Tariq Ali |
Em 21 de março de 2003, uma coalizão liderada pelos Estados Unidos invadiu o Iraque. Foi o desfecho de uma guerra anunciada e da polêmica acerca de sua necessidade – cujo fórum privilegiado foi a ONU, mas também as ruas, palco de um protesto mundial, em 15 de fevereiro, que mobilizou cerca de oito milhões de pessoas.
A intenção do exército norte-americano, efetivamente posta em prática, de permanecer no Iraque depois do fim da guerra e da deposição de Saddam Hussein causou perplexidade geral. As potências do Ocidente estariam retornando à “Era dos Impérios” e aos métodos neocoloniais de ocupação territorial? O século XX não havia consolidado, em todo o mundo, a política de “descolonização”? Os Estados Unidos não haviam obtido sua hegemonia incontestável, em parte devido ao seu discurso e à sua ação em favor da autonomia e independências nacionais? As guerras pontuais, após 1945, não foram apenas escaramuças em fronteiras de um mundo dividido pela Guerra Fria e que, com o fim desta, estavam destinadas a desaparecer?
Da perplexidade inicial brotou uma torrente de explicações. As justificativas de George W. Bush e Tony Blair transitaram rapidamente da “ameaça das armas de destruição em massa”, supostamente em poder de Saddam Hussein, à necessidade de implantar a “democracia” no Oriente Médio, numa inversão que buscou transformar a “ocupação” em uma guerra de “libertação”. Os liberais que discordaram da oportunidade e da forma com que foi conduzido o conflito atribuíram essa recaída nos métodos do passado ao “neoconservadorismo” de um círculo dotado de considerável influência sobre George W. Bush. Alguns marxistas – entre os quais se destaca David Harvey – procuraram reativar a teoria do “imperialismo”, desenvolvida no início do século XX.
O livro de Tariq Ali escrito na ocasião, Bush na Babilônia (Record, 20030 fornece uma resposta surpreendente a essas questões, capaz de sustentar-se em si mesma como o “ovo de Colombo”. Nascido no Paquistão, formado em Oxford, editor da prestigiosa revista New Left Review, Tariq Ali narra a história do Iraque de um ponto de vista interno. Esse simples giro de perspectiva traz ao primeiro plano os percalços da luta anticolonial no Oriente Médio e as dificuldades de implementação da forma política do Estado-nação.
Trata-se de uma história pouco conhecida no Ocidente, mesmo depois de toda a atenção que a opinião pública concedeu ao Iraque. Tariq Ali reconstitui, nunca de forma linear, os principais momentos desse itinerário, desde a subjugação, pelo Império Otomano, dos árabes que ocupavam a região da antiga Babilônia, no século XVI, à atual ocupação norte-americana. O principal mérito do relato encontra-se no cuidadoso acompanhamento dos fios que entrelaçam a trajetória iraquiana, a história do mundo árabe e as vicissitudes da política mundial. Tudo isso perpassado por uma concepção não determinista da história, patente em sua preocupação em destacar tanto a ocupação como a resistência.
O Iraque propriamente dito nasce com o declínio do Império Otomano, durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1917, os britânicos, com o auxílio das tropas coloniais da então ocupada Índia, tomaram uma vasta extensão do Oriente Médio. Delimitaram as fronteiras do novo Estado por meio de um arranjo político que congregou as províncias otomanas de Bagdá, Basra e Mossul, deixando de lado o território mais ao sul, junto ao Golfo Pérsico, que veio a se tornar o Kuwait.
Muito mais rígido que o otomano, o controle britânico, desprovido das identidades religiosas e culturais do domínio anterior, não tardou a despertar o nacionalismo local. Uma situação intensificada pela imposição de uma monarquia trazida de fora, a casa dos hashemitas. A primeira insurreição bem sucedida, em 1941, depôs o monarca, instaurando um governo popular e favorável ao pan-arabismo. Imediatamente a Inglaterra reocupou o Iraque.
Em 1956, o presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, retomou o canal de Suez, até então sob o controle de um consórcio franco-britânico. A onda nacionalista despertada por esse ato no mundo árabe atingiu também o Iraque. Em 14 de julho de 1958 um grupo de oficiais do exército depôs a monarquia e proclamou a República. As primeiras medidas do novo governo foram a nacionalização da indústria de base, inclusive da área petrolífera, uma reforma agrária radical e a universalização do ensino público.
Tariq Ali mostra todas as suas habilidades de historiador, de analista político e de romancista (alguns de seus romances foram publicados no Brasil) no relato dos dez anos seguintes, uma intricada epopéia que se desenvolveu seguindo o encadeamento de uma tragédia. São três os personagens principais: os defensores do pan-arabismo proposto por Nasser, o Partido Comunista iraquiano – o mais forte do mundo árabe –, e o Baath –, um partido nacionalista e secular fundado por intelectuais sírios no exílio, mas que logo se tornou um agrupamento militarizado, sustentado pelo poder local dos clãs familiares.
Comandante da revolução de 1958, o general Quasim manteve-se no poder graças ao apoio decisivo do PC iraquiano que, seguindo as ordens emanadas de Moscou, evitava fortalecer Nasser, um dos líderes do movimento terceiro-mundista do agrupamento de países conhecidos então como “não alinhados”.
Uma sucessão de desavenças e conflitos entre as forças nacionalistas – até entre membros do mesmo partido, como no caso da cisão no Baath – facilitou a desmobilização das massas populares, gerando um clima de desencanto. Isso facilitou o golpe militar que levou, em 1968, o Baath ao poder, já sob o comando de Hassan al-Bakr e de seu de sobrinho, Saddam Hussein.
O resto da história é bastante conhecido. O PC iraquiano apoiou o governo baathista quando este ensaiou uma cooperação econômica e militar com a União Soviética, apesar de nesse mesmo período seus quadros políticos estarem sendo dizimados pela polícia secreta iraquiana. Em 1979, Saddam Hussein autonomeia-se general e presidente da República.
Em 22 de setembro de 1980, o Iraque declara guerra ao Irã – supostamente enfraquecido militarmente pela Revolução Islâmica –, agora já por instigação dos Estados Unidos. Depois de oito anos e milhares de mortos de ambos os lados, a guerra termina sem vencedores. Em seguida, Saddam ocupa o Kuwait e é forçado a recuar (Primeira Guerra do Golfo, agosto de 1990 – fevereiro de 1991), mas consegue manter-se no poder mesmo com o embargo econômico e o conjunto de sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU.
O relato da “era Saddam” não é desprovido de interesse. Além de relembrar com fidelidade os principais acontecimentos, Tariq Ali destaca informações relevantes, que tendem a ficar em segundo plano, e esboça, aqui e ali, interpretações ousadas sobre o significado da história recente. Sustenta, por exemplo, que o objetivo do “Império Americano é utilizar seu imenso arsenal militar para ensinar ao Sul uma lição sobre o poder do Norte de intimidar e controlar”.
Um senão que se pode fazer ao livro reside em sua caracterização da resistência. Militante e partidário de uma linhagem secular, Tariq Ali ressalta o potencial de forças alheias à racionalização, como as crianças e a poesia, mas ignora a tradição religiosa, hoje o principal baluarte da resistência numa época em que, adverte o próprio Ali, a oposição secular cada vez mais se submete à cooptação.
Confronto de fundamentalismos
O livro anterior de Tariq Ali, Confronto de fundamentalismos (Record, 2002) – escrito no calor do ataque às Torres Gêmeas, ocorrido em 11 de Setembro de 2001 – insere-se numa série de publicações que visavam suprir a opinião pública ocidental de informações sobre a civilização islâmica. Interesse intensificado pelas guerras de vingança norte-americanas, em especial as invasões e as ocupações do Afeganistão e do Iraque.
Esse esforço tardio para compreender uma região do mundo até então praticamente ignorada gerou, como seria de se esperar, as mais diversas e antagônicas interpretações, desde a tese neoconservadora de conflito civilizacional defendida por Samuel P. Huntington no livro O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial (Objetiva, 1997), à atualização da teoria marxista do imperialismo, proposta por David Harvey em O novo imperialismo (Loyola, 2003).
Tariq Ali se destacou nesse debate. Seus livros foram traduzidos em mais de uma dezena de idiomas e suas teses adquiriram repercussão mundial, transformando-o quase que instantaneamente em um superstar do mundo intelectual. Um dos motivos desse êxito decorre, sem dúvida, de sua formação multicultural. Tariq Ali nasceu (e viveu até a adolescência) no Paquistão, educou-se na Inglaterra (em Oxford), onde posteriormente tornou-se editor da New Left Review, um dos ícones da esquerda mundial.
Além do convívio e inserção em diferentes culturas, construiu um perfil insubmisso à divisão intelectual do trabalho: jornalista independente (isto é, sem vínculo com empresas de comunicação) e militante político, Tariq Ali também é igualmente reconhecido como historiador, romancista e dramaturgo.
Império e resistência
Em 2005, Tariq Ali retoma e desdobra suas contribuições para a compreensão das mútuas relações e interações entre o islã, o mundo árabe e o Ocidente no livro Speaking of Empire and Resistance: Conversations with Tariq Ali – editado no Brasil sob o título A nova face do império (Ediouro, 2006). Trata-se da reunião de uma série de entrevistas concedidas a David Barsamian entre novembro de 2001 e abril de 2004.
O profundo conhecimento da obra de Tariq demonstrado pelo entrevistador; a liberdade característica do gênero, possibilitando a modulação e a confluência de registros, do pessoal ao político; o propósito sistemático do empreendimento que adota como fio condutor os desdobramentos da situação mundial; tudo isso torna o livro uma espécie de súmula das opiniões e das obras de Tariq Ali.
O livro debruça-se sobre aspectos pouco destacados da história política dos países islâmicos. Aborda as causas da divisão e antagonismo entre Índia e Paquistão; o papel do exército paquistanês na criação do Talibã; o surgimento do fundamentalismo islâmico por instigação dos Estados Unidos durante a Guerra Fria; a ação do império inglês na gênese do Estado de Israel e da expansão colonial de suas fronteiras; as vicissitudes do nacionalismo árabe etc.
A originalidade da contribuição de Tariq Ali pode ser apreendida com mais precisão em sua análise dos Estados Unidos, ponto decisivo, aliás, para a avaliação de qualquer interpretação do mundo contemporâneo. Ele examina a matriz do Império a partir do ponto de vista do cidadão do mundo islâmico ou do habitante do Terceiro Mundo. Ao adotar a perspectiva da vítima da violência e da opressão norte-americanas, não só desmascara as racionalizações do discurso oficial (como a tese de que sua ação no Oriente Médio seria uma “intervenção humanitária” destinada a libertar o povo da tirania), como detecta também aspectos insuspeitos da sociedade americana.
O islamismo, em particular sua vertente fundamentalista, substituiu, no imaginário norte-americano, o lugar antes ocupado durante a Guerra Fria pela extinta União Soviética como força oposicionista e ameaça permanente – antes “Império do mal”, agora “Eixo do mal”. Mas, como ensina a psicanálise, em geral, na delimitação do “outro” costuma-se projetar, como em um espelho invertido, traços de sua própria identidade.
Herbert Marcuse já havia chamado a atenção para o caráter totalitário, unidimensional da sociedade americana. Tariq Ali complementa essa descrição, destacando outro aspecto: o seu “fundamentalismo”. Ele lembra que os Estados Unidos são a nação mais religiosa do mundo e “um dos exemplos mais impressionantes de que a difusão da tecnologia e da ciência moderna não precisa ser acompanhada da propagação do secularismo. Num país onde 60% da população acreditam em Satã, e 89% em divindades, o triunfo eleitoral de Bush acentuou as principais diferenças entre a Europa Ocidental e os Estados Unidos – não em termos de economia e política, mas de guerra e religião”.
Mas, se o fundamentalismo religioso – marca da gestão de George W. Bush – determina “a nova face do império”, este não deixa de se assentar no mesmo corpus de sempre: no militarismo, arma principal de quem pretende “governar” o mundo; na dominação cultural, pela criação de uma rede de colaboradores entre os intelectuais da elite dos países dominados, muitas deles formados nas universidades norte-americanas; na propaganda da “superioridade branca, ocidental”, denegrindo o outro na chave, muitas vezes racista, do “orientalismo”.
Em suma, apesar de sua nova face, o império norte-americano segue os mesmos passos do antigo império inglês. Deriva sua razão de ser da necessidade que tem o capital de se expandir e encontrar novos mercados. Escolhe seus inimigos (e não hesita em ir à guerra contra eles) conforme seus interesses econômicos, políticos e estratégicos. Nesse sentido, o islã tornou-se o alvo principal por conta de um acidente da história e da geografia – ter ocupado a região que concentra as maiores reservas de petróleo do mundo.
Esse diagnóstico fornece as premissas das modalidades de luta contra o Império que Tariq Ali defende. A resistência contra a ocupação territorial, no Afeganistão, no Iraque etc. não pode prescindir do apoio da oposição interna nos países do Ocidente, principalmente nos Estados Unidos. Tariq Ali sugere uma retomada da Liga Anti-imperialista, organizada, no final do século XIX, por Mark Twain.
A evocação da militância de um escritor não é casual. Tariq propõe como fulcro da resistência uma interação entre política e cultura, cujo germe estaria na audiência e repercussão dos poetas e romancistas no mundo árabe (semelhante à da música popular no Brasil durante a ditadura militar). Trata-se de propor fontes de resistência seculares, alternativas aos fundamentalismos – religiosos, mas também dos mercados – que, lá e cá, dominam o mundo.
* Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da USP.
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