O famigerado tweet do general Villas Bôas tinha endereço certo, e alcançou seus objetivos: o STF se curvou. Sob a liderança do ministro Edson Fachin (que só agora se deu conta da intimidação dos fardados) negou o habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Lula, que, assim excluído da disputa presidencial, deixava livre a estrada para a aventura do capitão. O resto é história sabida. Na mesma lógica se insere o livro do ex-comandante do exército, que tampouco é obra do acaso. O texto e a oportunidade de sua divulgação implicam um objetivo, que, ao que tudo indica, desta feita não foi alcançado. Se era para desestabilizar o sistema, como parece haver suposto o meliante Daniel Silveira, o tiro saiu pela culatra. A exegese fica para os especialistas. Por enquanto, aplausos para o STF e para a Câmara dos Deputados: a democracia, por seus poderes constituídos, parece haver acionado seu instinto de defesa. E saudações ao ministro Gilmar Mendes, ao proclamar: “Ditadura nunca mais”. Hosanas!
Ao contrário do normal dos preciosos depoimentos cedidos ao CPDOC da FGV, narrados para o cautelar estudo da posterioridade e eventualmente enfeixados em livros (como, por exemplo, os de Geisel e Cordeiro de Farias, este saído a lume após a morte do general), o de Villas Bôas foi ditado para ser logo impresso. O livro precisava circular; supostamente continha mensagem que havia de correr mundo. Levou tempo sua feitura e mobilizou estratégia, envolvendo mesmo o presidente da Fundação, e o general, consciente da missão, dedicou-lhe 13 horas de gravações, entre 12 de agosto e 4 de setembro de 2019. O depoimento foi degravado, tratado com zelo pelo pesquisador Celso de Castro e devolvido ao general, que o reteve por oito meses. Durante esse período, suas quase-memórias foram lidas e revistas por um “estado-maior” de assistentes e ganharam acréscimo de texto correspondente a mais de 30% do original. Teria cabido ao general Sérgio Etchegoyen (“amigo-irmão”) a maior parte da nova costura.
Ou seja: respeitada a pobreza da biografia do depoente, trata-se de obra coletiva, lida, revista, corrigida, aditada. Nada de intempestivo, ao contrário: muito pensada. Para quê? Todas as conjecturas são admissíveis, e uma delas, a mais curial, é tratar-se de renovada tentativa de blindar a imagem da instituição militar ante o breve e severo julgamento da História, que não poderá deixar de considerar sua explicita corresponsabilidade nos desplantes do governo que sustenta. Se o objetivo era este, mais um tiro no pé. O efeito foi devastador para o general e a corporação. Porque a única peça relevante em todo o livro não é a revelação da gênese do tweet que garroteou o STF (episódio do domínio público), mas o fato de o general, contrariando a tradição dos comandantes, haver-se despido da responsabilidade de seu ato para dividi-lo com o Estado-maior do exército “e os generais em comandos em Brasília”. Donde se conclui, agora, a valer esta versão, que a ameaça golpista teria sido projeto de toda a corporação. Tanto pior. O general Villas Bôas sai menor, o que é bom; o exército sai mal, o que é muito ruim.
Houve tempo em que os militares insubordinados alegavam supostas ameaças subversivas (como o aumento de 100% do salário mínimo dado por Getúlio) como justificativa para as ofensas à Constituição que haviam jurado defender. A mudança de narrativa ocorre nas andanças do golpe de 1964. O marechal Castello Branco, primeiro ditador do mandarinato, inaugurou o cinismo: a mão pesada da repressão baixava sobre os democratas para evitar o cassetete da linha duríssima. O vezo pegou. E todas as recidivas atrabiliárias vinham com essa ressalva: é para evitar o pior. Como quem diz: você será esfolado para não ser escapelado. Na regência prussiana de Geisel, a retranca procurava legitimar-se na promessa de abertura. Foi quando vieram os decretos de abril de 1977, fechando ainda mais a ditadura.
Essa contumélia foi recuperada pelo general Villas Bôas e seus associados, ao tentar impingir-nos, como justificativa do golpe assestado contra a soberania popular nas eleições de 2018, a necessidade de evitar um mau maior: a ameaça ao STF deveria, nessas contingências, ser vista como um esforço dos “bem comportados” para evitar que os “mal comportados” (de farda ou de pijama) desandassem o que já não vinha bem, e virassem o barco de uma vez, como sempre desejaram a família Bolsonaro e o áulicos do terceiro andar do Palácio do Planalto. Em outras palavras, coautores do crime contra as instituições democráticas, querem os generais passar como baluartes da democracia. Não se sabe se essa alegada ameaça era real, não se conhece sua dimensão. Sabe-se que o STF em abril de 2018 deixou de julgar com base no direito para reconhecer a lógica das baionetas. E não pela primeira vez, ressalte-se em defesa da honra dos atuais ministros.
Diziam então, e repetem agora os comandantes, que a caserna, passados aqueles tempos, está em paz, atenta aos seus deveres, embora a vejamos politizada e partidarizada de alto a baixo, trabalhada diuturnamente por um antilulismo, um antipetismo e um antiesquerdismo farisaicos, ou seja, um anti qualquer coisa que não seja conservadorismo, a ordem da classe dominante. Um reacionarismo que se associa à reiterada defesa da ditadura que a maioria da tropa e da oficialidade sequer conheceu, o que implica a defesa de soluções golpistas, de intervenções inconstitucionais e, finalmente, da tortura e dos torturadores, com os quais a instituição não deveria querer confundir-se. Esse sentimento, essa visão canhestra da política e da vida, está nas páginas ditadas por Villas Bôas.
O general diz que os fardados se sentiram apunhalados pelas costas quando a presidente da República instituiu a Comissão da Verdade – iniciativa muito tímida e tomada com muitos anos de atraso, por quem, aliás, não poderia deixar de tomar, uma brasileira seviciada nos porões da ditadura. De que se queixam? Até esta data nenhum golpista brasileiro foi punido e nenhum torturador foi para a cadeia, ao contrário, por exemplo, do que se abateu sobre seus congêneres argentinos, chilenos, paraguaios e uruguaios.
Enquanto isso, mães e pais, esposas e maridos, filhas e filhos e amigos ainda procuram no Brasil pelos seus “desaparecidos”. Todos procuram alguém. Eu desejo saber o que fizeram com o cadáver de Mário Alves de Souza, preso, torturado e assassinado nas dependências da PE no Rio de Janeiro. Hildegard Angel quer saber onde está seu irmão Stuart.
O mundo caminha em marcha constante, indiferente aos retardatários. No todo, a soma é o avanço do processo civilizatório, apesar dos Trumps e Bolsonaros, sempre passageiros, por mais longos ou perversos que sejam seus tempos. O mundo de hoje – tocado pelas conquistas da ciência e da tecnologia – se transformou em experimento que rechaça o já sabido e destroça as verdades sedimentadas. Só os incuravelmente néscios estão cheios de certeza. Talvez Eric Hobsbawn pudesse chamar esta era que ele não pôde ver (mas certamente anteviu) como a das incertezas. Tudo está por ser visto e construído. A única coisa monolítica neste mundo em movimento é a ideologia do militar brasileiro, atrasada, anacrônica, subdesenvolvida, presa a uma guerra fria superada – incapaz, portanto, de ver o presente, e assim condenada a recuperar fantasmas e viver as fantasias de um mundo bipolar no qual só nos caberia o papel da mais abjeta subserviência: a renúncia a ocupar um lugar próprio, a construir sua própria identidade e decidir seu destino.
Quero crer, porém, que a tanto arbítrio se armam resistências. Vejo-as nas recentes decisões do STF e da Câmara dos Deputados impondo limites à barbárie. Antes de mais nada, porém, que recolham ambas as Casas a lição: se, nos episódios passados de agressão às instituições democráticas e ao decoro parlamentar as medidas profiláticas tivessem sido tomadas, muito provavelmente outra seria a paisagem da esplanada dos ministérios. Bolsonaro, por exemplo, certamente estaria na cadeia que o aguarda. Na condenação aos desmandos verborrágicos do miliciano ainda deputado, o ministro Alexandre Moraes imputa como condutas criminalmente puníveis não só as ofensas a magistrados ou aos poderes da República, mas, igualmente, a defesa do “arbítrio e da ditadura, como ocorreu com a edição do AI-5”, defesa tantas vezes entoada seja por militares (como o general Mourão), seja por parlamentares e hordas bolsonaristas, seja pelo próprio presidente da república. A democracia terá forças para manter esse entendimento, alicerçado em decisão unânime do plenário do STF? A conferir, e cobrar.
Uma força só é superada quando alcançada por uma força maior; nas democracias, a força que pode derrotar o arbítrio é a mobilização popular. Com a palavra os partidos, os sindicatos, o movimento social.
* Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
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