segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O mal estar da mitomania no Brasil

Por Flavio Aguiar, no site Carta Maior:

Aprendi que o mitômano é alguém que mente compulsivamente. É um obsessivo. Não pode parar de mentir. Mas não é um alucinado. O que ele conta tem ares de verdade. Só que não é. A sua mentira é ele mesmo.

Como não sou especializado em psicos - psicologia, psicanálise, psiquiatria - não me sinto capacitado a fazer uma análise das figuras do nosso governo, como Bolsonaro e família, Damares, Weintraub, Moro, Guedes et alii. Entretanto, tenho larga e profunda experiência acadêmica em analisar personagens de ficção. Assim, me sinto autorizado a analisar as personas que aquelas figuras criaram e recriam todos os dias para sobreviver politicamente. E são todas elas mitômanas, ou seja, mentirosas compulsiva e obsessivamente.

Vamos por partes. Nem sempre a mentira é maligna. Exemplos literários: o Barão de Münchäusen, ou o Romualdo, dos Casos do Romualdo, do nosso Simões Lopes Neto. Porque nestes casos, as aventura fantásticas que eles narram são assumidas como tal. Você não precisa acreditar que o contador das histórias encilhou uma onça para fugir no mato (Romualdo) ou se ergueu do pântano com seu cavalo puxando seus próprios cabelos para cima (Münchäusen), para se divertir com elas. Nem mesmo precisa acreditar que o contador acredita, ele mesmo, nelas. Basta que ele saiba conta-las bem.

Já o tom de um conto como “Meu tio, o iauaretê”, de Guimarães Rosa, é inteiramente outro. Trata-se de um caboclo nos fundos de um sertão brasileiro, que aprendeu, quando criança, que seu clã indígena descendia dos jaguares (onças). Acontece que os seus pares indígenas sabem que isto se refere a um tempo que deixou de existir, e que seu valor hoje é simbólico. Ele não. Passa a acreditar que, de fato, ele não só descende dos jaguares, como passa a se comportar como um, e até se apaixona por uma jaguareza. Aqui temos uma das chaves da mitomania: o personagem, rejeitado por tudo e por todos, ressentido, se reinventa: ele é seu próprio mito recontado, e a consequência disto é que ele não tem mais saída, a não ser continuar contando a mesma história, se reinventando a cada passo. Como diz a professora Walnice Nogueira Galvão em brilhante ensaio sobre o tema, embora por outros motivos, o retorno é impossível, para qualquer lado: o contador de si mesmo torna-se prisioneiro da imagem que inventou, e que o reinventa para sempre, embora nem consiga chegar ao ponto de torna-la verdade, mas também não consegue mais voltar a ser o que era: seu eu primordial, esquecido, foi usurpado pela personalidade fake (para usar termo da moda); se aquele eu esquecido retorna, o resultado é uma tragédia - que é o que acontece com o personagem do conto de Guimarães Rosa.

Algo parecido está acontecendo com os protagonistas deste pior governo de nossa história e também com o cortejo de seus apoiadores que ficam gritando histérica e estupidamente para seu chefe, bem a propósito, "mito, mito”, sem saber muito bem o que estão vociferando.

O presidente fica continuamente oscilando entre o chefe da quadrilha e família que racha salários de funcionários fake, que convive com milícias assassinas (para dizer o mínimo) e a imagem construída de um caçador do Santo Graal, cavaleiro “sans tache e sans reproche”, que ele vendeu para se eleger. O resultado desta esquizofrenia assumida como estilo de comportamento é o dos contínuos destemperos ao se confrontar com perguntas que fogem ao script do personagem que ele criou para si mesmo, quando agride quem o interroga de maneira para ele “intempestiva”.

De Damares e Weintraub nem se precisa falar muito. Damares é um caso limite em que a personalidade criada tende ao delírio e à alucinação. Nem me refiro ao Jesus Cristo da Goiabeira: penso no que lhe aconteceu quando deu sua entrevista com um “silêncio obsequioso”, entrando nela, por ela convocada, saindo sem dizer palavra. Trata-se de um caso patético de auto-mutilação da fala. Weintraub é o oposto: não consegue conter a própria boca e por ela vomita plantações inexistentes de maconha para recobrir sua absoluta incapacidade não só de ser ministro, mas de se controlar.

Guedes é um caso muito curioso. Vive justificando o que deixou de fazer. Promete reerguer a economia; não o fez, não faz, não o fará. Em algum canto de si mesmo sabe disto. Então passa a usar os outros: como foram pacientes com os governos os de esquerda e agora com ele não são? Mas por aqui se entra no terreno mais complicado do comportamento coletivo: a mídia corporativa, que aborrece Bolsonaro depois de te-lo ajudado a se eleger, apoia a nadificação que Guedes é. Chama variações mínimas no PIB catastrófico que temos de “recuperação”, inventando um Brasil que não existe apenas para consumo próprio e para justificar a persona de “representante dos valores do Primeiro Mundo entre nós” com que tenta se justificar cotidianamente.

Porém o caso mais curioso e ao mesmo tempo mais sinistro é o do ministro da Justiça. Comprimido entre o ego ideal de justiceiro de que se alimentou durante seu império na Lava Jato e a realidade de ter se tornado o leão de chácara de um governo sem pé nem cabeça, se reinventa como uma espécie de oráculo cego que nada vê do que se passa a seu redor, mas que também não é capaz de ver nada adiante do próprio nariz em direção ao futuro, a não ser sua desmedida ambição em busca de algum tipo - qualquer - de poder. De todos, é o caso mais complicado. E ameaçador.

Bom, falei dos personagens que eles - os protagonistas desta imensa farsa chamada governo Bolsonaro - inventam para se justificar perante o vazio com que defrontam ao se olhar no espelho cotidianamente. O resto é, de fato, silêncio, porque os personagens “verdadeiros”, que eles deixaram para trás, ao se tornarem os fantasmas que são, não tem mais nada a dizer, pelo menos por ora. E se um dia recuperarem o poder da palavra, destroçando estas figuras de papelão, e que fazem um papelão, o resultado pode ser uma tragédia shakespereana, mais para Macbeth do que para Hamlet.

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