite entender que a Argentina não pagou direitos autorais pela polarização: o Brasil também é um espelho nesse sentido. De algum modo, no terreno político, a injustiça não é só brasileira.
Costa parece se perguntar a si mesma o que aconteceu para que um homem que terminou o mandato com 87% de imagem positiva tivesse sua carreira política afetada dessa forma. E nos mostra como argumentos as traições políticas dos aliados do PT, que o levaram a uma enrascada sem destino político. A queda terminou sendo o sucesso de um complô, que precisou contar com grandes apoios para poder ser concretizado.
Esse entrelaçamento constante entre o público e o íntimo é o tom que Costa imprimou em sua conversa com os espectadores, para contar os episódios nos que se concretizou uma história que talvez tenha carecido de mortos, mas que finalmente teve ares de tragédia, e que sacudiu este Brasil contemporâneo como se fosse um sismo violento. “De onde tirar forças para caminhar entre as ruínas e começar de novo?”, pergunta a voz em off da diretora. Isso só Lula sabe. A julgar pelos fatos, a batalha interior continua. Como diz o ditado: não está morto quem peleja.
* Publicado originalmente no jornal argentino Página/12. Tradução de Victor Farinelli.
Narrado em primeira pessoa, o filme tem como estrutura sonora a voz em off da diretora, que se revela uma investigadora meticulosa, relatando a campanha contra o Partido dos Trabalhadores (PT), a Operação Lava Jato, o oportunismo do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), a ausência chamativa de partidos do centro, os protestos nas ruas desde 2013, o processo judicial contra Lula, o juízo político contra Dilma, até desembocar no crescimento do ultradireitista Jair Bolsonaro, atual presidente do país. Vale recordar que quando competia contra um Lula livre, Bolsonaro contava com somente 15% intenção de voto. Algo muito interessante no documentário de Costa é que não economiza em críticas ao PT, questionando certa vacilação diante dos problemas da corrupção, que afetou a maioria dos partidos políticos do Brasil. Entretanto, a diretora não é ingênua e não confunde vacas com porcos: deixa claro que o ocorrido com Lula e Dilma teve características de golpe de Estado judicial e legislativo.
No momento de maior conflito, quando Dilma era presidenta e Lula iria ser nomeado se chefe de gabinete, uma conversa privada entre eles foi vazada, e se tornou o pontapé inicial de uma operação feroz, que terminou prejudicando o fundador do PT e bagunçando o tabuleiro político. Chama a atenção o fato de que aquele grampo chegou às mãos das corporações midiáticas que ajudaram a prender Lula, e que antes apoiaram o golpe contra Dilma. Seis horas depois de produzido o diálogo telefônico entre os dois políticos, a conversa já estava sendo difundida publicamente. Logo, veio o processo contra Lula – que é mostrado no documentário em ritmo de thriller –, acusado pela Operação Lava Jato de ter recebido um departamento. Apesar de que nunca foi comprovado o crime, o juiz federal Sérgio Moro o condenou, e evitou que o homem que ergueu o Brasil pudesse competir novamente pela presidência. É preciso entender o contexto: Lula era o favorito nas pesquisas, e sua ausência deixou o terreno aberto para que um xenófobo e misógino assumisse o poder. Posteriormente, Moro cobrou o favor: recebeu de Bolsonaro o cargo de ministro da Justiça. “Hoje, ao sentir a terra se abrir, temo que nossa democracia não tenha sido mais que um sonho efêmero”, comenta Costa, quase no começo do documentário, embora esse trecho também poderia servir como desfecho. Como foi que o país passou tão rápido do sonho ao pesadelo é parte do caminho que o documental tenta mostrar. As imagens de Lula erguido numa verdadeira maré humana, que pede a ele que não se entregue à polícia, enquanto outro setor da cidade grita pela sua prisão, mostra um contraste que permite entender que a Argentina não pagou direitos autorais pela polarização: o Brasil também é um espelho nesse sentido. De algum modo, no terreno político, a injustiça não é só brasileira.
Costa parece se perguntar a si mesma o que aconteceu para que um homem que terminou o mandato com 87% de imagem positiva tivesse sua carreira política afetada dessa forma. E nos mostra como argumentos as traições políticas dos aliados do PT, que o levaram a uma enrascada sem destino político. A queda terminou sendo o sucesso de um complô, que precisou contar com grandes apoios para poder ser concretizado.
Esse entrelaçamento constante entre o público e o íntimo é o tom que Costa imprimou em sua conversa com os espectadores, para contar os episódios nos que se concretizou uma história que talvez tenha carecido de mortos, mas que finalmente teve ares de tragédia, e que sacudiu este Brasil contemporâneo como se fosse um sismo violento. “De onde tirar forças para caminhar entre as ruínas e começar de novo?”, pergunta a voz em off da diretora. Isso só Lula sabe. A julgar pelos fatos, a batalha interior continua. Como diz o ditado: não está morto quem peleja.
* Publicado originalmente no jornal argentino Página/12. Tradução de Victor Farinelli.
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